17.12.15

“A grande coligação é fatal para a democracia europeia”, diz António Costa.


[Reproduzo aqui, para (minha) memória futura, o texto que a jornalista do Expresso Luísa Meireles publicou em antecipação do lançamento do meu livro "E agora, Esquerda?"]


(Lançamento do livro na Assembleia da República. Fotomontagem de Filipe Neto Brandão.)

Líder do PS escreve prefácio para livro de Porfírio Silva “E agora Esquerda?”, onde acentua que a falta de alternativa não só mata a democracia como fortalece os extremismos. O autor é membro do Secretariado Nacional do PS.


A ideia defendida por António Costa é que o regime de “grande coligação” que vigora na Europa, em parte por força da construção específica do modelo, “revela-se fatal para a democracia europeia”. E afirma: “a ideia de que ‘não há alternativa’ mata a democracia e fortalece os extremismos, os nacionalismos, as pulsões antieuropeias ou secessionistas”.

O atual primeiro-ministro considera que, neste modelo, as “linhas de confrontação política nacional tendem a diluir-se na indiferenciação” e que esta grande coligação à escala europeia tem consequências na política de alternativas em cada Estado-membro.

Segundo António Costa, a verdade é que “se a esquerda não sobrevive sem a União Europeia, não é fácil à esquerda viver na União Europeia”.

“Aplicando-se as decisões da União Europeia a cada Estado membro, todos os que defendem a participação na União Europeia confrontam-se com a dificuldade - ou mesmo a impossibilidade - de se afirmarem como alternativa a nível nacional sobre temas objeto de decisão a nível europeu”, escreve Costa.

Segundo o dirigente socialista, “o estreitamento das margens da alternativa entre as forças defensoras da integração europeia tende a facilitar a confusão entre o espaço do euroceticismo e o espaço das alternativas”.

Neste sentido, conclui, os anos “devastadores” que ocorreram e a insuficiência das instituições europeias na crise exigem agora novas respostas à escala europeia, para o que “deverá contribuir uma nova relação das esquerdas com a Europa, o que, por sua vez, passa por novas formas de relação entre as esquerdas”.


Uma solução sempre em aberto

O livro de Porfírio Silva, membro do secretariado do PS e um dos ideólogos da política de alargamento do debate entre as esquerdas e do diálogo do seu partido com “a esquerda à esquerda do PS”, reúne um conjunto de escritos, desde o período das primárias até 10 de novembro, data da assinatura dos acordos entre PS-Bloco de Esquerda-PCP e da subsequente queda do Governo da coligação.

Segundo este dirigente socialista, a relação sem precedentes que se estabeleceu entre os partidos de esquerda “não é uma relação qualquer de convergência sistemática ou solução para todos os problemas, mas de diálogo aberto”.
Porfírio Silva quer também mostrar que a aposta nesta solução não caiu do céu, que ela já vinha sendo pensada há mais tempo e que ele próprio sempre a defendeu.

“Há quem fique escandalizado que não esteja tudo configurado [nos acordos], mas esta solução está sempre em aberto, é preciso discutir e não tornar-nos todos iguais ou indiferenciados”, afirmou. Ou seja, “nada está dado nem tem solução garantida”.

O titulo do livro é precisamente o de uma crónica que escreveu no seu blogue (“Machina Speculatrix”) a 7 de novembro, no mesmo dia em que a Comissão Política do PS mandatou António Costa para desenvolver contactos com todos os partidos com assento parlamentar.


Os partidos também morrem


Nesse artigo, o autor afirma que “os partidos também morrem” e que uma das formas de isso acontecer é “permitir que ele deixe de representar aqueles que prometeu representar”.

Porfírio Silva escreve mesmo que a única forma de o PS se manter como alternativa era impedir a continuidade do governo de coligação, “porque nenhum eleitor PS votou nesse sentido”.

“Devemos verificar as condições de um governo sem PSD e sem CDS, não vamos deixar o Bloco e o PCP a fazerem de conta que querem apoiar um governo do PS se apenas estiveram a carregar munições para a sua retórica futura, vamos verificar o que eles querem efetivamente dizer e fazer, vamos testar aquilo a que estão dispostos”, afirma.

E acrescenta: “vamos fazer esse teste publicamente. O meu entendimento é que o PS deve promover reuniões formais, ao mais alto nível, com o propósito declarado de verificar as condições de um governo liderado pelo PS em que o PCP e o Bloco assumam as responsabilidades a que até hoje fugiram. Sou de opinião que devemos fazer isso imediatamente”. Foi o que aconteceu.


Luísa Meireles, Expresso online, 10 de Dezembro 2015 (aqui)

3.12.15

rejeitada a rejeição.



Hoje o parlamento português completou a apreciação do programa do XXI Governo Constitucional, liderado por António Costa. Terminou com a votação da moção de rejeição apresentada pela direita. A rejeição foi rejeitada, temos agora um governo em plenitude de funções.
Deixo algumas postas que fui colocando no Facebook durante este debate.

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António Costa, a abrir o debate do programa de governo, lembra que é o parlamento que representa o povo e é perante o parlamento que o governo responde. Ao mesmo tempo, lembra o compromisso de dialogar na concertação social.

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Luís Montenegro continua a enterrar a direita no seu actual radicalismo. Faz isso com o seu actual antiparlamentarismo. Esta direita cada vez mais conservadora e, agora, antiparlamentar, é uma relíquia reaccionária de que o país nada pode esperar.

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Marco António a comprovar: a direita portuguesa tornou-se antiparlamentar. Se PSD e CDS têm minoria no parlamento e insistem que ganharam as eleições, só pode ser por confundirem eleições com plebiscitos. Confundem eleições legislativas com plebiscitos. Isso é muito perigoso. Já não há social-democratas no PSD? Já não há democratas-cristãos no CDS? É que fazia falta que os social-democratas e os democratas-cristãos evitassem a deriva antiparlamentar desta direita. É que a direita antiparlamentar foi muitas vezes o ninho do pior reaccionarismo. O ninho da pulsão totalitária.


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Num jornal leio a opinião de que a direita fez bem em apresentar uma moção de rejeição ao programa de governo. O argumento é que "os vencedores" têm de "utilizar os mecanismos parlamentares para tentar repor a verdade das urnas". Parece que ainda não perceberam: os mecanismos parlamentares vão mostrar, uma vez mais, que a direita perdeu as eleições. Os mecanismos parlamentares vão mostrar, uma vez mais, que é a verdade das urnas que suporta o actual governo.

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A líder do Bloco, Catarina Martins, acabou de dizer no parlamento algo muito importante: à esquerda há diferenças, mas essas diferenças não devem ser escondidas, nem disfarçadas, nem resolvidas em segredo. Devem ser assumidas e resolvidas. Isso é muito importante para assumir a plenitude da democracia parlamentar, para realizar a plenitude da representação. A esquerda a dar lições de maturidade democrática.

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Intervenção de Paulo Portas no parlamento a mostrar que a direita perdeu o norte: não tem nada a dizer sobre o futuro do país e está entretida com a guerrilha estéril dos derrotados. Até é bom para a maioria de esquerda, mas é mau para o país.

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O ministro do ensino superior e da ciência, Manuel Heitor, a intervir no debate do programa de governo. Voltar a apostar no conhecimento. E, certamente, digo eu, acabar com a guerra civil instaurada pelo Ministério Crato na comunidade científica em Portugal. Renovar a obra de Mariano Gago com novas forças.

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No parlamento, Passos Coelho a alinhar no radicalismo antiparlamentar de Paulo Portas. A social-democracia já não mora no PSD. Passos Coelho confunde Soares Carneiro com Sá Carneiro.

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17.11.15

Defender a democracia representativa.


Kostis Velonis, Life without Tragedy, 2011
(fotografado na exposição No country for young men, BOZAR, Bruxelas)


[Um texto meu publicado hoje no Diário Económico.]


O presidente do grupo do Partido Popular Europeu no Parlamento Europeu, Manfred Weber, escreveu no Diário Económico um artigo sobre a situação política em Portugal, intitulado “Populismo radical”, que não pode passar sem uma resposta breve, mas clara.

Esclareça-se, desde logo, que nada tenho contra o facto de nacionais de outros países da UE se pronunciarem politicamente sobre o nosso país: não procuro refúgios soberanistas, penso a Europa como um espaço político aberto, sem fronteiras para os combates de ideias. É pelo conteúdo que o artigo é preocupante.

Quando Manfred Weber fala de “atirar pela janela a tradição democrática de Portugal”, para comentar o que por cá se está a passar, temos de lhe dizer: por cá temos uma democracia representativa onde as soluções de governo dependem do Parlamento. Não concebo que, na visão da sua família política, a democracia seja outra coisa. Conhecendo, como não duvido que conheça, as fórmulas políticas subjacentes aos governos dos Estados-membro da UE, actualmente e no passado recente, terá de reconhecer a absoluta normalidade democrática da solução política liderada pelo PS em Portugal. Com um pouco mais de informação, e um pouco menos de enviesamento partidário, seria até talvez capaz de reconhecer o valor do acordo à esquerda em termos de aprofundamento da democracia representativa.

Não posso precisar onde Manfred Weber anda a informar-se sobre Portugal, mas vejo evidências de insuficiência nas suas fontes. Quando escreve “torna-se evidente que o Partido Socialista atravessa um vazio ideológico e trilha um caminho populista”, fica claro que as falsas evidências enganam muito quem quer ser enganado. Aconselharia o sr. Weber a ler o programa de governo do PS, antes e depois dos acordos à esquerda. Decerto, lendo-o, verificará que se trata de um programa social-democrata, moderado, à altura das tradições e das responsabilidades da família política socialista no contexto nacional e europeu. O PS, pelo papel que tem desempenhado e desempenha na democracia portuguesa, não tem lições a receber sobre empenhamento democrático.

Aliás, quando o Partido Popular Europeu aspirar a dar lições sobre democracia no espaço da União, bom será que comece por explicar as responsabilidades da sua família política, por exemplo, na deriva autoritária a que assistimos com preocupação na Hungria.

A arrogância infinita dos que pensam que a Europa é deles, de alguma direita que pensa que para haver democracia só ela pode governar, essa arrogância é que é um perigoso tique antidemocrático. É também contra essa arrogância que temos de defender uma democracia representativa completa.


Porfírio Silva, Secretário Nacional do PS



[o artigo de Manfred Weber encontra-se aqui]


14.11.15

Hamlet, Cintra


(Fotografia de Rui Carlos Mateus)




O mundo é estranho. Estava zangado comigo por ainda não ter conseguido escrever sobre o Hamlet que, trazido de Shakespeare para português pela vida poética de Sophia, Luis Miguel Cintra encenou na e para a Cornucópia. Começou, ainda em Julho, no Festival de Almada, e eu não consegui ver. Estreou no Teatro do Bairro Alto, e consegui ver. Regressou a Almada, e voltei. (Há muito que tive de reconhecer que perco muito do que Cintra quer dizer se não vir os seus espectáculos mais de uma vez.) Entretanto, chegara o anúncio de que Cintra termina a sua (noção desconfortável para o próprio) “carreira de actor” com esta peça e, portanto, sobe amanhã ao palco pela última vez. E eu ainda não encontrara tempo para alinhar as ideias que trazia na cabeça sobre este senhor Hamlet. Inesperadamente, os atentados terroristas de ontem, 13 de Novembro, em Paris, provocaram a anulação da conferência política do PSOE, em Madrid, que decorria hoje, Sábado, tornando inútil a minha deslocação e abrindo uma clareira de horas bastantes para escrever estas parcas reflexões que ora partilho quase só por uma homenagem pessoal ao Luis Miguel, e às nossas diferenças.

Como não sou crítico, embora goste de teatro e goste de escrever sobre o trabalho da Cornucópia, há muitos aspectos de cada espectáculo que não costumo comentar, como o trabalho dos actores ou o cenário. Mais uma vez desta vez, não vou dizer nada do atrevimento tão falado de escolher um actor de 22 anos para fazer a personagem Hamlet, em vez de um consagrado (com um resultado que me agradou francamente). Mas, uma vez sem exemplo, vou falar do cenário.

A Cristina Reis costuma encontrar fantásticas atmosferas poéticas para os espectáculos da sua companhia, com uma sensibilidade que ultrapassa a minha compreensão e só se entende por ela ser tão da casa que todos os seres inanimados que lá dormem lhe pagam tributo com a cumplicidade que só os objectos na sua quietude sabem como se faz. Senti, desta vez, que o cenário fez mais, foi mais activo; criou, não apenas uma paisagem e um solo onde pousassem as acções e se escorassem as intenções das personagens, mas, muito mais do que isso, uma máquina do mundo que labutou, secreta mas intensamente, para mover a verdade ali em causa e fazer acontecer. É um castelo, ou mais precisamente um esquema de um castelo, sem mudanças de cenário em quatro horas de acontecimentos, mas um castelo tão complexo como o mundo: com vários níveis, interior e exterior, salas e salões e janelas e escadas e passadiços e pátio e cemitério e longe e perto, com vários modos de acesso e circulação capazes de criar movimentos e formas de estar diferentes no que estaticamente podia ser igual, recriando numa casca de noz uma série rica de diferenciações espaciais e significativas essenciais a Elsinore. O castelo do mundo, da luta pessoal pela descoberta do próprio caminho, da luta contra os outros ou com os outros, está aqui todo dado naquela caravela voadora que é o cenário da Cristina Reis, que, se nos costuma dar poesia material, desta vez nos deu filosofia prática. Creio, aliás, que a diferença de intensidade que senti entre a primeira e a segunda partes do espectáculo (e senti-o das duas vezes que o vi) se deve à exploração mais intensa que a segunda parte faz das possibilidades dinâmicas do castelo.

No seu habitual texto “Este Espectáculo”, Cintra, indo pela tese de ser o Tempo o protagonista de Hamlet, repete que o Tempo e a Morte são o mesmo tema. Insistindo sempre que não percebe nada da filosofia, Cintra volta a ser aqui muito heideggeriano, pensando o “ser do homem” como “ser para a morte” num plano de sentido essencial. Contudo, e porque Cintra não é de todo um pensador individualista (coisa que, a meu ver, Heidegger foi), relevo a sua aproximação entre o tema da morte e o tema da efemeridade da vida. Ora, se a aproximação ao tema do tempo pelo lado da morte nos pode encerrar no indivíduo (o indivíduo que morre), já a aproximação pelo lado do efémero deixa espaço, em meu entender, à entrada em jogo dos outros: morrendo eu ou não, o que persiste para além do efémero é o que fica nos outros, o que lancei à terra dos outros e aí germinou. E, para mim, faz sentido pensar que Cintra, que tanto batalha contra uma civilização do efémero, prefira trabalhar no Tempo por esse lado, precisamente a frente de batalha em que podemos vencer a Morte, vencendo o efémero para lá da morte.

(Aparte. Aliás, não há só esse escoar do tempo absoluto a que tanto nos prendemos. O grande e heterodoxo evolucionista Stephen Jay Gould escreveu, num dos ensaios inseridos em O Polegar do Panda, que não devíamos ser tão fascinados pelo tempo astronómico, absoluto, newtoniano, que numa concepção do mundo racional e objectiva nos parece o único válido, mas não é: devíamos dar mais atenção ao tempo biológico. Que é um tempo interno, orgânico, ligado ao ritmo do corpo. Assim, por exemplo, todos os mamíferos duram aproximadamente a mesma quantidade de tempo biológico, quer dizer, tendem a respirar cerca de 200 milhões de vezes e os seus corações a bater cerca de 800 milhões de vezes numa vida individual. Umas espécies vivem mais do que outras? Sim; os animais mais pequenos vivem mais depressa, os animais mais corpulentos mais devagar; a taxa metabólica, o “fogo da vida”, diminui relativamente com o aumento do tamanho: “Os pequenos musaranhos movem-se freneticamente, comendo durante quase toda a sua vida de vigília para manterem o fogo metabólico à taxa máxima de todos os mamíferos; as baleias azuis deslizam majestosamente, com os batimentos cardíacos mais lentos de todas as criaturas activas de sangue quente.” Em tempo astronómico, os mais rápidos vivem menos tempo, os mais pesados mais tempo: mas, “visto de dentro”, o que corre mais apenas está pressionado pela sua pequenez.)

Ora, o efémero, mais do que a morte, interessa tudo ao tema maldito de Cintra, a política. Tema, porque Cintra sente uma responsabilidade política, pelo menos a responsabilidade de detestar e combater uma certa política, sob o nome, por exemplo, de “política do possível”, que normaliza os espectáculos de teatro a formatos contabilizáveis para efeitos de dinheiros. Tema maldito, porque para Cintra toda a política está manchada pelo poder – e poder é poder de oprimir. Escuso de repetir (já falámos disso neste espaço) que discordo fortemente de Cintra nesse ponto, mas isso não importa agora nada. O que importa é que, repito, há uma questão da política em Cintra, questão que volta neste Hamlet.

Gonçalo Frota, num texto publicado no Público a 17 de Setembro p.p., regista Cintra a dizer que o contacto de Hamlet com a morte o “liberta da possibilidade de ser rei, adquirindo uma lucidez completamente diferente”. Pois que o poder é prisão, é embotamento dos sentidos e da razão, para os outros e para o próprio. Eunice Tudela de Azevedo, naquela das críticas a este espectáculo que mais me aproveitou entre a estreia e a repetição em Almada, evoca a leitura freudiana do texto e exemplifica com dois momentos. Primeiro, a tentativa de Hamlet para subjugar sexualmente a própria mãe (depois da cena da trupe de comediantes). Segundo, mais um substrato permanente do que um momento, a relação de homo-erotismo latente entre Hamlet e Horácio. Ora, em comentário a esse texto, Cintra lança uma outra luz sobre o sentido dessa relação: Horácio, em ser “um Homem que não quer conhecer poder”, é um contrário de Hamlet. Mais decisivo ainda: esse é o contrário “que sempre dialoga com o pensamento de Hamlet”. Uma e outra vez, aqui outra vez, Cintra percorre o mundo à procura de algo, de quem, que seja capaz de desconstruir o poder, as relações de poder, a vontade de poder.

Os espectáculos com dramaturgia de Cintra são sempre homenagens laboriosas à palavra, à linguagem, ao Verbo que fez e faz o mundo e trabalha todos os sentidos que podem na vida ser dados ou tirados. Estas quatro horas são, ainda e outra vez, um sopro de palavra na vida do pensamento. Um quase integral de uma obra maior da história do teatro, um clássico naquele sentido de continuar a interrogar-nos de modo tão actual passados tantos séculos. E isso tem uma razão, que se dá em palavras do próprio Luis Miguel. Numas palestras que proferiu no âmbito do Festival de Almada, trazidas neste 2015 para livro (Cinco Conversas em Almada), Luis Miguel Cintra diz “Os actores devem ter como principal objectivo tornarem-se pessoas interessantes”. E explica: o que o espectador vê da plateia não é a personagem: é o actor, mascarado, a fazer ora isto ora aquilo, de peça para peça. O que o espectador vê é essa pessoa que é actor; se essa pessoa for banal, só pode aborrecer olhar para ela; se essa pessoa for interessante, é mais provável que seja prazeroso olhar para ela e ver o que faz. Por isso é que o actor deve trabalhar para ser uma pessoa interessante.

E assim se explica o grande actor que Luis Miguel Cintra é.



13.11.15

"O PS e a dívida".



Em editorial no DN de hoje, intitulado “O PS e a dívida”, Nuno Saraiva escreve:
«Hoje, porém, o responsável pelas relações externas do PS vai mais longe. Ao DN, salvaguardando que "toda a estratégia do programa do PS é dentro da União Europeia", acrescenta que não quer dizer "que não se estude". Numa altura em que o país está suspenso da decisão de Cavaco Silva sobre a indigitação ou não de António Costa como primeiro-ministro, era bom que o PS não descarrilasse e conferisse pretextos ao Presidente da República para ter dúvidas e hesitações sobre a sua solução governativa. Ao contrário do que se possa pensar no Largo do Rato, a retórica europeia sobre o Tratado Orçamental não mudou. A doutrina, concorde-se ou não, continua a ser, sem transigências, a que foi definida por Schäuble e Dijsselbloem.»

Há um aspecto retórico nesta peça que tem o seu interesse: não dizendo quem é o tal responsável pelas relações externas do PS (dá o caso de ser eu, Porfírio Silva), Nuno Saraiva sente-se assim escusado do exercício de comparar a sua leitura de uma frase minha com aquilo que sempre disse e escrevi sobre a matéria. De facto, quando alguém se dedica ao exercício de extrair de uma frase todo um manancial de consequências que vão contra aquilo que a mesma pessoa disse repetidas vezes em vários textos e declarações, é razoável que nos espantemos com a veia interpretativa.

Mas, já que o editorialista não acha que tenha de se preocupar com isto, então vejamos as minhas declarações ao mesmo DN publicadas na edição de hoje. É na página 4. Começa, logo no primeiro parágrafo, por enquadrar: está-se a falar de um ponto do acordo entre o PS e o BE, relativo à constituição de um grupo de trabalho para avaliação da sustentabilidade da dívida externa.

Aí se diz que eu disse que “Toda a estratégia do programa do PS é uma estratégia dentro da União Europeia”; que isso não quer dizer que “não se estude” a sustentabilidade da dívida (lembrando, como exemplo, um dos estudos produzidos nos últimos anos sobre o assunto, aquele em que participou Pedro Nuno Santos); que o PS tem uma “posição claramente pró-Europa”, embora os socialistas sejam “críticos de alguns aspectos do funcionamento da União Europeia”, como “a arquitectura do euro” ou a falta de equilíbrio na União Económica e Monetária. Aí se escreve também que eu disse que “isto não é tabu em lado nenhum”, porque esse debate existe nas várias famílias europeias “à direita e à esquerda”, tal como disse que “o PS tem uma solução integrada em que tem em conta o enquadramento internacional e os processos de política interna”. E, nessa ligação entre a política interna e a política europeia, ainda sou citado assim: o PS não pretende “converter os outros partidos” com que assinou posições conjuntas: “Há é uma oportunidade de fazer outra política alternativa sem rutura”.

Dito isto, o que posso dizer do que Nuno Saraiva escreveu, para ser o mais imparcial possível, é que se trata de “uma tempestade num copo de água”. Seria ainda mais claro se Miguel Marujo tivesse mencionado outro aspecto que lhe sublinhei, a saber: António Costa sempre disse que não faz sentido colocar a exigência de renegociação da dívida à cabeça. Mas, mesmo sem isso ter aparecido, não há matéria nenhuma nas minhas declarações publicadas pelo DN que justifique a pretensão do editorialista, que é a pretensão de que eu abri qualquer linha de novidade na nossa posição sobre a dívida. Se nós concordamos vir a fazer um grupo de trabalho para estudar a questão da dívida, como o próprio editorialista escreve, qual é a novidade de dizer que a questão pode ser estudada?

Com toda a franqueza, se a ideia é dizer que alguém está a dar desculpas ao Presidente da República, seria melhor procurar-se qualquer coisa de substantivo, em lugar de inventar novidade ou diferença onde ela inexiste absolutamente. Se, pelo contrário, a ideia é o já batido mantra de que não se pode discutir aquilo que os bonzos da ortodoxia querem que não se discuta, aí o caso é mais sério: a tentativa de evitar que a política discuta todos os assuntos que possam influenciar as decisões políticas – essa é uma tentativa que passa ao lado da democracia. Que passa ao lado do que a democracia exige de nós.

Já para não falar da afirmação, também de Nuno Saraiva, segundo a qual “a retórica europeia sobre o Tratado Orçamental não mudou”. É que, aí, é preciso não ter sequer reparado que o presidente da Comissão Europeia já não é Durão Barroso para insistir em não ver as fissuras abertas na ortodoxia que vinha desse tempo. Aí, é preciso ter perdido de vista que, ainda antes de Juncker ter introduzido a leitura inteligente e flexível do Tratado Orçamental, já António Costa tinha defendido a mesma linha, usando a mesma expressão. Mas, enfim, essa matéria realmente substantiva fica para outro dia.

Não nos esqueçamos: para podermos escolher, temos de estudar os caminhos. Quem queira impedir que estudemos o mundo, ou desconhece a complexidade do mundo ou desconhece a complexidade da democracia. As ditaduras são mais simples - mas não estamos acomodados a essa maldita simplicidade.



9.11.15

A política do "natural".



Há adversários do acordo à esquerda que são razoáveis: argumentam, explicam o que acham que pode correr mal, indicam o que poderia ser preferível numa solução inclinada à direita, apontam incertezas, discutem o conteúdo do acordo, e por aí adiante. Isso é a democracia a funcionar. Ainda bem que isso existe. Não é o meu caminho, mas ainda bem que há outras visões do caminho.

Também há apoiantes do acordo à esquerda que são irrazoáveis, fazendo de conta que o caminho não tem dificuldades, pedindo para amanhã este mundo e o outro (como se a esquerda fizesse milagres), desatendendo os desencontros entre culturas políticas diferentes e os escolhos que surgirão por falta de hábito de colaboração política entre PS, PCP e BE. O tempo fará que todos compreendamos melhor as dificuldades que aí vêm, tal como também o tempo nos mostrará que este acordo tem potencialidades e benefícios para o país que nem nós suspeitávamos. Aprender é bom.

Mas há um tipo de irrazoabilidade, vinda de alguns acérrimos opositores do acordo à esquerda, que me parece particularmente aberrante. Traduz-se na ideia de que este acordo é "contra-natura". Certos partidos teriam uma "natureza boa" (democrática, dialogante, leal) e outros partidos teriam uma "natureza má" (antidemocrática, sectária, desleal). Misturar essas "naturezas" seria algo tão detestável ou impraticável como fazer o leão copular com a libelinha. Alguns, mais do tipo missionário a pregar aos incréus, talvez pretendam mesmo que misturar "naturezas" partidárias "incompatíveis" será pecaminoso.

Claro que este "argumento" sobre as "naturezas" dos partidos nos convidaria logo a carrear factos simples para impugnar a suposta "bondade" de alguns personagens dos partidos supostamente bons. Mas nem vou por aí.

O que quero mesmo dizer é isto: a marca distintiva das sociedades humanas - as instituições - distingue-se precisamente por não serem "natureza". Penso que foi Geoffrey M. Hodgson a escrever que percebemos que alguma coisa é institucional, em vez de ser natural, quando as sociedades encontraram maneiras diferentes para implementar a mesma função. Por exemplo, há diferentes sistemas monetários para implementar a função moeda como equivalente geral de trocas - e a libra não é intrinsecamente natural enquanto o euro seria contra-natura, por exemplo. Isto é: é característico do tipo de liberdade, ou margem de manobra, que as instituições trouxeram às sociedades humanas, que as nossas opções não estejam fixadas por uma "natureza", estando disponíveis caminhos alternativos (diferentes entre si) que nos cabe construir e escolher.

Ora, tentar fixar (ou limitar) o comportamento de uma organização humana com o recurso à ideia de "natureza" dessa organização mostra uma radical incompreensão da característica institucional da nossa civilização e da liberdade que isso nos dá. Aliás, o discurso da "natureza" do partido X ou Y, e do carácter "contra-natura" de um acordo entre certos partidos, é, precisamente, uma tentativa de restringir a liberdade: a liberdade de escolha que as instituições democráticas nos dão, a liberdade de fazermos caminhos e de não nos limitarmos ao que estava dado. Isto é o que alguns não percebem, quando confundem história humana com história natural.

MEMÓRIAS. BERLIM, 1989, UM DIA COMO ESTE, UM MURO COMO QUALQUER OUTRO.




Na noite de 9 de Novembro há 26 anos, o governo da então chamada República Democrática Alemã anuncia de forma desastrada (por não corresponder exactamente ao que queriam fazer, que era uma liberalização cautelosa das saídas para o estrangeiro), anuncia, dizíamos, que os cidadãos desse país poderiam atravessar as respectivas fronteiras (de dentro para fora...) livremente. Em consequência, logo nessa noite, cerca de vinte mil alemães de leste atravessaram o posto fronteiriço de Berlim Leste para Berlim Oeste. No dia 11, as máquinas começaram a abrir mais passagens através do muro da vergonha, já que os postos normais não davam vazão à enchente dos que queriam experimentar o sabor dessa nova liberdade. Logo foram anunciadas conversações para a abertura da simbólica Porta de Brandemburgo, que só viria a tornar-se uma ampla passagem entre dois mundos em Dezembro desse ano. No fim de semana seguinte à abertura, cerca de dois milhões de alemães orientais visitaram Berlim Ocidental.
Tive a sorte de estar nessa Berlim esfuziante por esses dias. Tinha ido à conferência "Security in Europe: Challenges of the 1990's", organizada pelo Politischer Club Berlin e pela Amerika Haus Berlin,  que decorreu entre 15 e 17 desse mês, tendo ficado mais uns dois ou três dias. A conferência acabou na tarde de sexta-feira (17) e, desde aí até ao regresso no domingo, deambulei como uma esponja pela cidade que era nessa altura o centro do mundo. Havia, além do povo que estava a fazer a sua história, uma multidão de jornalistas por todo o lado, especialmente postados em frente à Porta de Brandemburgo, por haver então a expectativa de esse local histórico ser aberto imediatamente.
Descobri há algum tempo duas folhinhas que escrevi na altura, "do lado de lá", no meio da agitação. Estão a ficar roídas pelo tempo. Antes que desapareçam, transcrevo-as para este arquivo-pessoal-público.

Folha 1. "Aqui é a Marx-Engels Platz, em Berlim Leste. Hoje são 17 de Novembro de 1989. O Muro já tem aberturas mas ainda falta muita coisa. Aqui está a ocorrer uma manifestação (ou concentração) de estudantes (pelo menos parecem, pela sua juventude, apesar de também haver gente mais velha). Vim para aqui directamente da estação de metropolitano, onde comprei o meu visto e troquei os obrigatórios 25 DM por 25 marcos da DDR. Do lado de lá vale, não 1 para 1, mas 1 para 10 ou ainda mais. Há o pequeno pormenor de que tenho a máquina fotográfica da Guida ao ombro, mas não consigo tirar nenhuma fotografia. Até o azar pode ser histórico... Outro pormenor é que está um frio danado, que entra por todo o lado apesar de estar com dois pares de meias calçados, camisa, camisola de gola alta, casaco de inverno e gabardina. São aqui 15.50H."
Folha 2. "No mapa, tenho aqui uma indicação sobre a Igreja de S. Nicolau, no centro histórico de Berlim. Fui para entrar, vi que se pagavam entradas e que havia um museu. Como não estou com grande tempo para museus, fui perguntar se também se pagava para ver a igreja. Resposta: «Isto não é uma igreja. Isto é um museu.» Entendi: estamos, realmente, no Leste. São 16H 13M."

Memórias das minhas ingenuidades, pois. Como se vê, ainda havia muita coisa por mudar. Eu não falava uma palavrinha de alemão, mas recolhi um comunicado da SPARTAKIST - Herausgegeben von der Trotzkistischen Liga Deutschlands, com o título "Für eine leninistisch-trotzkistische Arbeitpartei!". E em baixo de página: "Für den Kommunismus von Lenin, Luxemburg und Liebknecht!". Ainda tenho uns jornais, uns autocolantes, uns "alfinetes de peito", desses dias. E, claro, umas pedrinhas pequeninas que eu próprio rapei do muro, à unha, enquanto outros já andavam em cima dele com picaretas.

O mundo, realmente, mudou muito. Nem tudo correu bem, como se sabe. Só que ninguém, sabendo do que fala, pode desprezar o valor da liberdade - haja o que houver, com todos os defeitos que as democracias possam ter. Isso sentiu-se naqueles dias (e ainda se sente) em Berlim. Claro, ainda há quem, por cegueira ideológica, ache que tudo não passou de uma operação das forças reaccionárias conspirando por todo o mundo. Por hoje, a esses nada a dizer.

(republicação)

(Como pode ser verificado, há vários anos que publico sempre este apontamento neste dia. Faço-o, este ano, mais uma vez. Para que saibam que o meu amor à liberdade é permanente e não padece de circunstancialismos. Nem contradiz o meu forte e determinado empenho no acordo das esquerdas que está a ser concretizado nestas horas: foi já hoje, de madrugada, que a Comissão Política do PS aprovou a rejeição do programa do governo da direita e o acordo à esquerda para suportar um governo de iniciativa do PS. Votação: Sim: 69; Não: 5, Abstenções: 0.)



8.11.15

"O PS é o partido moderado de que o país precisa neste momento."




A jornalista Liliana Valente, do Observador, entrevistou-me na passada quarta-feira (04/11/2015) sobre o actual momento político. O texto resultante foi publicado no Sábado, 7. Deixo-o aqui, para memória. A entrevista foi publicada com o título "Ninguém espera que desenhemos agora quatro orçamentos". Eu escolhi, para aqui, outro título, menos de actualidade e mais conforme com o que é permanente no meu pensamento.

***

As negociações foram iguais com PCP e BE? Nunca houve uma reunião entre os três partidos…

Somos todos partidos diferentes, com culturas diferentes, histórias diferente, com programas diferentes que eram diferentes antes destas conversações e vão continuar a ser diferentes. Há assuntos que não são completamente coincidentes naquilo que tem de se trabalhar em cada um dos casos.

Portanto vamos conhecer acordos diferentes?

O que vai acontecer é que há uma base para um programa de governo em que todos aqueles que estão envolvidos nesse trabalho concordam que essa é a base para um programa de governo. O que está em causa é como é que se constrói um programa de governo. Sabemos desde o princípio que a base desse programa de governo é o programa eleitoral do PS, porque foi o programa que teve mais votos. Também sabemos desde o princípio que há pontos que são importantes para os outros partidos e condições sobre as quais não vamos estar de acordo, nem sequer vale a pena discutir. E, portanto, a geometria é variável. O que interessa é que temos de chegar a uma situação em que o programa do governo que seja apoiado pelos vários partidos seja coerente, do ponto de vista de todos, e seja satisfatório do ponto de vista de todos.

Como vai o PS garantir que o acordo responde às exigências do Presidente da República? É possível que Cavaco Silva não dê posse a um governo de esquerda?

Tenho tendência a pensar que quem tem responsabilidades institucionais exerce essas responsabilidades no melhor interesse do país. Julgamos que o melhor interesse do país é que haja uma solução de governo que seja sólida, seja consistente, seja duradoura e, obviamente, seja maioritária na Assembleia da República. Isso corresponde a um desafio lançado pelo Presidente na comunicação que fez ao país aquando da marcação das eleições. Seria estranho que, estando nós a fazer aquilo que é normal em democracia – procurar uma solução no Parlamento – e estando a corresponder ao desafio insistente do senhor Presidente da Republica de que ‘é tempo de compromisso’, que isso correspondesse a uma solução aceitável constitucionalmente e não o fosse no critério do senhor Presidente da República.

Mas o Presidente da República elencou uma série de pressupostos que têm de ser cumpridos, como o respeito pelo Tratado Orçamental, a NATO, as regras da União europeia, da união bancária. Como vai o PS blindar esse acordo?

Tenho uma certa resistência em falar da ação política do Presidente como se ele fosse adversário ou inimigo de algum partido. A partir do momento em que no PS estamos a trabalhar para uma base de estabilidade para a legislatura, entendemos que estamos a trabalhar numa base que é desejável para o Presidente da República.

PCP e BE aceitam esses pressupostos?

Nós temos pela frente a necessidade de satisfazer várias obrigações do Estado. Temos por exemplo que satisfazer as obrigações do Estado no que diz respeito a pensões e salários. Devemos cuidar, satisfazer as obrigações do Estado no que diz respeito aos serviços públicos essenciais, que as pessoas esperam que o Estado garanta. Temos de pensar nos compromissos europeus que o país assumiu, temos de pensar na necessidade de relançar o desenvolvimento em ciência, inovação, educação e cultura. E aquilo em que estamos a trabalhar é para desenhar uma trajetória orçamental, em termos de défice e de dívida que garanta o cumprimento dessas obrigações fundamentais do Estado. E que tenha o acordo dos partidos envolvidos.

Que trajetória será? Jerónimo de Sousa já falou na possibilidade de deixar o défice subir até aos 4%, 5%…

O que o secretário-geral do PCP disse tem muita racionalidade. Porque o que ele disse foi: porque é que é 3% e não é 4%? O que ele quer dizer: quando se definiram as regras, devia haver um racional para essa definição e isso podia ser discutido e a opção poderia ter sido outra. E é verdade. Podia ter sido outra. O que o secretário-geral do PCP disse é racional. As regras podiam ter sido outras, o desenho podia ter sido outro, nós próprios dizemos que continuaremos a participar no seio da UE e no quadro da Zona Euro em todas as discussões que se vão tendo acerca de como se podem melhorar as regras. Não há nada contra que nós continuemos a analisar criticamente o enquadramento que existe. Agora, o enquadramento que existe é aquele que existe e nós nunca fomos favoráveis a uma perspetiva quixotesca que seria ‘nós vamos lá e convencemos os outros todos de que é preciso mudar isso imediatamente’. Não temos essa perspetiva. Sabemos que, acerca do que se deve fazer a longo prazo, os vários partidos têm ideias diferentes acerca da estratégia, tática e fundamentos. Isso é perfeitamente assumido. Os partidos não mudaram todo o seu programa, nem toda a forma de estar na política portuguesa e europeia, de um momento para o outro – e isso está claro para nós.

Admite que o défice pode derrapar este ano e no próximo? Isso vai trazer problemas adicionais.

Boa pergunta para fazer ao governo. Há muitos sinais de que algumas perspetivas que foram avançadas do que iria acontecer no conjunto do ano talvez não sejam muito realistas. Não vou entrar nisso. Não devemos ser alarmistas, mas também não devemos ser ingénuos. O que acontece é que quem está a pensar assumir as responsabilidades de governar o país tem de estar preparado para as eventualidades. Não para aquilo que gostaríamos que acontecesse, mas para aquilo que realmente vier a acontecer. E portanto enfrentaremos as situações que houver a enfrentar.

O PS admite rever o défice de 2016?

Não vou falar sobre o conteúdo do acordo. Parto do principio de que é a melhor técnica negocial.

Mas há garantias gerais que podem ser dadas…

Isso está a ser discutido e não vou dizer como está a ser discutido. Será proposta uma trajetória orçamental que contenha uma estratégia para o conjunto da legislatura. O nosso horizonte é o horizonte de uma legislatura, o que significa que o acordo não contém nenhum prazo inferior à legislatura. Dizer ‘ah, é para um orçamento, dois orçamentos’. O que se pode dizer é que certamente ninguém espera que nós vamos agora desenhar quatro Orçamentos do Estado. Ninguém espera. O mundo não é uma máquina, a realidade política não é determinística e, portanto, governar não é seguir um plano muito detalhado, desenhado previamente. É ter rumo, objetivos, balizas e ter método para enfrentar as contingências e para enfrentar as circunstâncias inesperadas. É isso que o acordo terá. O PS disse antes das eleições quais eram as suas perspetivas acerca da estratégia de consolidação orçamental. Também dissemos e explicamos que não temos a visão das finanças públicas que a direita tem. Entendemos que as finanças públicas se tornam sustentáveis com uma boa economia, com rendimentos das pessoas e das famílias, com crescimento, capacidade para a empresas investirem. Esta é uma estratégia diferente. O que o acordo terá de conter é qual é a estratégia, a linha, a trajetória orçamental que os subscritores do acordo pretendem aplicar e terá o método para se conseguir.


Está garantido o compromisso do PCP e BE para as medidas que forem necessárias para assegurar essa trajetória?

O compromisso é o método. Se nós estivéssemos a discutir o programa de governo de direita penso que não seria muito difícil adivinhar que sempre que houvesse uma dificuldade a receita havia de ser ou cortar nas pensões ou nos salários ou aumentar os impostos. Não será esse o método que vamos adotar. Pelo contrário. Certamente que será parte desse método a questão de saber como teremos de resolver as circunstâncias supervenientes sem cortar nos salários, sem cortar nas pensões e sem ir logo aos impostos sobre o rendimento.

Essa é uma garantia dada ao Presidente?

Não é uma garantia dada a ninguém. É o acordo entre as partes. Não estamos a falar de imposições nem de exigências. Mas de partidos que de boa-fé têm determinados objetivos – sabem que alguns são comuns e que noutros há diferenças ou divergências. Têm de conseguir definir a maior base possível de convergência para que seja possível governar o país. Ou deixando para outras núpcias as divergências ou arranjando maneira de as resolver.

Deixar para outras núpcias quer dizer o quê? Vai ser uma negociação orçamento a orçamento?

Pode ser o reconhecer de que há certos problemas do país que não vamos resolver nesta legislatura e que se calhar terão de ser resolvidos noutra altura, noutro governo, de outra maneira e com outra maioria.

Pergunto de outra maneira: quais são as garantias que o PS vai dar de que o acordo é sólido? Vai determinar as linhas gerais ou vai dizer, à semelhança de outros acordos de governo de que se comprometem a votar em solidariedade moções de censura confiança, etc…

Não vamos desenhar agora quatro orçamentos. Haverá uma trajetória que nós acordaremos e haverá um método para respeitar essa trajetória num horizonte de uma legislatura. O método e a trajetória têm de compatibilizar várias coisas, várias obrigações do Estado. Esta ideia de que podemos pensar em algumas obrigações do Estado como se estas fossem as únicas, e esquecer as outras, está errada. Uma questão essencial que distingue o que aconteceu na última legislatura e o que queremos que aconteça nesta, passa por aí. Não podemos pensar que as únicas obrigações do Estado dizem respeito ao défice…

De quais está a falar?


Dos compromissos constitucionais, de pensões, da necessidade para as pessoas e para a economia de haver previsibilidade, de não estarmos permanentemente na incerteza de que pode mudar tudo num mês, de que se vai ter mais cortes. Isso é importante e marca uma mudança de estratégia.

Tendo em conta a radicalização atual, o PS põe de parte negociar no futuro com PSD e CDS?

O PS é o partido moderado de que o país precisa neste momento. Esta direção do PS, desde que o secretário-geral é António Costa, começou por dizer uma coisa muito simples, mas que aparentemente é muito difícil de perceber para muitas forças políticas: Portugal precisa de se focar em grandes convergências de fundo, a chamada agenda para a década, que diz que não podemos estar a mudar de políticas a cada quatro anos. Não conseguimos fazer nada de profundamente relevante se, em áreas como a ciência, educação e inovação, estivermos sempre a mudar as nossas políticas. Porque é preciso continuidade e, para haver continuidade, é preciso que os partidos de direita e de esquerda e os parceiros sociais sejam capazes de se focar em convergências de fundo de longa duração. As divergências que podemos ter só fazem sentido em termos de contribuição para o desenvolvimento do país se tiverem como pano de fundo convergências mais fundamentais. Esta forma crispada, esta forma radical, agressiva de alimentar o debate é contrária a isso e nós batemo-nos contra isso.

Marco António Costa disse que o PS fez uma escolha e isso fechou por completo a possibilidade de votar qualquer coisa que venha do governo de esquerda. Isto fecha porta por completo a negociações quer com PSD e CDS?

Um partido que é responsável não anuncia uma posição de bota-abaixo sistemático, de ‘connosco não contem’. Tenho dificuldade de perceber isso em democracia. E mais. Francamente, custa-me a compreender isso associado a um certo tipo de discurso que se acantonou no espetro político à direita, onde se fala de golpe de Estado, de ilegitimidade, de usurpação, de falta de respeito pelos resultados eleitorais, onde se fala disto tudo para falar de negociações dentro do Parlamento, onde se usam estes termos para falar de conversações entre partidos eleitos democraticamente, deputados e grupos parlamentares eleitos democraticamente que estão a responder à necessidade de compromisso que o Presidente da República enunciou. Estes partidos toleram no seu espaço político um discurso agressivo, radical, em que parece que se quer mobilizar a rua para desautorizar o Parlamento eleito democraticamente – e isso preocupa-me.

A opinião de Francisco Assis tem fragilizado este caminho de António Costa?

Sempre entendi e continuo a entender o PS como uma grande casa plural. Não é agora, por estar na direção, que vou mudar de opinião. Nunca me verá a fazer uma coisa que se fez anteriormente, que foi usar o lugar de membro da direção do partido, ou usar as escadarias do Rato, para chamar desleais ou traidores àqueles que discordavam. Posso discordar imenso de um camarada meu, mas nunca lhe chamarei desleal nem traidor por ter opinião diferente das minhas. Tenho de lembrar que a Comissão Política, sem votos contra e com duas abstenções, deu mandato ao secretário-geral para prosseguir as negociações e concluir um acordo com o BE, PCP, e PEV, para concluir um acordo de base para a governação. Não há aqui ninguém que tenha açambarcado a construção da linha política do partido. O partido continua a ter órgãos, nunca deixou de os reunir.

Dito isto, tenho pena de verificar que por vezes há alguma coincidência entre alguns argumentos de militantes do PS e de argumentos da direita. Percebo mal que veja a direita replicar argumentos que surgem de dentro do PS ou a dar ideias a camaradas meus para argumentarem.

Há uma pergunta que tem de ser feita - e sem lhe responder temos uma análise incompleta da situação: com que cara íamos nós apoiar o governo da direita, fazendo o contrário do que dissemos em campanha, que foi assegurar repetidamente que não iríamos suportar um governo da direita e que queríamos ser alternativa?

Assis defende um apoio ao governo PSD/CDS…

Francisco Assis, que conheço há muitos anos, é um político brilhante, pensador fantástico, às vezes entusiasma-se com a sua própria retórica, o que é normal. A lógica do brilho intelectual também é entusiasmarmo-nos com a nossa própria argumentação. Chama a atenção para pontos importantes, para o posicionamento do PS na sociedade portuguesa. É importante. Eu concordo que em todas as circunstâncias nós temos que preservar a autonomia do PS. Não somos nem a esquerda da direita nem a direita da esquerda.

Os três partidos, PS, PCP e BE, ganham com este acordo?

Com variações eleitorais, todos os partidos subiram e desceram mais ou menos ao longo do tempo, mas o sistema político português tem sido bastante estável. E o PS corresponde a um setor do eleitorado, diferente daqueles que responde a conduta tradicional do PCP e do BE. O país pode ganhar com essa solução. Se o país ganhar, ganharemos todos. Tenho a esperança de daqui a quatro anos já não haja ninguém que diga que isto é um golpe de Estado, que já não haja ninguém que diga que este governo era ilegítimo.

Também tem esperança de que possam ir os três coligados?

Não me parece. Acho que o PS tem a sua identidade. O PCP é um partido com muitas décadas, não vai ser consumido por nenhum outro partido; o BE é mais jovem, mas é um partido que tem sabido colocar algumas questões novas na sociedade portuguesa. Todos temos os nossos papéis. Não tenho a conceção hegemónica da vida política. Não aspiro a que o PS tenha 80% do eleitorado. Acho que isso até seria mau. O que é preciso é que haja partidos diferentes.

Os órgãos do PS reúnem-se este fim de semana. São suficientes para ratificar um acordo ou é preciso um referendo?

Os órgãos do partido estão em plenitude das suas funções. São expressão da pluralidade do partido e estão em condições de tomarem todas as decisões que devam tomar. E penso até que são a forma mais apropriada de discutir esse assunto. Não estamos só a discutir se o PS deve ou não aproximar-se deste ou daquele partido. Estamos a discutir qual a solução política em concreto, o que vamos acordar, não é ‘façam lá um acordo qualquer’. Esta análise e decisão faz-se dentro de um órgão de deliberação coletiva. Um referendo é um sim ou não, mas um sim ou não a quê? Estamos a falar de coisas muito mais profundas e sérias. Quando estamos a falar de um acordo que existe, de um texto que vai ter de ser analisado na sua profundidade, parece-me melhor que haja um órgão de decisão coletiva do partido que o analise, em lugar de o pôr ao voto sim ou não da generalidade dos militantes.


(original aqui)

25.10.15

«A esquerda só não é plural nas ditaduras.»


Confesso que estou já um bocado cansado de quantos insistem que o PS não disse X antes das eleições - quando o PS efectivamente disse X - ou, em alternativa, insistem que o PS disse Y - quando o PS efectivamente não disse Y. Concretizando: não é verdade que o PS tenha escondido a sua abertura aos outros partidos de esquerda, não é verdade que o PS tenha negado a possibilidade de se entender com a outra esquerda. Há já suficientes republicações de pertinentes declarações de António Costa sobre a matéria, mas hoje venho relembrar uma entrevista que dei ao DN, em Junho, exclusivamente sobre o tema das nossas relações com a esquerda. Aqueles que estão habituados a usar a mentira como método político, façam um esforço para entender que alguns políticos fazem o que dizem e dizem o que fazem.



Desafio socialista ao PCP e ao BE: “Façam uma coligação".

Entrevista a João Pedro Henriques, Diário de Notícias, 19 de Junho de 2015.

A conversa foi marcada com um único tópico na agenda: o diálogo – ou falta dele – entre o PS e os partidos à sua esquerda. Porfírio Silva, dirigente nacional do PS com o pelouro da Comunicação, apela para que se deixe de lado a “retórica da agressividade”. E sugere ao PCP e ao BE que se coliguem para não competirem entre si “a ver quem bate mais no PS”.


Bloqueios identificáveis no diálogo do PS à sua esquerda?

Há um bloqueio de base que tem que ver com a própria noção de que a esquerda é plural. A esquerda só não é plural nas ditaduras. Ou porque está no poder e suprime as outras esquerdas ou porque está sob ditadura na oposição e acaba por não haver espaço para a diversidade. Em todos os países democráticos onde há esquerda, a esquerda é plural. António Costa expôs um entendimento novo da democracia representativa em Portugal contra a ideia de arco da governação, ou seja, contra a ideia de que o acesso ao poder está limitado a certos partidos. Todos os partidos que estão no Parlamento representam eleitores e têm dignidade para participar nas mais diversas soluções políticas. Isto até dizendo que empobrece a democracia portuguesa que haja vastos setores do eleitorado que nunca tenham tido oportunidade de participar numa responsabilidade governativa. O estranho é que, sendo esta uma mensagem de clara rutura com as razões históricas que explicam diferenças dentro da esquerda, isto não foi entendido assim. Temos manifestações com efigies de António Costa ao lado de Passos Coelho e de Paulo Portas. É inadmissível, não corresponde à verdade.

Essa é uma forma de estar mais vincada no PCP do que no BE, em sua opinião?
Poderia fazer uma análise partido a partido. Mas quando nos dirigimos a este partido ou aquele partido pode parecer que estamos a ser agressivos e eu não quero parecer isso. É verdade que o PS diz que quer maioria absoluta e é verdade que alguns partidos de esquerda veem isso como um problema Mas há uma razão para querermos maioria absoluta: porque o Presidente da República que temos fará tudo até ao fim para beneficiar a direita; e o único seguro que podemos ter para saber que o Presidente da República não pode bloquear uma situação governativa do PS é termos uma maioria absoluta. Mas entendemos a maioria absoluta como uma oportunidade – e isso sempre foi dito – para o diálogo político, designadamente com os partidos à esquerda. O sectarismo à esquerda não dificulta só o diálogo político, também dificulta o diálogo social. Queremos outro papel dos sindicatos, das confederações sindicais, queremos relançar a negociação coletiva e o diálogo social e o bloqueio à esquerda também tem um efeito negativo sobre o diálogo social.

Aparentemente, o bloqueio mais identificável é a relação com o Tratado Orçamental. Que passos podem ser dados para o romper?
Não me ponho na posição sobranceira de estar a dar lições aos outros partidos de esquerda. Não gosto que os outros partidos nos deem lições e também não quero dar lições. O que digo é que temos de nos concentrar no que verdadeiramente importa para o país. Uma questão essencial: o Estado social. Os outros partidos de esquerda dizem que se batem pelo Estado social – e ao mesmo tempo atacam o PS. Há qualquer coisa de bizarro nisto. Quem foi o principal obreiro do Serviço Nacional de Saúde? Quem foi o principal obreiro da escola pública para todos? Quem foi o principal obreiro da Segurança Social pública? Quem criou o rendimento mínimo garantido? Quem generalizou a educação pré-escolar? Quem criou uma política de ciência progressista em Portugal? É um bocadinho difícil compreender que partidos que dizem defender o Estado social ao mesmo tempo ataquem mais o principal obreiro do Estado social do que os partidos da direita. Temos um objetivo que é melhorar e defender o Estado social, torná-lo mais forte e mais útil para os portugueses e vamos trabalhar nisso. Certamente que o BE, o PCP e outros partidos que entretanto surgiram têm opiniões diferentes das nossas e isso é perfeitamente normal - mas temos de encontrar uma forma construtiva de trabalhar.

Parece estar quase a propor uma espécie de não-agressão entre os partidos de esquerda. Como que a dizer que há ideias diferentes mas era importante, para diálogos futuros, que se tirasse a agressividade da retórica…
Aí está um bom ponto, tirar a retórica da agressividade de cima da mesa Dou um exemplo. Uma das questões mais importantes dos próximos anos é a da sustentabilidade da Segurança Social. Uma das propostas mais estruturantes do PS é alargar a base de incidência das empresas para a Segurança Social: não contribuírem só com base na massa salarial, que tem que ver com quantas pessoas empregam, mas também com base nos lucros que geram. Isso é uma solução amiga do emprego, porque se tira um pouco às empresas que criam mais emprego e pede-se mais às empresas que dão mais lucro. Ora, tirando alguns detalhes técnicos, o BE já propôs isto no Parlamento. O PCP votou a favor. A CGTP há vários anos que, tirando detalhes técnicos, defende uma solução que é basicamente a mesma. E quando o PS a apresenta vêm dizer que isto é de direita. É incompreensível. Eliminar a retórica de agressividade na esquerda era um bom princípio.

A ideia com que se fica é que o PS já descartou a possibilidade de entendimentos permanentes à esquerda e já só aposta em entendimentos parciais…
Pessoalmente, não descarto nada Mas a vantagem da maioria absoluta é que permitiria entendimentos de geometria variável. Se precisamos de um entendimento firme para garantir um governo, temos um tipo de obrigação; mas se a base mínima estiver garantida, isso até permitirá aos outros partidos uma maior liberdade. Para começar a pensar no leque de possibilidades é preciso acabar com a tal retórica de agressividade. Porque parece que há uma espécie de campeonato à esquerda a ver quem ataca melhor o PS. É estranho, mas até certo ponto compreensível: quer o PCP quer o BE têm receio de dar um passo no diálogo com o PS – e depois serem atacados pelo outro, acusados de trair ou fraquejar. Mas se o problema é esse, então façam qualquer coisa juntos, uma coligação, uma frente, um acordo, e depois, como já não têm medo da concorrência entre si, então depois, se calhar, conseguem falar connosco mais facilmente. Agora, esta situação em que o campeonato é para ver quem bate mais no PS já deu maus resultados no passado e a direita é que beneficiou muito com esta má relação entre diferentes partidos de esquerda.




20.10.15

um antigo partido social-democrata e um antigo partido democrata-cristão.



1. O processo de consultas que o Partido Socialista promoveu junto de todos os partidos com representação parlamentar, visando apurar as condições de governabilidade existentes no novo quadro político, acabou por conduzir a uma aproximação com os partidos à nossa esquerda e confirmar um afastamento dos partidos à nossa direita. A meu ver, isso resulta, por um lado, dos compromissos que o PS assumiu publicamente antes das eleições e, por outro lado, da insistência do PSD e do CDS em tentarem fazer do PS uma muleta da direita. E, claro, dos movimentos que fizeram PCP e BE. Passos Coelho queixou-se, em carta a António Costa, de que o PS tinha feitos propostas (para um eventual entendimento) com base no nosso programa eleitoral – mas, pergunto: poderia ser de outro modo? O mandato dos deputados não será, basicamente, o de defenderem o programa que apresentaram aos eleitores? O PSD e o CDS mostraram não ter percebido os resultados das eleições de 4 de Outubro, pensando que bastava conversarem entre si para decidir o rumo da governação. Passaram ao lado deste facto simples: perderam a maioria no país e perderam a maioria no parlamento, tendo, assim, perdido a base mínima para a sua postura arrogante.

2. O PS está, pois, à procura de uma maioria à esquerda para viabilizar um governo estável, sólido e duradouro. Isso é importante para o PS, já que nos comprometemos a não bloquear um governo da direita se não houver uma alternativa. Parece-nos prejudicial para o país que esta coligação de direita continue a governar e, por isso, temos o dever de procurar uma alternativa. É o que estamos a fazer – e ninguém deveria surpreender-se com isto. Nunca o voto do PS viabilizou a investidura de um governo liderado pela direita; nunca houve um governo minoritário (de esquerda ou de direita) sem que o respectivo campo político fosse maioritário no Parlamento. Porque deveria desta vez ser diferente? Haveria o PS de deixar de ser o partido de esquerda que é? Haveria o PS de tornar-se a “ala esquerda” da direita? Isso, sim, seria alienar a nossa memória e a nossa história. Avançar para uma democracia completa, onde a governação pode envolver qualquer um dos partidos escolhidos pelos portugueses para o parlamento, é apenas mais uma contribuição desta esquerda democrática que somos para o aprofundamento da democracia portuguesa. E esse aprofundamento pode ser importante para combater o crescente afastamento dos portugueses face à política.

3. Entretanto, o debate público pós-eleitoral tornou evidente algo que talvez ainda não fosse claro para todos. Não são só as reacções destemperadas à hipótese de participação do PCP e do BE no governo ou na maioria parlamentar; não é apenas a qualificação dessa solução constitucional em termos excessivos e inaceitáveis, inclusivamente dando-a como um golpe de Estado; não se trata só do regresso de uma linguagem quente, ao estilo mais extremo do que se ouviu no PREC, à boca de políticos, articulistas e comentadores de direita, tratando uma maioria parlamentar conforme às regras como se ela fosse uma “usurpação” dos “direitos adquiridos” da Coligação PàF. Não é só isso, porque isso nunca deixou de existir em certos círculos ultraminoritários, designadamente nas páginas de algum jornal de nicho. O que é novo é que esse discurso radical, extremista, incendiário, provocador, passou a ser um discurso acolhido nas hostes da direita mais oficial. Aquele discurso extremista da direita, um discurso do tempo da Guerra Fria, é agora um discurso que muita direita “oficial” passou a admitir como boa táctica política. Ora, esse retrocesso é preocupante. Porque, não me sendo indiferente a existência de uma direita democrática e civilizada (ela é necessária), temos de preocupar-nos com este fenómeno recente: uma certa direita extrema, que tenta excluir da democracia representativa certas forças políticas de esquerda representadas no parlamento, essa direita radical alojou-se nas hostes da direita democrática e torna-se aí cada vez mais preponderante. Não há ninguém na direita que entenda isto e levante a sua voz contra a colonização de um antigo partido social-democrata e de um antigo partido democrata-cristão pelas vozes e pelas tácticas da direita extremista e radical?


18.10.15

ainda bem que não fui à Cornucópia este sábado.


(foto de Luís Santos)

Ontem, sábado, foi a última representação da actual série de espectáculos em que a companhia Teatro da Cornucópia apresentava na sua casa, o Teatro do Bairro Alto, o Hamlet de Shakespeare, encenado por Cintra, usando a tradução de Sophia. Havia a habitual conversa com o público e eu queria ir, mas não foi possível. Estava triste por não ter podido ir. Afinal, ainda bem que não fui.

Leio na imprensa que, nessa ocasião, Luís Miguel Cintra anunciou a despedida dos palcos no palco da sua vida: a Cornucópia.

Ainda bem que não fui, porque não sei bem como teria recebido o choque. Perder um mundo é, sempre, um grande choque. Limito-me, tentando não ser lamechas, a assinalar que Cintra nos deu muito a todos. E a mim me deu uma das experiências mais sublimes que tive em toda a minha vida.

Para não desgastar demasiado as palavras, deixo apenas um poema que lhe dediquei em 2014.



«o mundo é um brinquedo sem dono»



(para o Luis Miguel Cintra, com Lorca ao fundo)


não é o dono, Federico, que complica:
que as cheias devastem as habitações
enquanto corpos secos povoam as terras,
que os animais do campo escrevam os contos edificantes
esquecidos pelos bichos das repúblicas,
que deve isso ao dono ou à sua ausência?
quem viu, Federico, que a ferida estava no brinquedo,
no próprio brincar sem folguedo, foi o Luis Miguel,
com peças várias da tua herança,
esquecendo por momentos a teologia do dono,
arriscando mesmo um certo panteísmo
para mostrar a diversidade dos jeitos,
a pluralidade dos modos em que somos
brinquedos quebrados, sim,
mas tão-somente das mãos e juízos uns dos outros.

é terrível a vida simples:
o mundo é um brinquedo sem o conforto do dono,
mas contigo nós atravessámos a cidade como navios do deserto
transportando a água que calou por momentos os calvários dentro de nós.



(9 de Março de 2014, dia das últimas representações de “Ilusão”, no Teatro da Cornucópia.)


***

Mais sobre o projecto: http://maquinaespeculativa.blogspot.pt/2014/02/uma-ilusao-na-cornucopia.html.
Mais sobre o espectáculo: http://maquinaespeculativa.blogspot.pt/2014/02/ilusao-na-cornucopia-varios-lorcas-um.html)





16.10.15

O arco da responsabilidade.


Solipsis VII, 2013, escultura de Wim Botha (África do Sul) fotografada por Porfírio Silva


(O meu artigo de hoje no Público.)

1. A iniciativa do PS, ao encetar contactos com todos os partidos com representação parlamentar, visando mapear as condições de governabilidade no novo quadro político, sem excluir a formação de uma maioria de esquerda no Parlamento que seja capaz de apoiar de forma sólida e duradoura um novo governo, ressuscitou o debate político em Portugal. A parte desse debate que mais me interessa não é a que diz respeito aos ganhos que este ou aquele partido pode ou não obter em cada um dos cenários, mas, isso sim, o que pode a democracia representativa ganhar neste processo.

2. Sim, a democracia representativa não sobrevive apenas por efeito da inércia política; ela carece da renovação contínua do laço representados/representantes. E há muitos indicadores da premência dessa renovação.

Em Portugal, nas últimas eleições legislativas, mais de 4 milhões de eleitores abstiveram-se, 200 mil votaram branco ou nulo, 300 mil votaram em partidos que não chegaram a eleger qualquer deputado. Quase metade dos eleitores pode não se sentir representada pelo atual parlamento ou até não se rever na forma corrente de fazer política.

Na Europa, cresce a influência de forças extremistas, que menosprezam o progresso dentro do quadro institucional democrático e desestabilizam a comunidade política com o incitamento à rutura social (por exemplo, em bases racistas ou xenófobas).

Estes sinais exigem ação para melhorar a qualidade da democracia representativa. Não sou revolucionário, não defendo a transformação violenta da sociedade, nem a modificação da ordem política pela força; sou partidário de uma democracia representativa melhorada com mais participação cidadã. Como podemos fazer isso? Não havendo respostas milagrosas, há caminhos viáveis.

3. Um dos caminhos para melhorar a democracia representativa é trazer mais pessoas para a partilha de responsabilidades inerentes à governação. Uma crítica que muitos fizemos ao PCP e ao BE foi a de serem apenas partidos de protesto, encontrando em exigências maximalistas e na diabolização do compromisso o álibi para não levar suficientemente a sério os constrangimentos da ação imediata. A moção política aprovada pelo PS no XX Congresso Nacional, além de recusar a teoria do arco da governação como fórmula para excluir sistematicamente certos partidos das soluções de governo, punha o dedo nessa ferida: “O facto de sectores significativos do eleitorado não se envolverem na partilha de responsabilidades de governar representa um empobrecimento da democracia.” Além do diagnóstico, um caminho: “O momento do país exige da representação democrática, na pluralidade dos seus atores, uma capacidade para compromissos alargados, transparentes e assumidos – até para estimular e acompanhar o indispensável compromisso social.” Não valerá a pena percorrer este caminho para trazer um milhão de eleitores para o “arco da responsabilidade”, libertando-os do impasse do protesto sem consequência?

4. E a Europa, espaço de respiração da nossa democracia?

PSD e CDS evocam um “arco europeu”. Mas ele é tudo menos homogéneo, como demonstrou a direita ao alinhar na opção europeia pela austeridade pró-cíclica e ao impor a submissão como linha comportamental na UE, cortina das suas próprias preferências ideológicas. Já o PS tem-se empenhado na procura de alternativas capazes de atacar as causas estruturais do prolongamento da crise, ligadas a uma união monetária que descurou os mecanismos de coesão.

PCP e BE têm partilhado mais desconfiança do que empenhamento na construção europeia. Por aí tem passado uma divergência fundamental com o PS. Querendo contribuir para uma reorientação da política europeia, o PS recusa abordagens confrontacionais ou unilaterais, preferindo a identificação de aliados e de convergências que, sem enjeitar os nossos compromissos, alarguem o espaço dos interesses nacionais na UE. Com a estratégia Um Novo Impulso para a Convergência na Europa, proposta pelo PS e pelo PSOE e acolhida pelo Partido Socialista Europeu, rompemos com a ladainha das “reformas estruturais” da direita, sempre viradas para cortar nos direitos sociais, e escolhemos investir em reformas estruturais progressistas: a correção do défice histórico de qualificações; a modernização do Estado; a renovação urbana inteligente e a eficiência energética; a inovação empresarial; a desalavancagem sustentada da economia. Estará a esquerda da esquerda disposta a tentar esta abordagem exigente mas construtiva? Seria um feito democrático chegarmos a esse ponto.

5. Historicamente, o PS deu ao país, além de componentes centrais do Estado social, dois pilares essenciais da nossa democracia: a certeza de que o apego à liberdade se sobrepõe a qualquer outro ponto programático; a pertença à Europa num mundo onde a prosperidade é incompatível com o isolamento. Se a iniciativa do PS aprofundar a democracia representativa e alargar a frente do empenhamento na construção europeia, terá valido a pena. Não só para o PS. Para Portugal. Para os portugueses.

Porfírio Silva
Secretário Nacional do PS

Pílulas contra a amnésia política.


Um excerto do As Palavras e os Atos de ontem.




14.10.15

Defender a democracia representativa.




O resultado das eleições legislativas de 4 de Outubro deixou o PS no centro da vida política nacional, com as responsabilidades que só se reconhecem a um grande partido com capacidade para dialogar com todas as forças com representação parlamentar.

Outros estarão acantonados na posição fácil de quererem olhar só para um aspecto do problema, esquecendo, contudo, que esta situação complexa tem de ser vista de vários ângulos. O PSD e o CDS, embora constituindo a candidatura que teve mais votos, esquecem que mais de 60% dos votantes escolheram candidaturas que se opõem claramente à política de austeridade violenta que prosseguiram nestes últimos quatro anos. O PCP e o BE, embora reclamando com razão que o prosseguimento da política de empobrecimento não obteve uma maioria suficiente para governar, não podem ignorar que o país não pode satisfazer-se com uma maioria negativa, ou de bloqueio, porque não podemos somar a uma crise económica e social uma crise política. O PS não pode ignorar nenhum dos lados do problema – e, precisamente por isso, tomou a iniciativa de conversar com todos os demais partidos parlamentares para averiguar das condições de governabilidade no novo quadro político.

Nenhuma das soluções possíveis é fácil, errará quem deposite certezas absolutas em qualquer uma das saídas. Tudo o que pode ser feito nos momentos de importantes encruzilhadas comporta riscos – mas é obrigação dos políticos a sério correr riscos. Não em nome das pequenas glórias transitórias, de cargos ou de facilidades, mas a pensar no país e na evolução da democracia representativa.

Vale a pena correr riscos para impedir a captura do nosso sistema democrático por aqueles que querem sobrepor critérios oportunistas em prejuízo do quadro constitucional. E, aqui, é uma causa nobre dar combate ao argumento central da Direita para tentar impugnar a legitimidade de um governo assente num entendimento à esquerda (entre PS, PCP e BE). O argumento é que o PS não colocou essa questão a debate antes das eleições. Esta teoria já foi abundantemente desmontada por quantos lembraram que António Costa e o PS repetidamente escreveram e disseram, em discurso direto e em textos programáticos (principalmente, a Moção Política sobre as Grandes Opções de Governo apresentada às Primárias do PS e a Moção Política aprovada no XX Congresso Nacional) que recusamos a teoria do arco da governação. Isto é, afirmamos há muito não haver justificação para excluir sistematicamente certos partidos da responsabilidade de governar, e que o afastamento prolongado de sectores significativos do eleitorado da partilha de responsabilidades de governar representa um empobrecimento da democracia. A afirmação de que não governaríamos “com esta direita” foi repetida em vários formatos, teve grande destaque mediático e foi mesmo objecto de campanha dos nossos adversários. Não se pode dizer que o PS tenha escondido a sua abertura a soluções como as que agora estão a ser ponderadas, pelo que este argumento da ilegitimidade é, claramente, insustentável.

Vale a pena correr riscos para trazer um milhão de eleitores para o “arco da responsabilidade”. Se tantas vezes criticámos o PCP e o BE por se comportarem como meros partidos de protesto, e essa crítica era razoável, temos, assim, a noção clara de quão importante seria trazer os eleitores desses partidos para uma partilha de responsabilidades mais exigentes – as responsabilidades inerentes a pensar, já não apenas do ponto de vistas da oposição a certas políticas, mas do ponto de vista da construção de soluções capazes de enfrentar com sucesso o choque da realidade governativa.

Ao longo da sua história, o PS já deu muito à democracia portuguesa. Valeria a pena correr riscos para, quarenta e tal anos depois do 25 de Abril, alargar o “arco da responsabilidade” para além de um “arco da governação” desprovido de qualquer lógica à luz da Constituição e das exigências de uma democracia representativa completa.


(publicado antes no Acção Socialista Digital)


13.10.15

memórias da vida democrática.



Antes das eleições legislativas de 2011, o jornalista David Dinis escrevia no Diário de Notícias uma peça intitulada “Partido que tiver mais votos pode desta vez não governar”. Deixo alguns excertos dessa peça, para reflexão.

“E se o partido que tiver mais votos nas legislativas não governar? A questão não é nova em muitos países, mas coloca-se pela primeira vez em Portugal. (…) Sobretudo se o PS vencer, depois de Passos Coelho e Paulo Portas terem dito que não querem integrar um governo que tenha José Sócrates à frente.
A questão já passou da discussão teórica para a política. Na terça-feira à noite, Nuno Morais Sarmento disse na Renascença que Cavaco Silva não deve “dar posse ao partido mais votado” se este não assegurar um governo de maioria absoluta – que o próprio Presidente já disse ser necessário a partir de 5 de Junho. Isso abriria a porta a um governo PSD/CDS, se tivessem maioria, mesmo que os sociais-democratas não tenham mais votos nas urnas. (…)”

Vale ainda a pena citar parte de uma caixa junta ao texto principal: “Mesmo que tivesse mais votos e mais deputados, o PS poderia ver-se confrontado com a existência de uma maioria absoluta de direita na Assembleia da República. E aí, ou convence o CDS a entrar no seu governo ou arrisca-se a ver a direita juntar-se e chumbar o seu programa de governo – oferecendo-se ao Presidente da República para fazer um governo de coligação.”

Isto era em 2011. O que mudou?


10.10.15

Coerência. Recusar a "teoria do arco da governação".




António Costa no encerramento do XX Congresso Nacional do PS

Na "Moção Política sobre as Grandes Opções de Governo", apresentada por António Costa em Agosto 2014 para as Primárias do PS que tiveram lugar em Setembro, lê-se o seguinte, a concluir o capítulo intitulado "A responsabilidade do PS":

O tão abusado conceito de "arco da governação" não pode servir para justificar a exclusão sistemática de certos partidos da responsabilidade de governar. É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país e não há qualquer razão para o PS ignorar as aspirações dos eleitores representados pelos partidos à sua esquerda. Os apelos ao consenso e ao compromisso não podem ser instrumentalizados, como já foram, para tentar proteger as políticas do atual governo para lá de futuras eleições. O país não precisa de consensos artificiais e opacos para que tudo fique na mesma. O que o país precisa é de compromissos transparentes e assumidos, onde as diferenças são o ponto de partida para convergências sólidas e relevantes, em torno de uma estratégia que vá para além de uma legislatura.
Há um problema de governabilidade à esquerda, com raízes históricas e ideológicas profundas, que tem dado uma inaceitável vantagem estratégica à direita. A gravidade do momento presente obriga a enfrentar esse problema. Que uma parte significativa do eleitorado há décadas não se envolva em nenhuma solução de governo, representa um empobrecimento da democracia. Só por si, a contestação e a oposição não resolvem os problemas dos portugueses. A esquerda que
no Parlamento se senta à esquerda do PS não pode voltar a enganar-se de adversário
, porque no passado cometeu erros de avaliação que foram determinantes para eleger o atual governo PSD/CDS.
A necessidade da alternativa não permite deixar os portugueses na incerteza da governabilidade. Por isso, o PS assume a responsabilidade de construir uma nova maioria para um novo ciclo.

Depois, o XX Congresso Nacional, na Moção Política então aprovada, reafirma a recusa da teoria do arco da governação:

É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país. Nenhum conceito que vise limitar o alcance da representação democrática, como o conceito de "arco da governação", pode servir para excluir sistematicamente certos partidos das soluções de governo. Ao mesmo tempo, o facto de sectores significativos do eleitorado não se envolverem na partilha de responsabilidades de governar, representa um empobrecimento da democracia. O momento do país exige da representação democrática, na pluralidade dos seus atores, uma capacidade para compromissos alargados, transparentes e assumidos – até para estimular e acompanhar o indispensável compromisso social.

Alguns políticos dizem o que lhes convém em cada momento. Não é o caso de António Costa, não é o caso da sua determinação em fazer com que a democracia portuguesa seja para todos.




9.10.15

Está-me a parecer que há partidos que estão a levar a sério as palavras do Presidente...



No dia 6 de Outubro, o Presidente da República disse ao País o que entendia sobre o pós-legislativas de 4 de Outubro. O excerto seguinte da sua comunicação deve merecer uns minutos do nosso tempo:

Por isso, é fundamental que, tendo os portugueses feito as suas escolhas nas eleições de domingo, seja agora formado um governo estável e duradouro.
Como acontece em todas as democracias europeias, cabe aos partidos políticos que elegeram deputados à Assembleia da República revelar abertura para um compromisso que, com sentido de responsabilidade, assegure uma solução governativa consistente.
Que fique claro: nos termos da Constituição, o Presidente da República não pode substituir-se aos partidos no processo de formação do governo e eu não o farei.
Recordo que, até ao mês de abril do próximo ano, o Presidente da República não dispõe da faculdade de dissolver o Parlamento, devendo entretanto entrar em funções o novo Governo e ser aprovado o Orçamento de Estado para 2016, instrumento decisivo para a estabilidade financeira do País.
Portugal necessita, neste momento da nossa história, de um governo com solidez e estabilidade. Este é o tempo do compromisso. O País tem à sua frente um novo ciclo político, em que a cultura do diálogo e da negociação deve estar sempre presente.
Confio que as forças partidárias vão colocar em primeiro lugar o superior interesse de Portugal.

Até estou de acordo.

Não estou de acordo que só tenha consultado o presidente do seu próprio partido para verificar as condições de governabilidade.

Não estou de acordo que (numa parte que não citei) tenha feito exigências políticas que não lhe competem determinar.

Mas estou de acordo que é necessário um governo estável e duradouro. (Já o PSD parece que não está de acordo, uma vez que o dirigente do PSD José Matos Correia quer ver a Direita no governo, mas não quer ver o PS no governo com a Direita...)

Estou de acordo que este é o tempo do compromisso.

Está-me a parecer que há partidos que estão a levar a sério as palavras do Presidente, mas que não são os partidos com que o Presidente estava a contar...

7.10.15

E agora, Esquerda?



1. Os partidos também morrem. Ou por perderem internamente as condições de identidade e coesão que são indispensáveis a qualquer estrutura dinâmica ou por deixarem de cumprir externamente as suas funções no ambiente social e político em que se inserem. Uma forma de deixar um Partido morrer simultaneamente por razões internas e por razões externas é deixar que o Partido perca a sua autonomia estratégica, a sua capacidade para prosseguir os seus próprios fins nos seus próprios termos, nos tempos ditados pela vida política real.

2. Uma forma clássica de matar um partido é permitir que ele deixe de representar aqueles que prometeu representar.
Ora, nas eleições de domingo passado, nenhum eleitor votou no PS para dar continuidade a este governo.
Demos sinais suficientes de que, pelo menos com este PSD e com este CDS, a nossa função é ser alternativa. Foi isso que dissemos: se nos propomos mudar a política que eles fazem, não é com eles que isso pode ser feito.
Se o PS for dolosamente responsável pela continuação deste governo, o prognóstico é duro mas é claro: o PS vai “pasokar”. Seremos reduzidos à insignificância dos partidos que se separam dos seus eleitores e que, enredando-se em justificações mais ou menos artificiosas para tentar esconder a sua deslealdade aos que prometeram representar, são descartados como inúteis. A nossa única glória será linguística: introduzir na língua portuguesa um novo verbo: Pasokar. Mas o PS não existe para inovar linguisticamente, existe para representar os portugueses que se identificam com a esquerda democrática e com as soluções social-democratas para a crise que vivemos.

3. No actual quadro parlamentar, só vejo uma forma de fazer isto. Devemos verificar as condições de um governo sem PSD e sem CDS, não vamos deixar o Bloco e o PCP a fazerem de conta que querem apoiar um governo do PS se apenas estiveram a carregar munições para a sua retórica futura, vamos verificar o que eles querem efectivamente dizer e fazer, vamos testar aquilo a que estão dispostos. E digo: vamos fazer esse teste publicamente. O meu entendimento é que o PS deve promover reuniões formais, ao mais alto nível, com o propósito declarado de verificar as condições de um governo liderado pelo PS em que o PCP e o Bloco assumam as responsabilidades a que até hoje fugiram.
Sou de opinião que devemos fazer isso imediatamente. Quando um indigitado primeiro-ministro da direita aparecer no Parlamento com o seu programa de governo, o PS deve estar, já nessa altura, de posse de todos os dados que lhe permitam saber se tem alguma utilidade política apresentar uma moção de rejeição que tenha o carácter de uma moção de censura construtiva, na medida em que contenha as linhas fundamentais de um governo alternativo capaz de reunir apoio coerente e responsável na Assembleia da República. Já temos, aliás, o essencial do caderno de encargos, que são os quatro objetivos essenciais enunciados pelo Secretário-Geral do PS, António Costa, na noite das eleições:
• Virar de página na política de austeridade e na estratégia de empobrecimento, consagrando um novo modelo de desenvolvimento e uma nova estratégia de consolidação das contas públicas, assente no crescimento e no emprego, no aumento do rendimento das famílias e na criação de condições de investimento pelas empresas.
• A defesa do Estado Social e dos serviços públicos, na segurança social, na educação e na saúde, para um combate sério à pobreza e às desigualdades;
• Relançar o investimento na ciência e na inovação, na educação, na formação e na cultura, desenvolvendo ao país uma visão de futuro na economia global do século XXI;
• O respeito pelos compromissos europeus e internacionais de Portugal, e a defesa dos interesses de Portugal e da economia portuguesa na UE, por uma política reforçada de convergência e coesão, que permitam o crescimento sustentável e o desenvolvimento do país.
Se, em vez de encetarmos este caminho, fizermos o que os “comentadores” nos pedem, deixaremos nas mãos de outros, no momento em que seja pior para nós, a vitimização do governo, eleições antecipadas e nova maioria absoluta da direita.

4. Claro que há sempre o argumento do centro.
Ainda agora há camaradas que escrevem que o problema é que o PS nestas eleições não conquistou o centro flutuante. Mas eu pergunto: qual centro flutuante? Se estamos a falar de centro flutuante, só podemos estar a falar dos que votam ora na direita ora no PS. Então, se olharmos para os resultados eleitorais de 4 de Outubro, e se os compararmos com o histórico de resultados eleitorais em legislativas desde o 25 de Abril, temos de concluir que não ficou nada do centro flutuante na Coligação. Portanto, não havia lá nenhum stock de votos que o PS pudesse ter ido buscar e não foi buscar. Nós perdemos foi para a Esquerda, nomeadamente para o Bloco, e perdemos também para o desânimo, o que torna completamente falaciosa a ideia de que devíamos ter tido um discurso mais moderado para captar o centro flutuante – até porque o nosso discurso nunca deixou de ser moderado.
Aliás, como Partido temos de compreender algo muito importante. Somos um partido moderado e o nosso eleitorado é tradicionalmente um eleitorado moderado, e temos de agir com a moderação que nos é própria e que mantém o nosso lugar charneira no sistema político. Mas, precisamente, um dos nossos problemas é que os anos de crise radicalizaram uma parte do nosso eleitorado; as pessoas que, sentindo-se próximas do PS, foram mais violentadas pelas políticas da direita no governo, querem que o PS seja mais vociferante contra a situação. Temos de saber, mantendo embora a nossa matriz ideológica e cultural, dar resposta também a essas pessoas e não descolarmos dessas pessoas em nome de um centro flutuante que nestas eleições já abandonou a Coligação e partiu para outros voos.

5. O PS disse aos quatro ventos durante a campanha “Há outro caminho.” Não podemos desistir de trilhar esse caminho. Mais exactamente: temos de construir esse caminho, assumindo o esforço. O PS rejeitou, em moção aprovada no último Congresso Nacional, a teoria do arco da governação. Rejeitou – e bem. Porque o “arco da governação” é uma invenção da Direita para retirar a uma parte do eleitorado os seus direitos democráticos e condicionar o PS.
Está na altura de nos libertarmos desse condicionamento, assumindo que todos os votos de todos os eleitores são igualmente legítimos e que todos os partidos com representação parlamentar têm responsabilidades face à governação do país. Os eleitores dos partidos à esquerda do PS valem tanto como os eleitores dos demais partidos, os deputados do BE e do PCP são tão legítimos representantes do povo como os deputados do PS ou de outros partidos. E compreender isto é essencial para compreender o que há a fazer neste momento, para que os mais de 60% dos votos expressos contra este governo não valham menos do que a minoria que votou pela continuidade da Coligação de direita radical. Ainda por cima quando o "Presidente da República" se comporta cada vez mais ostensivamente como um mandatário do chefe do seu partido.


Porfírio Silva

(Escrevo assumindo a minha condição de Secretário Nacional do Partido Socialista e fazendo deste texto uma espécie de “declaração de voto” a favor da posição tomada nesta madrugada pela Comissão Política Nacional do PS, que mandatou o Secretário-Geral para desenvolver no quadro parlamentar diligências que permitam concretizar os quatro objectivos essenciais que o PS definiu para esta fase da vida nacional, acima enunciados.)