25.3.15

A máquina da morte (e Herberto Helder).



O Deep Blue não ganhou ao Kasparov. A morte não ganhou ao Herberto Helder. Muito depois da morte morrer ainda escutaremos Herberto Helder.
Kasparov sentiu o sabor da derrota sentado em frente a um computador programado para resolver problemas na linguagem do xadrez. A derrota era uma saliva na sua própria boca. Só isso (e não é pouco). Se algum humano não tivesse dado um nome àquele computador e àquele programa, Deep Blue, Deep Blue II mais precisamente, o campeão não esfregaria os olhos de espanto e incompreensão perante o seu fracasso. Porque nenhum humano entra em vitórias ou derrotas sem palavras que se pendurem nas suas horas. Porque nenhum humano é sem palavras, sejam ditas ou esperem caladas.
Vieram dizer-me que Herberto Helder não compareceu ao seu próprio enterramento, tendo enviado as cinzas por mão própria de pessoa amiga. Herberto Helder não perdeu a mão de conhecer a intimidade da máquina do mundo. Nem mesmo quando o programa cego da morte descobriu uma entrada. Por ser certo que só morre de espectáculo quem tenha de espectáculo vivido. E não há, para isso, palavras que de Herberto Helder possam ser ditas.


23.3.15

não há desenvolvimento sem sociedade decente.


(Fotografia por Miguel Manso, no Público.)

O Público deu à estampa ontem uma entrevista comigo. Está disponível em formato digital. Deixo apenas três pequenos excertos.

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Qual é o calendário?

O cenário macroeconómico será divulgado no fim deste mês. No princípio de Junho, haverá programa. Já têm sido avançadas propostas do PS em várias áreas: investimento, pobreza infantil, planeamento, descentralização. É óbvio que as pessoas querem saber o pacote global, os compromissos, designadamente em finanças públicas. Mas uma coisa é o querermos ser exactos, outra é o objectivo. Quanto ao objectivo, há uma coisa clara para o PS: não há desenvolvimento sem sociedade decente.

Decente?
Sim. Não podemos pensar só em termos dos resultados económicos, temos de pensar na dignidade das pessoas — por exemplo, podemos discutir se em situação de desemprego é melhor ter ou não salário mínimo, se é melhor ele ser mais alto ou mais baixo. Mas, quando 10% das pessoas com emprego estão em situação de risco de pobreza, não podemos pensar no salário mínimo apenas como uma questão económica, temos de pensar em termos de dignidade do trabalho. O mesmo com a precariedade. Um trabalhador mais firme no seu emprego tem mais capacidade para dar mais de si à empresa. Mas também é uma questão de dignidade. A incerteza permanente mina a vida das pessoas. Temos de trabalhar para mais igualdade de oportunidades, menos desigualdade excessiva, para mais autonomia das pessoas e não mais submissão a poderes económicos ou políticos. A dignidade não se negoceia.

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Mas como é que o PS prepara uma alternativa? Os gregos não estão a conseguir.
Essa ideia de que a política de austeridade é a única que é possível dentro da União Europeia é uma tese muito curiosa — porque ao mesmo tempo é a tese de uma certa direita que diz que a austeridade é que é boa e não se pode fazer outra coisa; e é a tese de uma certa esquerda que diz que na Europa só conseguimos fazer política de austeridade. Há outras forças que dizem não, não há só austeridade. Na realidade, há duas maneiras de estar na União Europeia que não dão resultado.

Uma delas é a do Governo grego?
Uma delas é a política da submissão, que é a do actual Governo português e que se resume a que alguém disse o que temos de fazer e nós vamos fazer e tentar ser os bons alunos —o que significa que prescindimos da nossa voz na União Europeia. E depois há a via da proclamação e depois logo se vê, que num certo sentido é aquilo que está a acontecer com a Grécia.

Como vê a situação na Grécia?

O que aconteceu na Grécia tem um aspecto positivo e outro que merece mais reflexão. Há um povo que expressa a recusa de um tipo de política que estava a ser seguida. É preciso voltar a afirmar que os povos têm direito a fazer escolhas democráticas, dizer: "Nós não queremos este Governo, queremos outro e temos de mudar de política." A ideia de que a política vale a pena, de que o voto pode mudar é um aspecto positivo do que aconteceu na Grécia.

E o negativo?
Creio que o Governo grego tem vontade de encetar um diálogo produtivo com a Europa. Agora, na verdade, o Governo grego não respeitou um aspecto que é central na política europeia, que é perceber que há vários níveis de negociação e que a propositura tem de ser acompanhada com a negociação. O vosso jornal trouxe uma entrevista com o professor Stuart Holland, que lembrava que o engenheiro Guterres, quando era primeiro-ministro, tinha uma técnica de convencer Kohl, o então chanceler alemão, de como certas posições que Portugal defendia eram perfeitamente compagináveis com os interesses da Alemanha. É quase um mito europeu e aconteceu várias vezes o engenheiro Guterres chegar isolado aos conselhos europeus com toda a gente contra a sua posição e no fim dos conselhos estava toda a gente de acordo com o que ele tinha defendido.

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Defende as alianças à esquerda. É contra o Bloco Central?

Penso que o PS não pode envolver-se em qualquer coisa que pareça conciliação com esta política ou com este Governo. Isso seria inaceitável. Os partidos existem para oferecer alternativas. Nós queremos uma política completamente diferente, queremos reverter o retrocesso social em curso. Isso implica pedir condições para mudar de política. Com o Presidente da República e com as atitudes que tem tido, é importante que o próximo governo seja determinado pelo voto dos portugueses e não pelas preferências ou pelas interpretações do Presidente. É muito importante que das eleições saia uma maioria que permita ao PS decidir a sua forma de governo. O PS quer ter uma maioria absoluta, e nós acreditamos que isso nos permitirá ter compromissos com outros partidos.

Mas não com o PSD?

As revisões constitucionais sempre foram feitas pelo PS e pelo PSD, e eu não renego isso. Até porque, se o quadro for este, continua a não haver uma maioria constitucional alternativa. Nós não queremos instalar a ruptura no país. Mas para que as pessoas percebam que isto não é tudo a mesma coisa, é preciso uma alternativa.

(Na íntegra aqui.)


21.3.15

Obrigado, senhora presidente!



Segundo despacho da agência Lusa de hoje, a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, propôs aos Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) a criação de um programa de mobilidade para estudantes do ensino superior e profissional. Fontes do seu gabinete terão informado que, por agora, a iniciativa se chama “Programa Pessoa CPLP”, pretendendo assemelhar-se ao programa “Erasmus”, que permite a mobilidade de estudantes do ensino superior dentro da União Europeia. A Presidente da Assembleia da República terá salientado o “inegável valor estratégico” da iniciativa.

É com muito gosto que verificamos que a presidente da Assembleia da República está atenta ao que importa. A Agenda para a Década, proposta pelo Secretário-geral António Costa e aprovada no último congresso do Partido Socialista, tem todo um capítulo dedicado a “Valorizar o Espaço Lusófono”. Aí se propõem várias ações-chave, sendo uma delas “Intensificar a cooperação científica e educativa”. Como podemos ver, se lermos, as propostas agora publicitadas pela presidente do Parlamento cabem inteiramente nas propostas aprovadas e publicitadas pelo Partido Socialista há meses. O melhor mesmo é citar:

A criação de um espaço comum para a educação, produção e divulgação científica constitui uma forte dimensão a aprofundar, na sequência de muitas iniciativas que ao longo dos anos foram sendo tomadas pelas universidades de diferentes países da CPLP. Contribui para este objetivo:

- criar linhas e programas comuns, públicos e privados, de investigação e desenvolvimento entre instituições de ensino superior, centros de investigação, incluindo partilha de boas práticas em matéria de transferência de resultados para a sociedade;

- desenvolver um espaço de cooperação multifacetado da CPLP, no âmbito da investigação científica em torno do mar, do comércio internacional, da valorização da orla costeira, da promoção da pesca e da exploração económica e ambientalmente sustentável dos recursos marinhos, eventualmente através da criação de um instituto próprio, especificamente para este efeito;

- instituir programas de intercâmbio no ensino básico e secundário;

- reforçar os programas de intercâmbio universitário, instituindo um Erasmus para a CPLP dirigida a estudantes e professores;

- desenvolver um espaço comum para o ensino à distância assente no uso das TIC e no aproveitamento das redes sociais, em colaboração com entidades públicas e do sector social.

Que dizer? O objetivo político da Agenda para a Década é criar convergências alargadas e duradouras em torno de objetivos estratégicos para Portugal, mais abrangentes do que as diferentes e sucessivas maiorias governamentais. Desse ponto de vista, é bom que agentes políticos responsáveis vão alinhando na identificação dessas linhas de convergência. Nesse sentido, a atitude de Assunção Esteves é mais inteligente do que o comportamento do seu partido, que fez orelhas moucas ao desafio do PS. Na realidade, parece que vários partidos têm dificuldade em compreender este desafio do PS: vamos desenvolver uma nova cultura política, conciliando alternativa com capacidade de entendimento estratégico a mais longo prazo.

A preocupação que fica é esta: quando certos agentes políticos dizem que o PS não apresenta propostas – podem depois assistir ao endosso das nossas propostas sem dar o devido crédito político à nossa Agenda para a Década?

Deixo a resposta à inteligência de leitoras e leitores.

(Publicado ontem no Acção Socialista, edição digital diária)

19.3.15

Guerra diz Alegre.


Ontem, no Coliseu de Lisboa, concerto "Não TAP os olhos" contra a privatização da TAP. E aí aconteceu: Maria do Céu Guerra disse "Trova do Vento que Passa", de Manuel Alegre.
(A imagem que consegui captar é má, mas são grandes as palavras.)



lugares mal frequentados.



O secretário-geral do PS anunciou (a 14 de Março) que os socialistas vão propor que o próximo governador do Banco de Portugal seja nomeado por decreto do Presidente da República, sob proposta do Governo e com audição obrigatória no parlamento.

Ontem, o porta-voz do PSD, Marco António Costa, referindo-se a essa proposta, disse que “quando toca a lugares, o Partido Socialista, se for necessário, até muda a Constituição”.

A expressão "quando toca a lugares", referindo-se ao Governador do Banco de Portugal, revela que o PSD já só pensa em "lugares". Revela que o homem que fala por Passos Coelho trata o "lugar" de Governador do Banco de Portugal como mais uma mordomia a distribuir pelo círculo dos próximos. (Será que prefere meter o cargo de Governador do Banco de Portugal no moinho da CRESAP, que o governo usa para controlar partidariamente tudo o que é nomeação?)

Mas, enfim, esta voracidade de Marco António pelo controlo não chega a ser surpreendente.

Surpreendente mesmo é que o PSD parece que até já desconfia do companheiro (é assim que se tratam os militantes do PSD) que está pelo Palácio de Belém. O Professor Cavaco Silva desdobra-se em carinhos com o governo, tendo desistido definitivamente de ser (ou até de parecer) o Presidente de todos os portugueses. Mesmo assim, Marco António está preocupado com a possibilidade de um mecanismo de nomeação cuja palavra final fica com o PR. Ou estará preocupado com o parlamento, onde também tem maioria?

Afinal, a proposta de António Costa envolve na escolha do Governador do Banco de Portugal três órgãos de soberania que estão todos, neste momento, na mão da coligação de direita: PR, Governo, Parlamento. O que acrescenta é transparência (audição no Parlamento) e cooperação institucional. É isso que desagrada a Marco António, transparência e cooperação institucional?

Até percebo: vem bem na linha que se está a tornar visível para todos no comportamento dos nossos desgovernantes, desde os ziguezagues na estória da evasão contributiva até às declarações do PM no Parlamento sobre a "bolsa VIP" do fisco. A transparência assusta esta gente.





6.3.15

Passos e o truque da compaixão.



Ao "Sol" de hoje, PPC dá uma explicação sobre os processos que teve com o fisco: "Atrasei-me por distracção e por falta de dinheiro". Só li a capa e só me pronuncio sobre esta frase: "Atrasei-me por distracção e por falta de dinheiro".

A mesma pessoa que, no caso das contribuições para a Segurança Social, andou cinco anos em evasão contributiva, que disse que não sabia que tinha que pagar apesar de ter participado como deputado no debate da lei, que tinha decidido que pagava mais tarde como se tudo fosse de opção em matéria de obrigações, que só pagou quando percebeu que estava eminente a publicação de uma notícia - agora vem, na questão dos embates com o fisco, apelar ao coração dos portugueses: foi por falta de dinheiro.

Como sabe que muitos portugueses estão com falta de dinheiro, quer colar-se a eles, como se fosse um deles.

Apesar de, politicamente, não ter piedade nenhuma por essas pessoas que estão sem dinheiro. Ainda na semana passada a coligação chumbou no Parlamento uma proposta do PS para suspender a penhora de casas de família por pequenas dívidas ao Estado. Agora, com hipocrisia, quer fazer-se humilde como os que estão com falta de dinheiro.

De facto, problemas com o fisco muitos podem ter. E têm. Não há nada de especial nisso. Atrasos, enganos, que logo se corrigem. Acho, aliás, que a oposição política não deve vir a empolar aquilo que não se sabe acerca das relações de Passos com o fisco, que, pelo até agora publicado, não tem a gravidade do caso da evasão contributiva, essa verdadeiramente escandalosa no que revela do modus operandi daquela pessoa.
Agora, outra coisa é a opacidade: parece que o PM age como se tivesse alguma coisa a esconder, não compreendendo que isso fere a sua função de governante de modo perigoso para a democracia. É a história da mulher de César, que não preciso de vos lembrar. E, depois do episódio da evasão contributiva, foi PPC quem deu ao país razões para desconfiar dele.

Entretanto, dos lados de Belém vem um silêncio tumular. Que me vou dispensar de comentar.

5.3.15

Um Contrato com Deus.



O Público faz hoje anos. 25 anos. Parabéns. Com fases boas e com fases más, desde que apareceu que o Público é o jornal que eu leio. Parabéns, repito, e continuem.
Mas, claro, como sou um chato, não venho só dar os parabéns. Deixo dois apontamentos de amigo.
Primeiro, é um apontamento crítico. A edição de hoje é magnífica. E é gratuita. Que bom, gratuita. Sim, mas faz parte das armadilhas da vida. Comprado, o jornal arranja-se sempre. Gratuito, em muitos postos de venda é preciso reservar para não ficar sem ele - logo no dia de hoje. Em prejuízo dos que normalmente compram. Eu percebo o método, mas é uma armadilha para os amigos de todos os dias. É como a história da edição digital: quem compra em papel não tem nenhuma vantagem no acesso à edição digital (contrariamente a outros exemplos que andam por aí). É preciso estimar os amigos!
Segundo apontamento, um elogio. O Público é sempre mais do que o Público. Agora está a sair uma colecção de novela gráfica. Já vai hoje no segundo de doze volumes. Não é novidade, mas em geral este esquema para vender mais é aproveitado pelo Público para fazer melhor. Gosto. Sou apreciador de Banda Desenhada (como sabem os que me conhecem) e esta colecção começou com uma obra magnífica: "Um Contrato com Deus", de Will Eisner. Leiam esta novela gráfica, uma forma intelectualemnte sofisticada de combinar desenho com palavras, e compreenderão completamente por que dizemos que BD é cultura. E, em concreto, este "Um Contrato com Deus", talvez o primeiro clássico do "género" novela gráfica, oferece uma extraordinária oportunidade de reflexão sobre a capacidade que temos para distorcer o que poderia ser importante no mundo.