31.10.14

carta de Luis Miguel Cinta sobre Pílades e o resto.



Luis Miguel Cintra escreveu uma reacção ao meu post "Pílades", de Pasolini, e de Cintra. Trata-se do meu comentário ao espectáculo que ele encenou para a Cornucópia e está agora no Teatro Nacional D. Maria II. LMC colocou-o no Facebook, porque a caixa de comentários aqui do blogue não é amigável. Eu também tentei, mas o texto dele não cabe numa caixa de comentários: não cabe em número de caracteres - e não cabe porque é demasiado interessante para ficar em posição secundária relativamente ao meu texto. Com sua autorização, copio para aqui o que LMC escreveu. Deixo, ao fundo, o link para a sua localização original.
"Pílades" pode ser visto no TNDMII até 9 de Novembro.

***

Querido Porfírio

A mesma atitude que te faz candidatar-te a interveniente da ILUSÃO (para quem não souber: o espectáculo que fizemos na Cornucópia com actores não profissionais), onde como filósofo que és, te pus de Sócrates por homenagem a ele e a ti, essa mesma razão te faz escreveres com toda a generosidade do mundo uma crítica tão importante ao Pílades, a tocar em todos os pontos importantes da peça, e ao contrário do que seria normal, felizmente achas que vale a pena: generosidade ou curiosidade, prazer de viver, tanto faz. Infelizmente é raro. Muito obrigado.

À tua maneira também tu és Pílades. Lindo, tanto trabalho, ver o espectáculo várias vezes, pensar, ler o texto, e tudo tão inútil, ineficaz… (ó eficácia, ó veneno) mas achaste que te merecemos esse amor, esse entusiasmo, e a vida é feita de coisas excessivas. Não do equilíbrio. Gostas de viver. Gostas com certeza, por infantilidade até, graças a Deus, que te tivéssemos mascarado de Sócrates. Quem te tivesse visto, como nós teus colegas no palco vimos, tão atrapalhado a tentar ralhar com o teu Efebo, percebia logo aquilo de que falo, não tens medo de te atirares para a frente. Quem não arrisca não petisca. Gosto de ti por esse lado. E uma mosca sabe que a tua crítica é a afirmação da tua amizade e simultaneamente a forma de me responderes porque , graças ao facebook, fui percebendo quanto te empenhaste também e para mim (e é um elogio) com toda a ingenuidade, na campanha recente de António Costa nas eleições do Partido Socialista e me fui metendo contigo como eleitoralista, tu que ao mesmo tempo me chamas filósofo e sabes que não voto, e te põe triste que não adira à tua atitude. Mas será ela contraditória?

Nunca tiveste de me explicar que defendias a Democracia Parlamentar. Não me surpreende, é o que acontece com alguns dos meus amigos mais velhos e sensatos, mas sabes quanto me aflige a falsidade, a mentira de todo o processo, a sua decadência: o jogo das campanhas, todo o lado publicitário, convencer as pessoas em vez de as deixar escolher, criar competição, etc,. É por razões que o sistema trai, fingindo que não lhe conheces os podres, que apoias o “nosso” candidato (sim, passa pela cabeça de alguém que eu não esteja do mesmo lado, e apesar de alguma decepção não o apoiei publicamente quando o elegemos para a Camara de Lisboa?), que te envolves nele. Por enquanto é apenas candidato dentro do seu partido… não entendo campanhas eleitorais dentro do partido como se fossem nacionais, ou já não há militantes? Tu, generosamente queres o bem, nem que seja o menor mal e se for preciso passas por cima de “pormenores”. Ir às últimas razões, isso é que te move, mas é isso que o sistema nunca permitirá, porque não pode deixar a nu as razões de fundo que lhe poriam a nu a mentira em que assentam. Não me espantaria que, aproveitando (e bem…) as tuas capacidades e o teu entusiasmo, te venham a propor um cargo de chefia onde serás melhor que outros, mas onde um dia te ouvirei a voz magoada dizer: eu queria mas não posso. Ou perceba que foges a encarar-me porque terias de confessar: eu já não sou o Sócrates da tua Ilusão.

Voltando ao nosso PÍLADES. Será possível não gostar do outro filósofo antigo, do peripatético senhor, que tanto contribuiu para a maneira como ainda hoje pensamos? A pergunta não é, infelizmente retórica. Apesar de isto ser irrefutável, é possível, sim, é possível não gostar nem deixar de gostar. È possível não saber. A grande maioria dos homens livres não sabe quem foi Sócrates. Mas há o Google, que nos dispensa a cultura por baixo preço nas telefónicas. Por isso nenhuma eficácia está em causa. Progredimos. E alguns portugueses saberão mais, acharão que se fala do senhor que presidiu ao Partido Socialista, há poucos anos no mesmo cargo que António Costa vai ocupar e que até trouxe a um pequeno almoço em Lisboa o Bill Gates, que me dizem que já não é o dono do Mundo, mas é um gajo fantástico, até anda de sapatos de borracha e jeans, super inteligente, que mandou, teve o poder de fazer ganhar tempo aos cidadãos do mundo, ou seja lutar contra a morte. Em vez de estudar, carregar numa tecla, em vez de perder tempo em transportes para nos encontrarmos com os outros, estar em contacto permanente com qualquer um. Mas associam-no também a um evidente incómodo porque foi nessa altura que começaram a sentir mais claramente que o Estado lhes estava a ir ao bolso.
E sabemos que há uma função ANIMAL que se confunde com vida: comer. E se foder se pode sem dinheiro, comer já é mais difícil. Talvez seja por aí que a felicidade se actualiza.
Falas-me do poder de. Isso é bom. Mas isso não é poder, é liberdade. Achas que o nosso António Costa, quando se Deus quiser for 1º ministro, conquistará a liberdade de? Terá, quando muito, algum poder de criar mais progresso, melhor aproveitamento dos recursos, criar mais riqueza, nem que seja para todos, mas sabemos que a acumulação de capital, que pode gerar mais progresso, não é feita para todos, e que para que isso aconteça, têm que estar de acordo os detentores do dinheiro.

Perante esta situação, mesmo tendo os dois o mesmo objectivo, a vida nos separa. É disso que o PÍLADES do Pasolini fala. Nas duas atitudes, a de Orestes e a de Pílades, na separação de que terá sido ou devia ser o par amoroso, estão simbolizadas duas maneiras de actuar. A trágica alternativa do nosso tempo. E é preciso entendê-la. É a falta de ideologia que temos de combater. Criar em cada pessoa a necessidade de entender-se, de decidir com a sua própria cabeça, ver o que o mundo contemporâneo civilizado lhe veda: a consciência do tempo onde para os seres humanos impera a Morte. “Pulvis est et in pulvis reverteris”. Porquê, perguntarão, que se lucra com isso? Menos dias bem passadas, mais desconforto. Pois, depende do que desejamos.

Sou demasiado ambicioso para não ver no Homem e na vida humana uma coisa tão extraordinária que só com uma explicação metafísica me pacifico. Só nalguma contemplação da vida e na alegria de me ter sido dado nela participar, me encontro com o meu mais profundo desejo: ultrapassar-me, que os homens vão sempre mais longe na consciência do absoluto que lhes foi dado conhecer. O meu desejo é contribuir para mudar as mentalidades, no sentido oposto ao do aperfeiçoamento técnico, ao progresso. Para que hei-de querer progresso? O que eu quero é ser feliz. A arte pode maravilhosamente dar experiências de felicidade: tu sabes do que falo, a nossa ILUSAO tê-lo-á sido. Mudou um bocadinho da maneira de pensar de muita gente. Perguntam-se as pessoas: ao Pílades que lhe acontece no fim da peça? Fica isolado, sozinho, estéril? Talvez. Não se suicida. Mas tu que viste e pensaste graças à peça do Pasolini no seu trajecto por oposição ao de Orestes, já ficaste menos sozinho, menos isolado, menos estéril. Antes de votar já saberás melhor o que estás a fazer. E terás visto uma cenografia, umas pessoas em cena, uma beleza que não está prevista na Diferença que a Democracia prevê que possa ser integrada no sistema, não se pode prever, mandar. Diferença. Mas que, eu sei, se o António Costa ganhar, será apesar de tudo mais alargada. Porquê? Porque a vida faz-se de pessoas e não de partidos ou esquemas de gestão e planeamento. E acontece que o António Costa é filho de um dramaturgo, a sua mãe soube e gostava de estar em contacto com a vida real, foi uma boa jornalista, ele próprio tem uma biografia de lutador político de oposição mesmo já dentro do regime que sucedeu ao 25 de Abril. Foi educado para além do sistema educativo. A educação, isso já me interessa. Pelos que vêm depois. Porquê? Porque a minha própria vida mo ensinou.

Fui excepcionalmente bem educado por razões alheias ao poder: o Dr. Sérvulo Correia, chefe eficacíssimo do Liceu Camões, porque tinha o poder de, e à luz de uma ideologia que lhe permitia pensar que tinha de haver elites para mandar como deve ser, para o progresso, e quem sabe se, na cabeça dele, para a felicidade, juntava nas melhores turmas, formadas pelos alunos de boas famílias ou os que tinham melhores notas, os melhores professores. Assim fui fabricado, porque não sendo possível a pura competência técnica, os professores da oposição que juntou, que a tinham, e com quem convivi, também nos ensinaram a pensar, coisa imprevista. E comigo muita gente que ocupou postos de poder ou não, ficou a querer assumir responsabilidades públicas: o António Rendas é agora o Mega Reitor das Universidades, o António Guterres é quem se sabe, o Nuno Júdice é o diplomata e o poeta que se sabe, o Ramos Machado vi-o Embaixador no Cairo, etc. Gente da minha turma. E foi assim que o poder do Dr. Sérvulo Correia de educar bem alguns alunos deu frutos bons mas não conseguiu o que, honesto e honrado como era, queria, que a História seguisse um rumo diferente. Mas o Dr. Sérvulo Correia com o seu poder de também criou, até naqueles alunos, vontade de transformar o Mundo para melhor, nestes casos, pelo menos, um sentido de responsabilidade diferente. Por certo não terá conseguido que o mesmo se dissesse de todos os alunos, sobretudo das turmas “más”. O meu sentido de responsabilidade vai mais longe ainda, ajudar a criar mudanças individuais, porque aquilo de que falamos não pode resolver-se pelo progresso e pela eficácia. Mas agradeço-lhe ter pensado em construir pessoas como primeiro valor. Os movimentos de massas assentam no desprezo por cada indivíduo. A ideia de que tem de haver leaders, de que o povo não sabe o que é bom para si próprio, isso que nos dias de revolução tanto discutimos, em vez de tomarmos o poder,, tem uma resposta muito clara, aprendida com a vida e Pasolini como artista. Porque o povo deixou de ser povo, o pro gresso não o deixou ser quem era e a sua maneira de viver já não corresponde ao seu corpo, ao seu desejo. As casas não são as que ele inventou, a velha cidade tornou-se gigantesca, as pessoas não têm relação directa com a natureza, as suas relações não são as que inventaram, são copiadas dos modelos que a civilização, o progresso, inventou para fazer dinheiro, para lhes trocar a liberdade por dinheiro. O prolongamento do actual regime de Democracia Parlamentar e a negociação de uma aparente paz só adia o problema. Aí está porque ponho em cena o PÍLADES de Pasolini, e vou de facto à loja do chinês onde se compra mais barato sem publicidade pelo meio, correndo o risco de falhar, porque alguma coisa de automático se interpõe entre o projecto da companhia (que teve neste caso a cumplicidade até do Director do Teatro Nacional S. João), e aquilo a que se poderia chamar o público: as pessoas que gostaríamos que o vissem. Isto porque o espectáculo não conseguiu despertar a curiosidade das pessoas do Porto, ou apenas de muito poucas. Em contrapartida, provavelmente por razões circunstanciais, ou porque dependeu de pessoas diferentes, ou porque a cidade de Lisboa é diferente, em suma , porque um país se faz, para além do regime político, sobretudo de pessoas vivas, cada uma diferente, com pessoas e não com percentagens de números de espectadores, em Lisboa há muita gente que nesta primeira semana de espectáculo tem tido curiosidade pelo menos de nos ir ver.

Penso sincerissimamente que alguma mudança radical do sistema político terá de acontecer, porque o Democracia Parlamentar já não sabe responder à nossa sociedade. A Democracia fez-se para espelhar a vontade de cada cidadão. O actual sistema político serve-se da democracia para anular cada cidadão num massificação que destrói a felicidade humana e substituiu-a pelo poder de compra. No meu caso a maneira de colaborar na mudança, de amar a vida e os que viverão depois, é agir de acordo com aquilo a que a minha educação me levou, o gosto de cada pessoa como mistério sagrado. Isso passa por ajudar a criar desejo de um absoluto que eu nunca verei mas talvez alguém um dia veja. Combater o cinismo. A mentira social.

Dizes que sou “encenador filósofo”. Mas juro que não sei nada de filosofia. Penso, ok, isso é verdade. Mas tu que és filósofo ainda não pensaste no que te digo? Ensino o Padre Nosso ao Vigário?

Escolhemos maneiras de actuar diferentes. A nossa discordância é um exemplo de como o tema e a função deste espectáculo, são pertinentes nos dias que vivemos. Não tem um carácter elegíaco, tem uma capacidade de intervenção que o sistema (político, pois) lhe nega. Obrigado pelo que até agora não previste mas já fizeste com a participação na campanha António Costa. Obrigado por me teres feito responder-te. Faz parte daquelas coisas que não entram nas urnas de voto, a lealdade para com quem nos é leal, o respeito pelo outro. A liberdade.
Ser cristão ajuda depois a não ter medo de ser vítima.

Luis Miguel Cintra

https://www.facebook.com/porfirio.silva.56/posts/4516612290099?pnref=story

17.10.14

“Pílades”, de Pasolini, e de Cintra.


Esteve no Teatro Nacional São João, está agora no Teatro Nacional D. Maria II, o mais recente espectáculo do Teatro da Cornucópia, “Pílades”, de Pasolini. Vi no Porto, vi o ensaio geral em Lisboa. No Porto estava frio e a sala é um pouco escura, mas gostei. Em Lisboa, gostei mais, gostei muitíssimo. Venho recomendar esta ida ao teatro. E, entretanto, deixo-vos as reflexões que me provocou mais este trabalho do meu encenador preferido, Luis Miguel Cintra. Até porque, julgo eu, não perdem nada em pensar no que vão ver antes de o verem.




UMA TRAGÉDIA POLÍTICA

Como se fosse um texto grego clássico, “Pílades”, de Pier Paolo Pasolini, é como uma continuação da Oresteia de Ésquilo. Nessa peça da história mitológica grega, Agamémnon, rei de Argos, regressado da guerra de Tróia, vai ser assassinado por sua mulher Clitemnestra, de conluio com o seu amante Egisto, que tinham tomado conta do poder na cidade. Orestes, apoiado por sua irmã Electra e seu amigo (ou mais do que amigo) Pílades, vinga o pai Agamémnon, matando a mãe Clitemnestra e o seu amante Egisto. Esta peça começa quando os corpos de Agamémnon e Clitemnestra foram retirados da praça e sepultados – e quando os protagonistas Orestes, Electra e Pílades vão dar corpo a um drama político.

Pasolini, um comunista, cristão, heterodoxo em qualquer dos casos, com uma sexualidade que, a seu tempo, era também ela heterodoxa, escreveu “Pílades” em 1966 – e isso nota-se nos pormenores, mas a temática é mais pungente agora do que nunca. Não é um texto sobre a Grécia antiga, é um texto sobre a política total no seu tempo de “ocidental”. Vale a pena, contudo, começar pelo que é mais estreito e menos universal, porque também ajuda a entender. Argos é a Itália, o momento é depois da Segunda Guerra Mundial e da morte violenta de Mussolini, a democracia é o Partido da Democracia Cristã a governar apoiado no Partido Socialista (que sempre foi um dos partidos mais à direita na “família” socialista europeia) e desse modo (em homenagem à guerra fria) excluindo do poder o Partido Comunista Italiano, um dos partidos mais fortes e mais arejados de ideias que existiram no comunismo ocidental. Numa peça que é, sem rebuços, filosofia política escrita por um militante de tantas causas, este contexto imediato não deve ser ignorado – mas as questões mais profundas são outras.



A TRISTEZA DEMOCRÁTICA

Orestes, filho de reis, vai ser o novo chefe de Estado. Eleito. Um “príncipe democrata”. Um parlamento em funções. Pílades vai desiludir-se com esta democracia e fazer-se líder revolucionário. Electra, que começou por apoiar Orestes, vai liderar a reacção. O princípio desagregador é a própria realidade desta democracia – que está aqui para representar a “democracia burguesa”, esta democracia em capitalismo, como continuamos a ser.

(APARTE. Aviso aos mais jovens: usamos aqui uma linguagem que já não se usa, uma linguagem que alguns dirão, com um certo desprezo, ser “marxista”, mas que era a linguagem corrente de muita gente que pensava o mundo quando Pasolini viveu, escreveu e morreu.)

A democracia que aqui está em causa é uma democracia importada: Orestes inspirou-se em Atenas para a instituir em Argos, tal como a Itália copiou a América vencedora da guerra. É uma “democracia americana” que se impõe, o que desgosta Pasolini, como diz o Coro: “O rendimento de cada um aumentou para o dobro. As lojas da nossa cidade multiplicaram-se: os nossos produtos impõem-se nos mercados mundiais, como se tivessem sido abençoados e trouxessem consigo o sinal prepotente da nossa nova fortuna. As casas velhas foram deitadas abaixo e novos prédios se erguem entre as barracas que restam. O dinheiro que corre é como a juventude que não tem tempo de pensar noutra coisa a não ser em si própria. E todos nós participamos nesta ânsia de crescimento. Cada novo lucro é mais um passo a separar-nos dos velhos Deuses e da sua injustiça.” Sim, são estas coisas de que todos gostam que desgostam Pasolini na democracia, porque assim se vê, com tristeza, o que faz a turba gostar da democracia.

A democracia perde vida e torna-se rígida, o formalismo perde substância, como mostra o Coro quando diz para Orestes: “tu és o inventor da tua liberdade; (…) mas (…) para nós, essa liberdade tornou-se, pelo contrário, uma lei: tomou o lugar da religião, e da religião lhe vêm as certezas absolutas”. E acrescenta, a verbalizar o problema do poder dentro da própria democracia, que se trata “de um poder democrático que nós, na realidade, detemos pela força”. E o povo sente esse poder como força que lhe pesa, sem que lhe pareça fazer muita diferença a reivindicada democraticidade.
Pílades vai cansar-se de uma democracia que prolonga as velhas divisões e que se tornou um esqueleto sem carne. Pílades vai tornar-se um líder revolucionário.

O revolucionário fala contra Orestes em nome dos excluídos da democracia capitalista, aqueles que, alegadamente, não estão melhor do que no antigo regime: “não entendes aqueles que continuam como no tempo dos Reis, aqueles que trabalhavam nos teus campos, como ainda trabalham, que nada têm para contrapor à sua velha fé selvagem, nem sequer a riqueza ou um sonho de riqueza”. O projecto de Pílades, na medida em que haja um projecto (o que me parece duvidoso) é um projecto de igualdade: “Cairão todas as barreiras que se crêem inabaláveis, como essa barreira que separa os jovens dos velhos. (…) Cairão depois as barreiras entre operários e intelectuais.” Só que, por vezes (ou essencialmente?) o revolucionário, que é também reaccionário, pode simplesmente ser uma força de negação: “talvez não fale em nome de coisa nenhuma, mas somente contra tudo”, “não há em mim acto ou palavra que não seja de negação”, e isso pode ser, afinal, apenas a negação da Razão (a isto voltaremos).

Tendo este Pílades sido inventado por Pasolini, a revolução de Pílades não é muito certinha segundo os bons manuais. O exército de Pílades: “camponeses, na sua maior parte; o resto, operários do mais pobre que há, desempregados, imigrados dos campos cheios de filhos; e os bêbados, os que exploram as mulheres, os ladrões.” Bom, mas esta, sendo uma descrição de Orestes, pode estar eivada de má vontade. Ou então Pasolini, na sua radicalidade, pessoal e política, já não se contenta com o proletariado como sujeito da revolução, passa para o “lumpenproletariat”, que os próprios comunistas não acolhem na sua visão da revolução.

(APARTE. Como já ninguém fala desta maneira, façamos a tradução: o “lumpenproletariat”, numa certa linguagem marxista, designa sectores da população que, embora miseráveis nas suas condições de vida, são também desprovidos de consciência política, ou sequer consciência dos seus próprios interesses como grupo social, e, por isso, prontos a serem manipulados pela burguesia contra o próprio proletariado, sendo, ainda, susceptíveis de caírem numa certa imoralidade que repugna os valorosos revolucionários.)

(APARTE. Neste espectáculo, não sei bem onde está o “lumpenproletariat”: está no exército irregular de Pílades, como pretende Orestes, ou está numa posição excêntrica a todo o esquema de poder da peça? Luis Miguel Cintra, como tantas vezes faz, intercala em “Pílades” outros textos de Pasolini e, com esse recurso, introduz uma “senhora”, assumida por um rapagão um tanto atoleimado, que anda por ali grande parte do tempo sem pescar grande coisa da tragédia em curso. A tragédia política à frente do seu nariz e ela a pescar e a cantar: será essa personagem o “lumpenproletariat”, dormente face às lutas do mundo?)



Seja como for, os chefes de facção, mesmo o chefe da facção revolucionária, são, todos, gente bem, gente da alta. Quando Pílades avança sobre a cidade, para levar a sua revolução a Argos, fala como o intelectual burguês que faz de chefe do proletariado, que acha que lhe cabe pensar em nome desse proletariado: “Agora que estou prestes a conquistar-te como um rebelde, como chefe de gente que não pode pensar em ti como eu penso – eu, que estive do lado dos poderosos – sinto que nunca te amei com tão incurável amor.” Pílades é mais um burguês a querer ser a vanguarda do proletariado, ao ponto de declarar a sua condição: “um homem rico sonha ser um homem pobre”. Será como querer ser operário, em vez de intelectual, para poder pertencer ao comité central do partido do proletariado?

Já se disse: Orestes é um democrata: “Agora, um tribunal, também ele livremente eleito entre o povo de Argos, irá decidir se devo continuar a ser Rei, e como reinar.” É isso, a partilha do poder, que escandaliza a reaccionária Electra, que acautela Orestes contra esse “quebrar a corrente que nos une a um passado onde reina a luz”. E o passado tem os seus instrumentos, que Electra identifica: “Sim, vou ter comigo os escravos voluntários dos tiranos”.


Electra representa os que, perante a desilusão com o novo regime, se viram para o Passado, para os Reis que foram o poder, para o culto das Fúrias, para a religião. O Coro, que julgo representar neste momento o parlamento, os eleitos que governam, rendidos como estão a tomar a razão de Estado como a nova religião, aconselham Orestes a fazer uma aliança com Electra. Isso seria como uma espécie de aliança entre diferentes partidos burgueses, para fazerem face à revolução, que o Coro diz assim, falando para Orestes: “Nós, teus companheiros, e os companheiros de Electra, somos pessoas iguais: nada de real nos divide.” E a própria Electra vai propor essa aliança, com a contrapartida negocial de repor as antigas divindades, “a reconstrução do templo e do culto das Fúrias”. E Orestes aceita a aliança. O príncipe da deusa Razão, Atena, aceita uma aliança com a irracionalidade, em nome da preservação do seu poder: “Vamos precisar, irmã, que elas [as Fúrias], de baba na boca, nos incutam, aos gritos, sentimentos de amor irracional e de morte idiota: amor à pátria, morte aos nossos pobres inimigos”. Electra resume assim a aliança: “As Fúrias no templo, Atena no Parlamento…” e o Coro (o próprio parlamento) aprova, incentivando Orestes: “Abraça a tua irmã reencontrada e com ela a parte mais ardente e obscura da cidade”.


O PRAGMATISMO DISSOLVE A DEMOCRACIA

Em resumo: as alianças que permitiram a democracia desfazem-se todas. “O povo | unido | jamais será vencido” – ou nem por isso. Pílades colaborou com Orestes na instauração do novo regime e depois separa-se. Também a reaccionária Electra foi aliadas de Orestes, como este diz: “minha irmã Electra, que tanto me ajudou (…) a matar os tiranos, hoje já não está connosco. (…) os seus amigos e aliados encontrou-os ela, precisamente, entre os que outrora nós ambos mais odiávamos”. E, afinal, Electra acaba aliada a Orestes para conter Pílades.

(APARTE. Convém, de vez em quando, ir fazendo as contas ao quadro político italiano do tempo de Pasolini, que foi mencionado no princípio deste texto. E, se vos parecer bem, vão fazendo paralelos com o mundo de hoje.)

Como se desfez tão larga aliança? Mais: como se fazem e desfazem alianças tão estranhas e tão contrárias? Como se tornam amigos os inimigos e inimigos os amigos? É o pragmatismo excessivo da luta pelo poder. Pílades, no fim, depois de consumada e compreendida e aceite a sua derrota: “Mas eu, dando-te ouvidos [à Razão, Atena], lutei simplesmente para me apoderar do poder! E agora vejo que essa é a mais culpável das culpas. A ideia de me apoderar do poder (embora não propriamente por ele) é, só por si, a mais culpável das culpas…” Se a luta pelo poder explica tudo, então explica demasiado; e, explicando demasiado, não explica nada. Como se diz, ficamos apenas com o poder pelo poder.

“O poder pelo poder”, eis um chavão.

Não desdenhem tão apressadamente dos chavões.

Vejam.

Eis outro chavão: é o problema da alternância sem alternativa.

É que, afinal, são todos um bocado iguais de mais. E como isso pode fazer mal à democracia…
Pílades é Orestes, essa é que é essa. O Coro diz a Orestes: “nós não temos medo de Pílades; temos medo do que, em Pílades, provém de ti. Acaso existiria Pílades, se tu não existisses?”

Pílades diz aos seus revolucionários, quando Orestes aparece para conversações: “Eu, companheiros, não sou um bárbaro… E não é por acaso que o meu maior inimigo é o meu maior amigo.” Ele está a referir-se a Orestes. Nessa mesma conversa, Orestes diz a Pílades: “és parecido com Electra!”

(APARTE. Esta peça de Pasolini é umas das que ele queria para um “teatro da palavra”. Um teatro sem sombra de entretenimento, um teatro de ideias, um combate pela alma do mundo, ou, talvez melhor, pelas vísceras do mundo. Podemos pensar que essas ideias de estética e de política são coisa de esquerdistas radicais. Mas não é assim necessariamente. Lembremo-nos do “teatro estático” de que fala Fernando Pessoa, no que foi publicado como Páginas de Estética e de Teoria Literária, e talvez não andemos longe: “Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui acção — isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma acção; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a acção nem a progressão e consequência da acção — mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações.” Neste Pílades há conflito, mas não nos é mostrado verdadeiramente um enredo a desdobrar-se, no sentido em que não nos é dado a ver como de um estado do mundo se passa a outro estado do mundo. Os sucessivos estados do mundo simplesmente sucedem-se. Somos nós que imaginamos a acção, quer dizer, o que tiveram de fazer as personagens para que o mundo tenha mudado. O que teve de fazer o mundo para que as personagens mudassem. Podemos deduzir mais ou menos a acção a partir do que é dito, mas essa responsabilidade é nossa e é pesada. É-nos mostrada a palavra e uma sucessão de quadros mais ou menos estáticos e, por isso – apesar de Austin, “How to do things with words” – fui buscar a designação de Pessoa, porque este teatro só se compreende pela pura palavra.)

E como falar de política hoje, a partir de um teatro político?



A POLÍTICA É SUJA?

Luis Miguel Cintra, o encenador-filósofo, tem dito, a propósito deste espectáculo, que “a política tornou-se numa coisa suja” e, julgo que sintonizado com Pasolini, tem passado a mensagem de que este “Pílades” quer dizer que “o mal é o poder”.

Parece-me estreita essa leitura. E julgo que, passada assim, essa visão de Pílades nos empurra para um certo desaproveitamento do significado desta peça.

Há muito quem queira que os cidadãos se desinteressem da política. Que o teatro não vá, inocentemente, fazer-lhes o jogo. Porque esse desinteresse enfraquece a política democrática face aos que preferem (e têm meios para) comprar a política e as decisões políticas. Para enfrentar essas forças, temos de recusar essa armadilha da antipolítica. Temos de, como dizia o outro, “sujar as mãos”. Sujar as mãos é correr o risco de sermos muito menos do que perfeitos. Correr o risco do erro e da dor que ele provoca. Temos de correr o risco da política. Isso passa, também, por recusar uma visão unilateral do poder.

Quando Pasolini e Cintra dizem que “o mal é o poder”, estarão a falar do “poder sobre”, do domínio de alguém sobre alguém. Concordo que não é a esse aspecto do poder que uma política democrática deve aspirar. Mas há outro sentido de “poder”. É o “poder de”, o poder de fazer, o poder de realizar – esse poder que falta às pessoas e às comunidades a quem tem sido roubada a autonomia, que têm sido paralisadas pela incerteza que gera medo e paralisia. É este “poder de” que temos de reconquistar, porque está no cerne da própria política democrática, porque só esse “poder de” pode fazer com que não sejamos sufocados pelos poderes não-democráticos que puxam os cordelinhos.

E, já agora, sempre invoco Pasolini contra Pasolini e Cintra, neste particular que é o maldizer o poder. Pasolini, escrevendo sobre este seu texto, comentou a dado momento a dualidade das deusas tradicionais, que ora são Fúrias (divindades de irracionalidade selvagem e reaccionária), ora são Euménides (divindades, também da irracionalidade, mas que se associam à Razão como o seu necessário contraponto em capacidade de sonho e de sentimento). Ora, Atena, a deusa da Razão, tem uma estranha relação com as divindades da irracionalidade, que são capazes de se mudar de Fúrias em Euménides e de Euménides em Fúrias. E, assim, acontece que as Euménides, que num dado momento apoiam Pílades e a revolução, apoiam depois Orestes e o “progresso” burguês. Ora, sobre isso escreve Pasolini: “Pílades, assim, abandonado pelas deusas (observe-se que são as mesmas deusas da democracia liberal a inspirar a revolução socialista) não tem mais nada a fazer, e só lhe resta uma única verdade: o horror pelo poder.” Quer dizer: o horror pelo poder, que Pílades manifesta, é o amargo de boca da derrota.

Assim, esse horror pelo poder é outro ingrediente da impotência do revolucionário, onde acaba esta história. Consumada e, afinal, compreendida a derrota, diz Pílades: “Pergunto-me a mim mesmo porque é que, sendo uma tragédia, não se fecha com novo sangue? Pergunto-me a mim mesmo que sentido tem a intriga de uma vida que tanto buscou algumas verdades desfazer-se agora em pura e simples incerteza?” É essa fuga da política, como aceitação da derrota, que recuso. Embora a compreenda.




A TRAGÉDIA DA RAZÃO É O ESQUECIMENTO DA CARNE

Esta é, como se vê, uma tragédia política. Democracia burguesa, reacção, revolução. Há, contudo, uma camada mais profunda: a razão e o irracional como forças subjacentes à vida das comunidades políticas.

Atena, a nova divindade, trazida por Orestes, aquela que Orestes reclama tê-lo iluminado, é a Razão. Orestes vem para libertar a nação da pobreza e da religião: ele julga poder fazer isso porque Atena é uma deusa sem religião. O que subjaz à tragédia política é a tragédia da razão – por isso a peça conclui com uma frase de Pílades: “Maldita sejas tu, Razão, malditos todos os teus Deuses, e todos os Deuses.”

O racionalismo hipertrofiado entende-se como o substrato do progresso. O opositor está nas “forças mortais do Passado”. O passado é entendido como um peso, de que precisamos livrar-nos. A Razão é fulminante, dirige-se como uma seta para a verdade, seja lá isso o que for. As intervenções de Atenas são sempre repentinas: “Em pouco tempo – no espaço de uma noite! – a cidade cresceu, mais do que em séculos e séculos de vida.” A razão-imperial não quer saber da história. A revolução tão-pouco. Esquecem-se de que muito do passado fica no futuro (não somos instantaneamente reprogramáveis como se fossemos robôs).

(APARTE. A “Revolução Cultural”, de Mao Zedong, na China, começou em 1966, ano em que Pasolini terá escrito esta peça, que foi dada à estampa em 1967.)

Para uma certa concepção da Razão, os seres humanos concretos nunca são sujeito da história, mas apenas o seu material. A astúcia da razão, em tonalidade hegeliana, fala pela boca de Orestes dizendo a Pílades: “Pois fica sabendo, que pela segunda vez na nossa história, Atena me apareceu… E que por ela soube desse futuro que agora precisamente se concretiza. Não és tu que deves fazer a verdadeira revolução de Argos, mas sim ela, como fez a primeira. Apareceu-me lá no fundo da realidade, da real realidade, Pílades, a que nasce da acção do homem e da história não sonhada.” Quer dizer, o que faz o correr da história são as consequências não intencionadas, sequer pensadas, da acção humana no mundo e entre os outros homens.

O tema da luta entre a Razão e o Passado, vejo-o como o tema das instituições. E esse tema é o parente pobre, impensado, desta tragédia política. (Essa é, aliás, a nossa habitual tragédia política: que o pensar das instituições seja atropelado pela ideia de que “o mal é o poder”.)

O passado podia ser o compromisso entre os cidadãos de uma mesma comunidade, a solidariedade, o laço que não se troca por mais eficiência económica. O respeito pelo passado podia ser, por exemplo, o respeito pelo sistema de pensões, em vez de tratar os “velhos” e os reformados como aqueles que estão mais à mão de cortar. Esse “respeito pelo passado” seria respeito pelas pessoas concretas. Mas o reaccionário confunde o Passado com o regresso a um tempo anterior, como afirma Pílades: “Para todos nós, a maior atracção é o Passado, pois é a única coisa que conhecemos e que amamos verdadeiramente.”

Curiosamente, passa por Orestes aquilo que verdadeiramente dilacera o significado das instituições, que é a luta entre, por um lado, uma concepção hiper-racionalista da acção, em que a razão se impõe instantaneamente, como se fosse transparente, unilateral e inequívoca, sem lugar para incertezas, e, por outro lado, uma concepção mais modesta da razão, uma concepção histórica que compreende uma elaboração lenta e sinuosa das razões e das acções de uma comunidade nas suas instituições. A concepção hiper-racionalista da acção justifica que, em nome de um raciocínio, se destrua a base normativa da vida de uma comunidade e os direitos das pessoas como pessoas. Por exemplo, em nome da suposta eficiência do “mercado livre” podem destruir-se todas as protecções dos trabalhadores numa relação laboral, com a desculpa de que, a prazo, todos ganharão com isso – sendo que essa “promessa” é garantida por uma determinada teoria económica “racional” e apesar de nunca em lugar algum essa promessa ter sido cumprida. Já uma concepção mais modesta da razão e da acção não aceitaria aventuras que, justificadas por teorias económicas, destruam os laços comunitários enraizados naquilo que, nas instituições, é “tradicional”. A cesura entre estas duas concepções de razão passa por Orestes, o qual, por um lado, se reconhece como herdeiro das instituições enquanto tradição (“sou filho de Rei, e por isso muito mais imerso no negrume e nos sanguinários deveres das velhas normas”) e, ao mesmo tempo, quer romper com as instituições para aceitar o deus racional que é Atena, porque “ela pede-vos esquecimento. Pede-vos que esqueçais o quê? O nosso Passado. Mas o Passado não pode morrer! Então ela… Transfigurou as mais feras e obscuras divindades do Passado…”. Atena, declara ele, libertou-o do passado.

De onde vem esta incompreensão das instituições? Vem da falta que a Razão tem de Carne. Atena, a deusa Razão, é aquela que “não tem pais”. Aquela que, contrariamente às pessoas e aos outros deuses, “não nasceu (…) de um amor entre dois desconhecidos”, “nada sabe do calvário que é uma carne a crescer”, que “recordações, não as tem: apenas conhece a realidade”.

Essa pobre realidade que deve merecer que sujemos as mãos.

Sujai as mãos. Ide ao teatro, ver este portentoso “Pílades”.

Ide.

(Também o cenário da Cristina Reis é lindíssimo. Nele as palavras pensam. E nós com elas.)

(As fotografias são de Luís Santos.)

Para saber mais, no sítio da Cornucópia.

14.10.14

uma "Ilusão" para lá do teatro.


Luis Miguel Cintra, actor, encenador e director da companhia Teatro da Cornucópia, encenou, no início de 2014, o espectáculo ‘Ilusão’, a partir de textos de Federico García Lorca. No entanto, o 119º espectáculo da companhia foi muito distinto dos anteriores, pois do seu elenco fizeram parte 59 não actores, amadores e estudantes de teatro.
O filme “Ilusão” documenta esta singular experiência, para além de dar a conhecer a forma como Luis Miguel Cintra acolhe, recebe e dirige os seus novos cúmplices para construir e dar vida à ‘Ilusão’ de Lorca.

'Ilusão' de Sofia Marques no Doclisboa'14
Segunda-feira, 20 de Outubro às 19:00
Cinema São Jorge em Lisboa




8.10.14

Afinal o "arco da governação" é...


Afinal o "arco da governação" é uma task force para organizar a abertura do ano lectivo, coisa que se revela muitas vezes necessária quando a direita governa - já que os respecivos ministros não são capazes.



Da grandeza. (Seguro renuncia.)


Seguro renuncia ao mandato de deputado.



António José Seguro vai-se embora de deputado?
Está no seu direito. Qualquer deputado tem o direito de renunciar ao mandato. Os seus eleitores ficarão representados por quem o substituir e pelos demais eleitos pelo seu círculo.
Seria de esperar de AJS ficasse e contribuísse para o trabalho do grupo parlamentar do partido que lhe deu uma oportunidade de servir o país ao mais alto nível, como líder do maior partido da oposição (independentemente da opinião que tenhamos acerca da forma como aproveitou essa oportunidade) ?
Bom, se isso era de esperar ou não já depende da ideia que façamos da grandeza da personagem. Que se tenha ido embora, evitando dar o seu contributo para sarar feridas (por exemplo, mostrando que as acusações de traição e de deslealdade tinham sido apenas excessos de campanha), merece um juízo acerca da grandeza que tem ou que lhe falta.
Nesse ponto, não me desiludiu.
Por vezes, confundir as questões políticas com questões pessoais tem efeitos pesados para as pessoas.


6.10.14

a obra de fomento e a obra financeira.



Glória Rebelo, numa crónica de 2011 agora republicada no seu livro "Estado Social e Austeridade", das Edições Sílabo (obra que recomendo), cita António Sérgio:

«A obra de fomento precedeu a obra financeira. É essa a verdadeira cronologia económica... É pavoroso o nosso défice financeiro, mas deem-nos boa economia e logo teremos boas finanças. Enriquecer Portugal, eis todo o problema financeiro.»

Dácadas depois, é preciso voltar a dizê-lo. E, mais do que isso, é preciso fazê-lo. Para deixarmos de chamar "austeridade" ao que é apenas empobrecimento. E para ultrapassarmos a operação ideológica de confundir as causas com os efeitos.


riscos de implosão do sistema político.


Olhem para o que eu digo, não olhem para o que eu faço.



5.10.14

quem é esse qualquer coisa Costa?


Clicar para aumentar. (Sim, porque a resposta à pergunta pode ser uma questão de visão.)


(roubado ao Rui Bebiano)

3.10.14

é difícil mudar o mundo. (Roberto Mangabeira Unger)


Roberto Mangabeira Unger, filósofo da sociedade e da política, professor em Harvard, ex-ministro de Lula, disse em Janeiro deste ano:

Esta abordagem à sociedade e à história, que eu estou a defender, está associada à rejeição de dois erros - ou duas heresias – acerca da estrutura. Um dos erros é o que se pode chamar "A Heresia Hegeliana ". Essa consiste na ideia de que há uma grande convergência ou sucessão histórica e que, no final, teremos uma estrutura definitiva. Ora, a verdade é que nunca há uma estrutura definitiva, porque nenhuma disposição da sociedade e da cultura pode alguma vez fazer justiça a quem nós somos, à nossa capacidade de experiência, de visão, de produção, de associação. Depois há a heresia oposta, que se poderia chamar a heresia "romântica" ou "Sartreana". Esse ponto de vista é que não podemos realmente destruir o poder das estruturas, mas podemos moldá-las temporariamente por meio do amor romântico e da vida pessoal ou por meio da multidão nas ruas em protestos políticos – revoluções. Nós poderíamos ter esses interlúdios de disrupção da estrutura e nesses interlúdios tornar-nos-íamos verdadeiramente humanos e, posteriormente, as estruturas - mais uma vez – ruiriam com o toque de Midas, matando o espírito com o regime. Ora, estas duas heresias são ambas deficientes em termos de esperança e de visão. E, o que eu acredito é que ao longo do tempo podemos criar estruturas que nos permitam envolver-nos nelas sem nos rendermos a elas, e que a criação de tais estruturas está intimamente ligada aos nossos mais fundamentais interesses materiais e morais. Afinal de contas, nós somos os seres que são formados pelo contexto mas que sempre transcendem o contexto.

A entrevista de onde retirei (e traduzi) este excerto pode ser lida e ouvida aqui: Roberto Unger on What is Wrong with the Social Sciences Today?

Roberto Mangabeira Unger ainda pode ser ouvido hoje em Lisboa (cf. cartaz).


2.10.14

greve de zelo.



Para irem pensando nisto, reproduzo um excerto do meu livro Podemos matar um sinal de trânsito? (Esfera do Caos).

***

Estando a falar de hábitos, há uma distinção que seria interessante introduzir. Hábitos e rotinas. A hábitos no seio de organizações chamamos rotinas. Rotinas são comportamentos que estabelecem certas interacções entre posições (ou papéis) dentro de uma organização. Essas rotinas preenchem os espaços deixados vazios pelas regras, já que as regras formais não podem antecipar todos os pormenores da vida real. Naquela empresa, as regras estipulam que as facturas se entregam ao contabilista – mas, na prática, elas são sempre entregues ao secretariado do contabilista. Se alguém insistir em falar pessoalmente com o contabilista para lhe entregar pessoalmente um monte de facturas perfeitamente banais, será considerado inconveniente, além de estar a desperdiçar o seu tempo e o dos outros. Um aspecto importante é que não interessa se hoje é o senhor António ou a menina Helena quem está a secretariar o contabilista: a rotina não distingue a pessoa, mas a posição na organização, o papel. Que a posição, ou o papel, sejam um fato que sabemos distinguir de quem o veste, nota-se em inúmeras circunstâncias corriqueiras da vida: sei como devo dirigir-me ao senhor da bilheteira do teatro, sei como ele se comportará perante a minha pretensão de comprar um bilhete, sei como ele fará a gestão do acto de pagar o bilhete, apesar de não o conhecer pessoalmente, não lhe reconhecer o rosto nem saber o nome. Interajo com ele como ocupante de uma posição, ele faz o mesmo comigo. As rotinas organizacionais também separam (razoavelmente) a posição e a pessoa que ocupa a posição. Inúmeras rotinas, hábitos organizacionais, mantêm a funcionar autênticas máquinas feitas de humanos. Coisa que as regras explícitas, inscritas em algum normativo, só por si não poderiam conseguir.
Um determinado fenómeno, apesar de relativamente raro, pode ajudar-nos a compreender este carácter das organizações. Falamos da greve de zelo. Chama-se "greve de zelo" a uma prática de contestação laboral usada em certa altura em alguns países. Coisas de uma luta de classes sofisticada, em que não se encontram (as classes) a meio da noite para traulitarem mutuamente nas respectivas cabeças – antes procuram maior subtileza, pela qual conseguem, mais do que amassar a classe antagonista, encher-lhe o peito de espanto e a cabeça de dificuldades de compreensão. Numa greve de zelo, os grevistas não se recusam a trabalhar: limitam-se a aplicar de forma estrita todas as regras formalizadas (escritas nos regulamentos) que enquadram a sua actividade. O resultado de uma greve de zelo não é que as coisas funcionam melhor, como qualquer racionalista da acção haveria de esperar. Esses pensam que nas regras miúdas e precisas é que está o segredo do bom funcionamento da máquina do mundo. Pelo contrário, o verdadeiro resultado de obedecer total e exclusivamente a todas as regras escritas e bem assentes é... a inoperância!
É que, no domínio exclusivo das regras formais e bem firmadas, faltam aquelas práticas que, fugindo à letra dos regulamentos, fazem funcionar as coisas. Por exemplo, quando um funcionário subalterno toma uma iniciativa sem autorização superior, porque “sabe” que ela seria dada se o chefe estivesse presente, apesar de, em rigor, arriscar uma sanção por avançar sem uma assinatura no papel apropriado. A assinatura virá. E normalmente vem. Mas emperra tudo se eu insistir que espero pelo chefe. E isto multiplicado a cada momento dos dias longos e complicados de qualquer organização humana sofisticada, por muito burocrática que seja. (Merleau-Ponty escreveu que “a instituição não é apenas o que foi fixado por contrato, mas isso mais funcionamento”.)
Há quem confie que a acção dos humanos segue as regras escritas que aparecem nos manuais de procedimentos (relativos, por exemplo, à autorização de pagamentos dentro de uma organização, como se esse manual fosse comparável a um manual de reparação de uma máquina). Esses racionalistas da acção, tão ingénuos por demasiado admiradores da razão, nunca compreenderão o segredo de uma greve de zelo. Não estranha: muitos gestores e políticos também não percebem. E, não percebendo, descuidam "ninharias" e "perdas de tempo" que consistem em envolver, mobilizar e interagir com os agentes.

***

Abordo muitos outros aspectos da nossa vida social e institucional, sempre com exemplos práticos apresentados de forma simples, neste livro que vos deixo. Depois não digam que eu não avisei.