Às nove e pouco da manhã, na biblioteca universitária do campus de Komaba, nesta cidade quente e húmida de Tóquio, ligo o computador, abro o Público e leio: “
Cavaco veta acordo PSD/CDS para a refundação do Governo.” Lá terei, então (enquanto, madrugada em Lisboa, quase todos os meus concidadãos dormem) de ir ler o seu
discurso na íntegra.
1. Cavaco surpreendeu. E não devia ter-nos surpreendido. Tínhamos obrigação de saber que quem não presta pode sempre fazer pior do que aquilo que já conhecemos – especialmente, quando isso pareça, aos olhos de tal espécime, uma boa escapatória para si próprio. Cavaco, depois de morto, a querer fazer de conta que está vivo, é ainda pior do que um Cavaco assumidamente morto e enterrado. Agora, estando embora morto e enterrado, com toneladas de terra por cima (toneladas cavadas por si próprio, com a sua mesquinhez e cegueira auto-induzida), conseguiu meter uma mão de fora da tumba e abaná-la. Para agitar o fantasma.
2. A quem não gosta deste governo (escuso de repetir que não gosto), pode até parecer simpático que Cavaco tenha desta vez virado a sua traiçãozinha para Passos e Portas. Sim, traiçãozinha, porque um Presidente normal explica-se atempadamente, em privado, aos seus parceiros, fazendo ver claramente, a tempo e horas, quais os seus critérios; não deixa correr o marfim, ouvindo e calando, como quem engole, apenas para induzir uma falsa confiança nos interlocutores, os quais, desprevenidos, serão mais facilmente apanhados na esquina seguinte. Aparentemente, Cavaco deu aos chefes do governo a ilusão de que mantinha a sua ideia sempre repetida: se o parlamento quer o governo, o presidente nada pode contra. E, depois de os apanhar nessa ilusão (a ilusão de que a sua palavra vale alguma coisa), mata o governo e guarda o cadáver no frigorífico, com um mordomo a vigiar as entradas e saídas. Porque foi isso que Cavaco fez ao governo e ao país: dizer ao mundo que Portugal deixou de ter governo. Parece, afinal, ser essa a ideia de estabilidade que Cavaco fermenta na sua cabeça de estadista de junta de freguesia. O que, aliás, é incongruente com aquele ponto do discurso em que o Presidente compra a tese do governo de que estamos a começar a dar a volta, quando fala dos “sinais de recuperação económica surgidos recentemente”. Se o governo tem o apoio parlamentar que Cavaco achava garantia bastante, e ainda por cima começa a recuperar a economia, a que vem este volte-face presidencial?
3. Cavaco passa uma parte importante do seu discurso a raciocinar contra a realização de eleições antecipadas durante a vigência do resgate, sempre com o argumento dos mercados e dos credores – sem nunca explicar que esse argumento contra eleições só piorará depois de terminar a vigência do resgate. Sim, porque por enquanto estamos fora dos mercados: a variação das taxas de juro é um indicador do que poderia acontecer se estivéssemos nos mercados, mas sem consequência directa nenhuma, porque não estamos. Depois estaremos nos mercados e todos estes receios virtuais serão receios reais, pelo que o argumento para não realizar eleições agora se transforma, por deslizamento, num eterno argumento contra a realização de quaisquer eleições em que os mercados não possam ditar o resultado.
Outro argumento extraordinário contra a realização de eleições antecipadas é que elas “processar-se-iam num clima de grande tensão e de crispação entre as diversas forças partidárias”, o que “tornaria muito difícil a formação, após o acto eleitoral, de um governo com consistência e solidez”. Cavaco Silva, o político português que mais uso fez nos últimos anos dos discursos violentos contra os seus adversários políticos, e que mais pactuou com aquilo que há muito tempo chamo “a política do ódio” (designadamente durante o governo de Sócrates), está preocupado com a crispação (eu também estou, mas já estava quando Cavaco era o seu representante institucional) e espera… espera o quê? Espera que a crispação nasça de uma estadia nas termas? Depois de ter andado a dormir?
4. Na verdade, Cavaco quis dizer outra coisa e promover outro cenário. Cavaco quis, em primeiro lugar, colocar oficialmente em cima da mesa o segundo resgate. Depois do fracasso desta austeridade ideológica, que o partido e os amigos do presidente a seu tempo apoiaram com entusiasmo, estamos sem pinta de sangue e vamos precisar de outro resgate (malgrado os tais sinais de recuperação económica, que, por alguma razão, Cavaco entende que não nos salvarão). E quis, em segundo lugar, desqualificar o PS: dizendo que “as eleições legislativas antecipadas comportam o sério risco de não clarificarem a situação política “, o que Cavaco quer dizer é que o PS não é alternativa e, mesmo que mude a correlação de forças, isso não vai resolver problema nenhum.
5. Contudo, como poderia ser normal em condições normais, e como é corriqueiro com Cavaco, ele não diz exactamente aquilo que quer dizer. Especialista como é em dizer uma coisa e o seu contrário, para mais tarde poder usar uma das citações disponíveis consoante o que ditem os astros, o Presidente tem de inventar uma tese que pareça ser o seu ponto. Neste caso, serviu esta: “o País necessita urgentemente de um acordo de médio prazo entre os partidos que subscreveram o Memorando de Entendimento”. E diz e repete: “trata-se de um compromisso de salvação nacional”. Na prática, esse compromisso traduziria um requisito já acima abordado: é preciso neutralizar as eleições. As eleições terão de se fazer (por esse lado, não resultará reclamar a alteração da Constituição), mas é preciso capturar desde já o seu resultado: o tal “acordo de médio prazo” assegurará “desde já, que o Governo que resulte das próximas eleições poderá contar com um compromisso entre os três partidos que assegure a governabilidade do País, a sustentabilidade da dívida pública, o controlo das contas externas, a melhoria da competitividade da nossa economia e a criação de emprego”. Quer dizer: tem de haver um acordo para definir qual será a política do país qualquer que seja o resultado das eleições. Uma tese que nem é nova nesta cabeça presidencial.
6. Ou, mais exactamente, é preciso partir o país em dois, em torno apenas de duas opções políticas de fundo e globais: queremos a política da troika ou não queremos a política da troika. É preciso amarrar o PS ao bloco da política da troika. E esperar que esse bloco ganhe as eleições, com um programa de governo que será o mesmo desde que os partidos pró-troika tenham maioria no parlamento, quaisquer que sejam os perdedores relativos e os vencedores relativos. Quer dizer: o que Cavaco quer é que a única maneira de mudar de política seja eleger um governo do PCP e do Bloco. É esse o entendimento que Cavaco faz da sua função presidencial. Tendo até agora achado que não podia fazer nada, porque o governo tinha maioria parlamentar, acha agora que a sua função é partir o país em dois e transformar as opções políticas numa escolha binária: PSD+CDS+PS ou PCP+BE.
Qualquer ideia de que um Presidente a sério deveria tentar desbloquear a situação criando condições para matizar posições e encontrar saídas que ainda não estejam queimadas pela luta política (como seria encontrar uma base política para uma viragem no sentido do investimento e do crescimento com alívio dos sacrifícios a quem eles doem mais) – não passa pela mente de Cavaco. Entretanto, Cavaco vai adiantando que dará “todo o apoio a esse compromisso patriótico”: ainda não o viu, mas já o apoia? Não, já deve saber o que quer, está escrito e guardado na cómoda do Possolo, só falta chamar Passos, Portas e Seguro e recolher as assinaturas. Por alguma razão se trata de um governo de salvação nacional: não pode estar sujeito às opções dos partidos, tem de ser inspirado na sapiência do supremo árbitro que está em Belém. E, claro, na teoria económica que nos trouxe aqui.
7. Quase a terminar, depois de reduzir o actual governo ao estado de governo interino, Cavaco declara: “Chegou a hora da responsabilidade dos agentes políticos.” Deveria ter chegado essa hora há mais tempo. E Cavaco deveria ter começado por dar o exemplo. Agora é tarde. Este discurso é um discurso passa-culpas. Cavaco prolonga a crise governamental e aprofunda-a. Com consequências que serão, decerto, pesadas. Parece que só na “Na semana passada”, com “Os efeitos (…) no aumento das taxas de juro e na deterioração da imagem externa de Portugal”, é que “Desse modo, os Portugueses puderam ter uma noção do que significa associar uma crise política à crise económica e social que o País atravessa”. Isto já é alguma coisa: Cavaco, finalmente, percebeu que nós percebemos que ele tinha sido ligeiro quando, na vigência do anterior governo, aproveitou como pôde para deixar criar uma crise política que, de facto, levou ao primeiro resgate. Falta, contudo, o teste do algodão: o que fará Cavaco se os mercados reagirem ao seu golpe, e à manifestação presidencial de que estamos agora com um governo interino, aumentando as taxas de juro? E se o mundo não compreender a excelência do seu guião? Demite-se, finalmente?
Adenda. Perguntam-me: "e então?". E, então, nada. A não ser que Seguro aceite a molhada, Cavaco terá de aceitar o governo que a maioria PSD/CDS lhe dá ou dissolver o parlamento e convocar eleições. Ou seja: só Seguro pode dar satisfação a esta aventura cavaquista. Se não der, Cavaco que se desembrulhe da barafunda que inventou.