Uma das coisas aborrecidas da política é que, por vezes, não podemos deixar passar em claro certos comportamentos que, verdadeiramente, preferíamos ignorar. Mas não ignoramos por uma simples razão: não beneficiar o infractor.
De que falo? De coisas estranhas que estão a acontecer no PS.
Recentemente, alguém - não vou citar nomes, leiam as notícias - atacava António Costa nesta onda: "só se chega à frente agora, porque sente afinal que já estamos próximos do poder". O ponto desse tipo de "argumentos" é substituir o debate político pelo ataque de carácter. Certamente AC não perderá tempo com tais miudezas. Eu, pelo contrário, que gosto pouco das falsificações da história, e não deixo de dar importância a certas miudezas, não me consinto ficar calado nesse assunto. Lembrando, a título ilustrativo, dois ou três episódios, que são públicos, que julgo mostrarem que António Costa, se alguma característica tem é a de gostar de pegar em "bicos de obra" para lhes dar a volta.
O primeiro caso de que me lembrei foi Loures. A candidatura de AC à Câmara de Loures, em 1993. Na verdade, quase ganhou a presidência para o PS; foi por pouco. Mas a batalha que tinha aceitado travar era uma batalha considerada praticamente perdida à partida, porque se achava então virtualmente impossível derrotar o PCP naquele bastião. AC prestou esse serviço, brilhantemente (lembram-se da corrida entre o burro e o Ferrari?): não ganhou dessa vez, mas lançou sementes que vieram, posteriormente, a dar bons frutos. Porque se entregou sem reservas a uma batalha dificílima. Pronto, podem dizer que foi apenas "um serviço ao partido" - mas, havendo por aí quem se julgue único em dedicação, vale a pena lembrar.
Outro caso é Lisboa. Hoje, no que toca à Câmara de Lisboa, há por vezes uma certa tendência para pensar apenas que a posição do PS na capital é confortável: vencer com mais de metade dos votos, como aconteceu na última eleição, é obra. Só que alguns parecem pensar que isso foi oferecido de bandeja. Mas não: a primeira candidatura de AC à presidência de Lisboa aconteceu num ambiente muito incerto, com a área política do PS dilacerada por dissensões graves a nível nacional, com uma espécie de PS-bis a concorrer como independente em Lisboa. E, depois das eleições, AC tem de gerir em minoria uma câmara com gravíssimos problemas, a dívida e não só. Só com fraca memória se pode ignorar o percurso que transformou uma manta de retalhos política numa maioria alargada e plural, que tem dado à cidade uma governação moderna, responsável e progressiva. Sem dúvida, um serviço à cidade.
Acho que estes dois casos seriam suficientes para ilustrar o perfil de um político que não fica à espera que alguma coisa lhe caia no colo. Mas quero ainda dar um outro exemplo, que classifico claramente como um grande serviço ao país.
Hoje, ao contrário do que acontece em outros países europeus, Portugal não sofre de uma profunda divisão em torno da imigração. Apesar das dificuldades, e da óbvia sobrevivência de fenómenos sociais de racismo, Portugal é tido como um país que trata civilizadamente os estrangeiros que acolhe para aqui viverem e trabalharem. O quadro legal é do melhor que há na cena mundial e, socialmente, não há, sequer, lastro para uma extrema-direita racista. Nem, concomitantemente, os partidos "do sistema" têm sido levados a tiradas populistas para aplacar os radicais à custa dos imigrantes. Que isto assim seja - é bom para o nosso país. Ora, nem sempre esteve garantido que isto viesse a ser assim. No início dos anos 1990, quando Cavaco Silva era primeiro-ministro e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras causou, com um excesso de zelo que não interessa agora apurar de onde vinha, um caso escandaloso como o de Vuvu Grace (uma jovem zairense que chegou ao aeroporto da Portela para visitar o marido com a filha de 6 anos e foram retidas pelo SEF por não terem bilhetes de regresso), António Costa não virou a cara. Como advogado que era, levou o caso a tribunal com uma providência cautelar (bem sucedida). E, como deputado por Lisboa, foi, por esses anos, um dos impulsionadores de uma atenção consistente e persistente à questão da imigração, no tempo em que sob o manto do cavaquismo se navegava em águas turvas (desalojados de Camarate, os dentistas brasileiros, a eliminação do asilo pedido por razões humanitárias). Paulatinamente, mobilizando (com outros, claro) as comunidades imigrantes para a participação política e desenvolvendo um esforço notável (e bem sucedido) para nos poupar a um dos problemas mais delicados noutros recantos da Europa. Com políticas certas a tempo e horas.
Muitos políticos por essa Europa fora têm fraquejado no tema sensível da imigração. Portugal pode agradecer a vários dos seus políticos do Partido Socialista (com destaque para o José Leitão, que foi Alto Comissário para essas questões) ter pacificado e consensualizado essa frente. E António Costa foi um dos que meteram as mãos nessa tarefa, sem medo de ela queimar, como era o risco evidente.
Dito isto, parece-me de uma desfaçatez inominável que se fale de António Costa como se ele tivesse passado a sua vida à espera que o levem ao colo. Como ele, provavelmente, é demasiado decente para andar a lembrar isto aos esquecidos, achei que tinha eu obrigação de falar. Neste caso, é um gosto reavivar a memória dos que precisam. É uma espécie de caridade aos desmemoriados do PS. Espero que aproveitem. E que decidam parar a campanha de calúnias. Porque é tempo de os socialistas se poderem dedicar em exclusivo aos problemas do país. Engrandecerem-se por resolverem democraticamente as suas diferenças. Porque o melhor do PS é a sua pluralidade.