21.12.12

Vertigo e as Investigações Filosóficas.


Fala-se de Vertigo, de Alfred Hitchcock, um filme de 1958:
É tido como uma das obras-primas da cinematografia mundial e, este ano, foi considerado o melhor filme de todos os tempos numa votação da prestigiada "Sight & Sound", a revista mensal do The British Film Institute, mas a Comissão da Classificação de Espectáculos da Secretaria de Estado da Cultura portuguesa acaba de lhe negar o estatuto de Filme de Qualidade, denuncia um comunicado desta sexta-feira da Midas Filmes.

Não acontece só em Portugal, mas em Portugal acontece que há muitos gabinetes com gente fechada lá dentro que só tem uma ocupação: julgarem aquilo que não percebem pela medida do que a sua cabeça entende.
Ainda há pouco, ao almoço, dizia que alguns avaliadores que por aí andam, se lessem desprevenidamente, à época em que foram escritas, as Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein, diriam que "aquilo" não é filosofia.

20.12.12

garotadas na cultura.


Richard Westall, A Espada de Dâmocles (1812)

As reacções à demissão em bloco do conselho de administração da Casa da Música, motivada pelos cortes orçamentais impostos à instituição, vêm de vários quadrantes e são unânimes no receio de que possa vir a ser posto em causa um projecto cuja relevância ninguém questiona.

Esta gente que de momento ocupa o governo do país usa, como martelo-pilão para deitar tudo abaixo, a ideia de que o Estado deve ser abstinente. Mas, entretanto, sempre que pode, usa qualquer pequeno poder estatal a que possa chegar para estragar a obra alheia, para desperdiçar o esforço acumulado e sedimentado pelo tempo e pelo empenho dos outros. Não se trata já apenas de desrespeitar os compromissos de anteriores governos; trata-se de, sem mudar de governo, um qualquer secretário de Estado chegar e atirar às urtigas o que disse há minutos o anterior secretário de Estado do mesmo governo, do mesmo (primeiro-) ministro, com o mesmo programa (ou falta dele). Usam o Estado como o seu brinquedo, os tostões que têm em gaveta como espada da Dâmocles a pesar sobre qualquer coisa que ainda mexa. Fazem tudo para nos convencer dos malefícios do Estado: os malefícios do Estado quando tomam eles conta dos cordelinhos.

19.12.12

ora agora danço eu.


Nuno Santos, ex-director de informação da RTP, queixou-se de que o Conselho de Administração da RTP lhe teria movido um processo disciplinar com vista ao seu despedimento por causa de declarações por ele prestadas no Parlamento. E depois queixou-se de que o Parlamento não protege os cidadãos que são lá chamados para serem ouvidos. (Já aqui escrevi sobre isso.)

Agora, Nuno Santos (o mesmo?!), depois de declarações dos seus antigos director-adjunto Vítor Gonçalves e subdirector Luís Castro na comissão parlamentar de Ética, diz que vai processar os “autores das difamações produzidas no Parlamento”. Mas, então, Nuno Santos já não está extremamente preocupado com a liberdade de expressão dos depoentes em audições parlamentares? Se ele pode processar A ou B por declarações no Parlamento, por que não há-de a RTP poder fazer o mesmo? Claro, há ainda uma diferença: um processo judicial não será secreto, como parece até agora ser o processo disciplinar movido pela RTP contra Santos. Mas, quanto à possibilidade de perseguir ouvidos no Parlamento, Nuno Santos esqueceu-se depressa das suas próprias dores. Um imbróglio que se adensa.

13.12.12

A Frente da Ciência.


Tenho mesmo de citar extensivamente Boaventura de Sousa Santos, hoje, na Visão.

***
Portugal foi o país da UE que nos últimos vinte anos mais progrediu nas diferentes áreas da ciência. Os números falam por si. A despesa em investigação em % do PIB em 1995 foi 0.5 e em 2010, 1.6. Em 1990, havia 8000 investigadores, em 2010, 46.256, o que correspondia a 8.3 investigadores por mil ativos (a média da UE é 6 e a da OCDE, 8), a maior taxa de crescimento da Europa. Em 1990 realizaram-se 337 doutoramentos e em 2010, 1660. Quanto à produção científica referenciada internacionalmente no Science Citation Index, em 2000 somava 2602 artigos e em 2010, 8224. As patentes submetidas à European Patent Office foram 8 em 1990 e 165 em 2009. O crescimento do número de investigadores gerou uma dinâmica no setor privado, onde a integração de investigadores foi igualmente galopante: passaram de 4.014 em 2005 para 10.841 em 2009.

O significado mais óbvio destes números é que eles mostram o caminho que Portugal estava a tomar para fugir à fatalidade de sermos um fornecedor de mão-de-obra barata. À medida que o sistema nacional de ciência se ampliava e os avanços científicos eram paulatinamente transferidos para a indústria e serviços, alterava-se a especialização internacional da nossa economia de modo a aproximá-la da que é típica dos países mais desenvolvidos. A mão-de-obra altamente qualificada manteria a vantagem comparativa do país já que, apesar de bem paga, seria mais barata que a correspondente noutros países europeus.

Este esforço deu um salto qualitativo a partir de 2000 com a criação dos laboratórios associados (LA). Os LAs resultaram da conversão de alguns dos melhores centros de investigação (com classificação excelente), aos quais foram dadas melhores condições para se expandirem, contratando investigadores exclusivamente dedicados à investigação e criando estruturas administrativas que lhes permitissem colaborar com outras instituições, celebrar contratos ou concorrer a financiamentos europeus. Isto permitiria ainda acabar com a situação perversa de Portugal, um dos países menos desenvolvidos da Europa, contribuir com mais dinheiro para os fundos de ciência da UE do que aquele que os seus investigadores obtinham em projetos. Pode discutir-se se outros centros mereciam ter sido convertidos em LAs (situação que pode corrigir-se a qualquer momento, e aliás conduziu, ao longo dos últimos 12 anos, ao alargamento do leque inicial), mas o que não pode pôr-se em causa é o êxito da aposta nesta inovação do sistema científico e tecnológico nacional. Foram até agora criados 26 LAs. Integram 28% do total dos investigadores doutorados; entre 2007 e 2012, obtiveram 88% dos financiamentos europeus do 7º programa-quadro (122 milhões de euros) conseguidos pela totalidade dos centros de investigação. A renovação do pessoal científico tornada possível pelos LAs explica que a maioria dos seus investigadores esteja abaixo dos 45 anos de idade, enquanto nos outros centros a maioria está acima dos 50 anos.

O orçamento de 2013 deveria testemunhar a determinação de o país continuar a investir na investigação científica. Sendo objetivamente os LAs a alavanca mais dinâmica desse investimento, resulta incompreensível que o próximo orçamento da FCT assuma uma atitude hostil em relação aos LAs, expressa em duas medidas. Por um lado, enquanto a FCT sofre um corte ligeiro de 4,4% (aliás compensado pelo aumento dos fundos comunitários), os LAs sofrem um corte médio de 30%, o que, nalguns casos, os torna insustentáveis. Por outro lado, apesar de os LAs terem o seu estatuto renovado até 2020 (com avaliações intercalares), fala-se agora de uma outra “refundação” de todas as instituições científicas a partir de 2014 que pode comprometer esse estatuto. Tudo isto cria instabilidade que compromete um dos investimentos mais reprodutivos que o país realizou nos últimos vinte anos. Não esqueçamos que, dos 1200 investigadores contratados ao abrigo do Compromisso com a Ciência, 41% são estrangeiros. A fuga de cérebros já começou. A FCT está a tempo de evitar o pior, até porque não se trata de ir buscar mais dinheiro ao orçamento. Trata-se apenas de o distribuir com critérios de eficiência.


Boaventura de Sousa Santos

alguém já viu o amor?



AMOR, de Michael Haneke.

Um filme tremendo.
A ternura, e o cuidado (que é o amor concreto), estão lá; mas o realismo sem pieguices (que é a verdade da matéria) é avassalador.
Um tremor de terra.
Não deixem de ver, mas cuidem-se. Levem uma mão amiga para agarrar.

12.12.12

a teia das banalidades escorrega pelo topo da República.


Nuno Santos, ex-director de informação da RTP, é chamado à Assembleia da República para esclarecer os representantes da nação sobre assunto que os deputados acharam de suficiente relevo público para tanto. Obviamente, deu, na audição perante a comissão parlamentar de Ética, Cidadania e Comunicação, o seu ponto de vista sobre as matérias em apreço. Depois disso, e, segundo Nuno Santos, por causa disso, os patrões directos da RTP, quer dizer, o Conselho de Administração, moveram-lhe um processo disciplinar com vista ao seu despedimento. A sequência é recente: Nuno Santos pediu à presidente da Assembleia da República que se pronunciasse sobre a protecção que é dada aos cidadãos chamados a depor em comissões parlamentares, considerando que foi alvo de um "julgamento sumário" dentro da empresa por declarações prestadas no Parlamento. Assunção Esteves respondeu hoje que a imunidade parlamentar de que gozam os deputados não se aplica ao ex-director de informação da RTP, Nuno Santos.
Extraordinário!

Há muita coisa sobre este caso que eu ignoro. Não sei se a "disciplina militar" que o ministro Relvas diz adoptar no respeito pela independência da Administração da RTP passa por alguma espécie de secretismo também "militar": quer dizer, ele controla mas fica tudo "militarmente" (ou será "militantemente"?) secreto. Não sei se o relatório do procedimento disciplinar contra Nuno Santos substanciará motivos relevantes para o despedimento que nada tenham a ver com as suas declarações no parlamento, mas acho estranho que esse relatório seja tão secreto num assunto de tão grande interesse público. Não sei quem falou verdade, meia-verdade ou verdade-nenhuma na história de mostrar imagens de pessoas na rua à polícia no recato de uma convivência estranha entre órgãos de informação e polícias. Não sei se Nuno Santos foi leal com o parlamento na forma como o informou sobre o caso. E é lamentável que se tenha desenvolvido tão rebuscado jogo de sombras em torno deste caso. Agora, independentemente disso, o comunicado da presidente da Assembleia da República, se é o que o Público noticia, é ridiculamente um tiro ao lado.

Que a imunidade parlamentar de que gozam os deputados não se aplica ao ex-director de informação da RTP, não parece carecer de um comunicado da segunda figura do Estado para ser coisa conhecida. O que queríamos saber era: e então? Quer dizer: se for verdade que o homem foi retaliado por ter dado o seu ponto de vista no parlamento, podemos admitir isso? O parlamento pode ser cúmplice disso? O parlamento pode fazer de conta que não percebe que de hoje em diante quem seja chamado perante os representantes do povo não está em condições de dizer de sua justiça? Eu não exijo que Assunção Esteves tenha uma solução para o problema, que nem é simples nem poderia ser resolvido apenas pela sua institucional pessoa. O problema até tem outras vertentes, que a senhora presidente menciona. Por exemplo, o direito de não auto-incriminação, que já foi usado para justificar silêncios, mesmo que parcelares. Decerto que não esperávamos da segunda figura do Estado um milagre, mas, pelo menos, que mostrasse perceber que há ali uma dificuldade, um assunto a enfrentar e resolver. Mas não: responde-nos com banalidades. Quanto tempo teremos de esperar para que Assunção Esteves comece a imitar o estilo vazio-a-tender-para-nada de outro palaciano ilustre? Quanto tempo demorará até a segunda figura do Estado falar sobre a meiguice das vaquinhas, imitando o estilo da primeira figura?


O LUGAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NA NOVA UNIVERSIDADE DE LISBOA.


2º WORKSHOP: “APLICAÇÕES DA CIÊNCIA E FRONTEIRAS DAS CIÊNCIAS”
(Perspectivas multidisciplinares, filosofia e ciência)

12 de Dezembro (quarta-feira), das 9:30 às 12:30
Centro de Congressos do I.S.Técnico (Alameda), sala 02.1

Animadores do debate:
Prof. José Maria Brandão de Brito (Economia, ISEG)
Prof. Teresa Valsassina Heitor (Arquitectura, IST)
Prof. Raquel Barros (Bioengenharia, IST)
Prof. Pedro Lima (Robótica, IST)
Prof. António Amorim (Física, FCUL)

O Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, entendendo-se desafiado pela fusão da Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade de Lisboa, espoletou um processo de reflexão sobre “O lugar da Filosofia da Ciência na nova Universidade de Lisboa”. Nesta fase, este processo culminará num colóquio que terá lugar a 14 e 15 de Fevereiro de 2013, no qual já está confirmada a participação dos Reitores da Universidade de Lisboa e da Universidade Técnica de Lisboa. Um debate preparatório está a decorrer na forma de uma pequena série de workshops.

O segundo desses workshops, organizado no Instituto Superior Técnico, terá como tema “Aplicações da ciência e fronteiras das ciências”. Neste Workshop vamos (1) fazer um levantamento de questões, relativas aos efeitos (reais ou percepcionados) da actividade científica no mundo fora da Academia, cuja compreensão poderia beneficiar de mais intensos cruzamentos entre disciplinas científicas e entre ciência e filosofia, e (2) reflectir sobre modos possíveis de traduzir essas preocupações nas práticas docentes e de investigação no quadro da nova Universidade.

O workshop não terá a forma de um colóquio, mas antes a forma de um debate vivo, informal, fortemente interactivo – de molde a que possa realmente resultar num levantamento de assuntos e formas de trabalho que possam trazer algo de novo em termos de colaboração multidisciplinar envolvendo cientistas e filósofos. O debate não será limitado às disciplinas cobertas pelas intervenções dos principais animadores. O workshop será encerrado pelos Professores Olga Pombo e Nuno Nabais, da Direcção do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa.

Pela Organização
Pedro Lima
Porfírio Silva




4.12.12

O Estado Social.


Tenho mesmo de deixar aqui o que o João Galamba escreveu no Facebook.

O Estado Social é uma forma complexa de institucionalizar a solidariedade e a igualdade entre todos os cidadãos. Não é apenas uma forma de garantir a existência de um conjunto de bens e serviços. É muito mais do que isso. É uma realidade institucional que exprime um determinado ideal democrático.

Num certo sentido, o Estado Social pode ser visto a tentativa de criar um compromisso entre a aspiração comunista de igualdade real entre todos os cidadãos e a igualdade formal dos liberais.

Os primeiros, ao defenderem uma igualdade absoluta, mataram a liberdade. Os segundos, ao ignorarem a igualdade, tornando-a meramente formal, esvaziaram a liberdade do seu valor e transformam-na numa desculpa para legitimar todas as desigualdades.

O Estado Social é a tentativa de realizar, simultaneamente, dois valores aparentemente contraditórios. O modo como isto é feito passa por reconhecer a natureza dupla da identidade de todos os cidadãos: todos somos cidadãos com capacidades e necessidades. Por esta razão, financiamos o Estado Social de acordo com as nossas possibilidades financeiras, isto é, por via de impostos progressivos; e beneficiamos do Estado Social de acordo com as nossas necessidades.

Não financiamos expropriando os ricos, como defende a extrema esquerda. Financiamos exigindo uma contribuição justa, isto é, uma contribuição que esteja de acordo com a sua capacidade contributiva. Mas também não financiamos quando acedemos aos seus serviços, como defendem os liberais. O contribuinte paga em função da sua capacidade, não da sua necessidade. Não paga uma taxa, não paga um preço, paga um imposto que financia todo o sistema. Paga como rico, não como rico que ficou doente, que se reformou, que quer dar uma educação aos seus filhos. Em relação a essas necessidades o rico é igual ao pobre, porque são ambos cidadãos. A justiça faz-se, no financiamento, via impostos e, no acesso, garantindo a igualdade de todos os cidadãos. O Estado Social é isto, não é outra coisa.

João Galamba

a mecânica do amor e o princípio do utilizador-pagador.


Henrique Monteiro recicla - ou, se calhar, apenas repete pela enésima vez - o argumento de que os serviços públicos só devem ser gratuitos para quem não pode pagar, devendo os outros pagar na medida em que sejam capazes. É o que chamam o princípio do utilizador-pagador. Como de costume, o argumento é usado para suportar projectos políticos como o do cheque-ensino, e para suportar o programa político de desmantelar o mais possível os serviços públicos (neste caso, de educação), distribuindo os fundos públicos pelos privados.

Infelizmente, este tipo de discurso parece argumentação, mas falta-lhe para isso algo essencial: ter em conta os contra-argumentos, em vez de usar os meios de que se dispõe apenas para bater sempre na mesma tecla e favorecer uma certa perspectiva política. Ora, este tipo de "argumentação" esquece sempre (mas sempre) o aspecto dinâmico do problema: quando um serviço público for apenas para os pobres, esse serviço público vai, passado algum tempo, tornar-se ele próprio um pobre serviço, porque os que têm força social e política para controlar, para criticar, para reivindicar, deixarão de se interessar, porque estarão como "utilizadores" noutro sítio - e os sucessivos governos investirão cada vez menos em serviços cujos "utilizadores" não têm voz. A prazo, isso significa a destruição do serviço público de qualidade.

Cabe notar que nada disto tem a ver com a liberdade de ensinar: há plena liberdade de criar instituições de ensino fora do domínio público. O que está em causa é querer que se entreguem (mais) dinheiros públicos aos privados - que se entregue (mais) dinheiro público a entidades que não podemos impedir que se orientem primariamente para o lucro. Sou contra o lucro? Não, não sou contra o lucro, mas sou contra que certos direitos básicos das pessoas dependam de entidades cujo motor básico é o lucro. Sim, porque depois de conseguirem o dinheiro dos contribuintes, virão dizer que a legislação que os rege lhes prejudica o negócio (lembram-se dos notários privados, que acusavam o Estado de, com a simplificação administrativa, lhes ter estragado o negócio?). Os serviços públicos estão, melhor ou pior, ao alcance da decisão dos cidadãos, que podem mudar políticas e decisões orçamentais à medida que mudem as realidades. Isso não é possível para os serviços privados, razão pela qual o enfraquecimento generalizado do serviço público a favor dos serviços privados traduz uma modificação substancial do poder da comunidade para gerir os seus instrumentos. E, como demonstra a experiência de muitos países, é muito custoso voltar atrás em decisões privatizadoras, mesmo quando elas se revelaram desastrosas.

Será assim tão difícil compreender que nós não somos apenas "utilizadores", que não somos apenas peças na equação dos "utilizadores-pagadores"? Será difícil compreender que ser cidadão é mais alguma coisa do que ser utilizador-pagador? Já faltou mais para tentarem explicar a mecânica do amor pelo princípio do utilizador-pagador. Ou será que os artigos de jornal também se explicam pelo princípio do utilizador-pagador?

equal education / unequal pay (USA)

Ninguém se oferece para fazer uma versão para a Europa? Ou mesmo para Portugal?

(daqui: http://www.learnstuff.com/equal-education-unequal-pay/)

Equal_Education_Unequal_Pay



a fome e a opinião (ou Jonet e o Banco Alimentar).


O Banco Alimentar fez mais uma das suas campanhas de recolha de alimentos e saiu-se tão bem como de costume. Muitos, especialmente nas chamadas redes sociais, inferem que esse facto referenda a justeza das opiniões políticas que Isabel Jonet tem proferido nos últimos tempos. Essa inferência parece-me tão descabelada como as juras de boicote aos bancos alimentares que apareceram nas mesmas redes sociais aquando da polémica sobre as tais declarações. Essa mistura de planos diferentes, praticada que tem sido tanto por simpatizantes como por antipatizantes das opiniões de Isabel Jonet, parece-me sinal de um atraso político e civilizacional perigoso, porque confunde duas coisas diferentes: opinião e acção. Qualquer pessoa pode ter opinião e dessa opinião deve poder discordar-se livremente, tal como concordar. Tentar excomungar os que discordam dessa opinião em nome da obra da pessoa, é uma concepção anti-pluralista da vida em comum. Tentar demolir a obra no seu todo por causa das opiniões, é uma concepção demasiado teórica e ideológica da vida real, o que é triste porque a vida concreta de gente concreta é sempre mais complexa e subtil, mais dura e resistente, do que qualquer opinião ou filosofia. Os radicais pró-Jonet e os radicais anti-Jonet estão bem uns para os outros: parecem ter dificuldade em discordar sem demonizar, parecem demasiado interessados em ganhar a sua própria guerra retórica. São, finalmente, capazes de transformar qualquer debate em mais um episódio da guerra civil não declarada que está em curso. Lastimável. A arrogância moral e a ortodoxia ideológica deram já provas históricas de andarem de mãos dadas sem pejo. Nada de novo, portanto.

1.12.12

1 de Dezembro.


Hoje é dia de sermos muito patrióticos, muito portugueses, muito espanhóis-nem-por-nada - ainda por cima, para muitos isso mistura-se lindamente com a raiva ao governo que acaba com o feriado desta festa tão portuguesa.

Talvez valesse a pena lembrar que nos séculos onde os filipes de espanha foram nossos senhores, poucos por cá estavam tão incomodados com isso como nós agora fazemos por estar. Nem havia esta noção de Estado independente como há hoje, nem se faziam as contas tão miúdas como se fazem hoje. A nossa élite tinha feito trinta por uma linha para que os trapinhos dos casamentos e dos nascimentos nos juntassem ao pleno ibérico e a marosca só falhou porque os príncipes e as princesas morriam como tordos e deitaram a perder todos cruzamentos preparados para juntar as coroas. Se isso tivesse sido feito a tempo e horas, talvez juntos tivessemos conseguido ter recursos para gerir o "império" com mais proficiência, coisa que a nossa minusculez assim não permitiu, passando em velocidade estonteante que mal o vimos o proveito dessa linda glória de termos dado novos mundos ao mundo.

Não quero ser atirado pela janela, que não sou conde nem sirvo a representante da coroa de madrid, mas não é preciso reescrever a história em tons heróicos para termos orgulho nas coisas interessantes que fizémos por vezes. Ainda assim, é primeiro de Dezembro e, sendo sábado, nem se nota que isto vai passar a ser um dia entre trinta de Novembro e dois de Dezembro, simplesmente.

30.11.12

Jornada: Como responder ao momento presente?

(um texto que divulgo)


"Considerar o problema da faculdade de julgar
como o mais premente de todos os problemas
e ousar julgar."
Hannah Arendt

Neste momento em que Portugal é sujeito a um processo de desmantelamento social, económico e cultural sem precedentes – pese embora tantas comparações, baseadas na premissa da “eterna repetição” – e cujas consequências não param de exceder as previsões dos responsáveis por esse desmantelamento, consideramos que os professores, investigadores, estudantes e funcionários da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e de outras Faculdades da Universidade Nova de Lisboa e de outras Universidades públicas, se devem fazer ouvir, ao mesmo tempo que lançamos o desafio àqueles que fora da Universidade se dedicam criticamente à observação e análise do estado de coisas actual, em muitos casos propondo soluções reais e inovadoras, e àqueles que têm a coragem de continuar a desenvolver a sua criatividade, para se juntarem a nós.
Gostaríamos de fazer nossas as palavras de Hannah Arendt em epígrafe, livremente tomadas da sua obra Eichmann em Jerusalém, e de agir em conformidade com a sua exigência num tempo em que:
– parece não haver alternativas;
– as escolhas políticas estão silenciadas ou são vilipendiadas.

Nesse sentido, anunciamos a realização de uma Jornada – cujo modelo é o do forum – que terá lugar no próximo dia 6 de Dezembro entre as 10h e as 14h, no Auditório 1 da FCSH.
Propomos uma discussão que evidencie o papel dos saberes e das actividades criativas como instrumentos de análise do momento presente, a fim de impedir que ele se possa tornar numa condenação eterna.
Apelamos à vossa participação e à divulgação desta iniciativa. O objectivo final será a redacção de um texto comum com base nas intervenções previstas e não previstas, o qual possa ser difundido nos meios de comunicação disponíveis e circular de mão em mão.

Irene Pimentel e Maria Filomena Molder
Lisboa, 27 de Novembro de 2012

29.11.12

há uma coisa que muitos políticos ainda não perceberam.


Pode ter acabado o tempo em que as pessoas votavam em B por não gostarem de A.

Pode ter chegado o tempo em que as pessoas que não gostam de A nem de B não votam nem em A nem em B.

Nem em C, nem em D, nem em E.

Pura e simplesmente.

Ainda por aí muito partido que parece não ter percebido isto.

pensar a censura.


Tribunal russo restringe acesso a vídeos das Pussy Riot na Internet.

Um assunto a seguir. Já expliquei antes o que penso desta matéria, mas voltarei um destes dias, quanto tiver tempo, porque as fracturas na leitura deste caso são muito importantes para perceber como realidades novas por vezes dificultam que as encaixemos nos velhos odres.

O mais conhecido dos vídeos “extremistas” é a “oração punk” em que as Pussy Riot pedem à Virgem para afastar Vladimir Putin, então primeiro-ministro e agora Presidente. Deixo essa peça.



o Estado vai passar a fazer os orçamentos das famílias?


Governo abre a porta a que o ensino secundário passe a ser pago.

O ensino secundário é obrigatório. Até agora, também é gratuito. Se o passismo levar a sua avante, o ensino secundário deixa de ser gratuito. Pode, deixando de ser gratuito, continuar a ser obrigatório? Apesar dos constitucionalistas, acho que não. (E não estou assim tão preocupado com os constitucionalistas: afinal, parece que tudo se pode defender juridicamente, desde que chegue a vontade para tanto.) Há um interesse nacional em elevar a qualificação dos portugueses e isso justifica a obrigatoriedade do secundário - mas, fazendo pagar o que é obrigatório, temos o Estado a fazer o orçamento das famílias, dizendo onde têm de gastar. A fazer o orçamento de cada família com filhos em idade de cursar o secundário.
As famílias têm uma escapatória: manter a pequenada, repetência após repetência, no ensino básico, que esse é gratuito por obrigação constitucional. Até se extinguir a obrigação... Ideia estapafúrdia? Certamente; tão estapafúrdia como pensar a educação como sítio para cortar no "Estado", em vez de a tratar cada vez mais como desígnio estratégico sempre e sempre a precisar de mais investimento.
Ou o melhor será aprender mandarim e ir para a porta das empresas onde primem administradores chineses?

novos dilemas desta crise.


Há muito quem queira enfrentar esta crise com as respostas passadas. O pessoal do "salve-se quem puder" quer resolver com mais mercado a crise que os mercados (financeiros) espalharam pelo mundo como vírus, parasitando a economia real. (Em rodapé: a maior parte dos anarquistas que por aí andam podem ser metidos na mesma categoria dos hiper-ultra-liberais, já que o individualismo os junta desgraçadamente na mesma prateleira.) O pessoal do Leviatã julga que o Estado resolve tudo, esquecendo as lições do passado acerca do onanismo da burocracia e as consequências em falta de democracia que daí resultaram historicamente. No meio disto tudo, a minha família ideológica - uma coisa que (já) não existe: os partidários da autonomia, do auto-governo, da descentralização, da responsabilidade local - está mais ou menos tão bloqueada pela crise como todos as outras.

Basicamente, os partidários da autonomia, do auto-governo, da responsabilidade descentralizada, dão de caras com o seguinte dilema: antes queríamos soluções locais, participativas, em pequena escala; mas, num mundo globalizado, face à imensidão das forças desorganizadoras, o que é pequeno e local dificilmente se aguenta. Um exemplo comezinho, mas próximo: no sistema financeiro (ver exemplo espanhol) os primeiros a cair foram os pequenos, locais/regionais (em Espanha, as Cajas, que tiveram de ser absorvidas por não se aguentaram nas pernas). Sem voarmos mais alto e mais juntos, cairemos mais facilmente: por isso precisamos da Europa, para lá de qualquer utopia, para sermos mais difíceis de engolir. O "pensar global, agir local" tornou-se muito difícil de praticar.

Estamos todos a precisar de reinvenção. E depressa, antes que o governo dos Relvas consiga não deixar pedra sobre pedra.

cambaleão = cambalhota + camaleão.


Barroso assume ideias alemãs para a resolução da crise do euro.

A escola maoísta portuguesa tem muitas variantes, mas uma ideia é património de todas as sub-seitas: "perder é que não". Tudo tem de ser feito para ganhar e isso vem muito antes de qualquer ideia-mais-ideológica. Barroso personifica exemplarmente essa escola: ele pode mudar de "programa" para a Europa (ou para Portugal, ou para o mundo) todas as vezes que a manobra possa aplainar o caminho para a sua ambição pessoal. O homem não emigrou apressadamente para ter de voltar ao seu torrão natal: a saga tem de prosseguir. De guinada em guinada, que importa isso.

28.11.12

nova espécie de leão.



Agora sem brincadeiras de mau gosto para os meus confrades leoninos: Nova espécie de leão... e já em vias de extinção. E é tudo ciência da mais séria!

as duas verdades a que temos direito.


Em tempos que já lá vão, um quotidiano da nossa praça tinha um lema: "a verdade a que temos direito". Esse jornal, "o diário", já lá vai.
Agora há por aí jornais, parece que com muito sucesso comercial, que vendem todos os dias "a pequena falsificação a que temos direito". Sejam umas falsas partes anatómicas de meninas e senhoras que supostamente vendem (papel), sejam falsas notícias que servem determinados propósitos.
Já o "Público", que vai despedindo e andando, é mais requintado: quer inovar sem jornalistas. E depois falta pau para tanta obra. Nessa saga, novo episódio: prolonga agora a técnica que deveria designar-se como "as duas verdades a que temos direito". Hoje dá uma amostra dessa técnica. Noticiando uma conferência do Instituto de Ciências Sociais, que assinala os 50 anos dessa prestigiada instituição de investigação, e na qual, escreve-se, "a crise económica esteve no centro das atenções", o Público titula na primeira página, entre aspas para mostrar que foram os cientistas sociais a dizer: "Não devemos temer grupos radicais mas quem fica em casa". Ficamos a pensar que algum cientista social decidiu desancar os pacatos cidadãos que não se radicalizam nas ruas, mas apenas no remanso do lar. Depois, vamos à página 12, onde a notícia se desenvolve, e o título já é outro, ainda entre aspas: "Não devemos temer grupos radicais mas o cidadão normal que fica sem casa".
Vai alguma distância entre o cidadão que fica em casa e o cidadão, ainda normal, que fica sem casa. Até por ser mais difícil ficar em casa depois de se ficar sem casa.
E assim o Público me serviu duas verdades a que tenho direito, pelo preço de uma só. Entre casa e o trabalho, no percurso de autocarro, tendo lido apenas o título de primeira página, reflecti sobre o perigo das pessoas que ficam em casa, contraposto ao perigo dos radicais, que seria uma teoria de algum cientista social em tempo de crise. Até já me sentia na obrigação de escrever um post sobre a coisa. Chegado aqui à "casa" que me abriga para trabalhar, ao café da manhã, li o miolo do jornal, arquivei a reflexão anterior, e dediquei-me a um novo problema: o potencial revoltoso das pessoas que ficam sem casa. Aqui, as minhas reflexões tornaram-se bastante mais do senso comum. E do comum e banal dos nossos tristes dias.

27.11.12

deputados que deixarem de o ser.





Se os deputados (neste caso, do grupo parlamentar do PSD) deixam que um ministro (neste caso, o Sr. Dr. Relvas) reescreva uma declaração de voto que eles assinam e entregam como sua, estes deputados estão lá para baixar as calças. Deixaram de ser deputados. Vão para casa. Estes e todos os outros, de qualquer partido, que tenham feito ou admitam vir a fazer o mesmo. Vão para casa, porque na realidade deixaram de ser deputados e estão a usurpar as cadeiras de verdadeiros deputados.

São tão deputados como seriam livres as eleições se fosse o príncipe a eleger os representantes do povo.

(imagem rapinada ao Miguel)

leite achocolatado.


Houve um tempo em que o PSD considerava que pensar num aumento na taxa de IVA do leite com chocolate era uma insuportável afronta às famílias portuguesas. Mas isso foi na altura do assalto. Agora eles acham que nós estamos mais capazes de suportar seja o que for.

(Lembrado por Nuno Pires.)

os prudentes nunca têm razão no momento.


Manifestantes no Egipto dispersados com gás lacrimogéneo.

Quando começaram as "primaveras" árabes, muitos dissemos que nada no mundo é a preto e branco. E que nem sempre o que vem a seguir a uma coisa má é necessariamente uma coisa boa. Não faltou quem clamasse horrores contra estes tipos prudentes, que logo se tornaram suspeitos de simpatia pelas ditaduras em apuros. Nessa vaga de entusiasmos sem cuidados, quem desconfiava e acautelava era um velho do Restelo.
Infelizmente, os prudentes sempre viram melhor no escuro do que os iluminados da vanguarda. Estes, aliás, perdem o pio com muita facilidade.

23.11.12

somos todos criminosos?


Organizadora da manifestação de 15/9 constituída arguida. Mariana Avelãs foi constituída arguida pelo “crime” de organização de manifestação não comunicada.

Concordo que o exercício do direito de manifestação não é prejudicado por ser necessário comunicar previamente às autoridades, nos termos da lei, que a manifestação se vai realizar. Organizar o exercício de um direito não é limitar esse direito.
Já coisa bem diferente é tentar perseguir criminalmente uma pessoa - ou quinze pessoas - por se terem juntado num local público para conversar com jornalistas sobre uma manifestação, mesmo que tenham levado um pano alusivo ao tema da manifestação. Parece-me isso mais um passo numa espiral de violência. Sim, porque tentar criminalizar a mais ordeira das aparições das pessoas na praça pública, é o quê se não dizer às pessoas que "estar contra", só por si, já é repreensível? E passível de repressão? Esses sinais de violência do Estado são convites à generalização da violência. Cuidado com essa gente, que tenta criminalizar o próprio facto de respirarmos.

Cavaco, personagem de Jorge Luis Borges?


Só pode. Isto não pode ser apenas insanidade.



Até que a morte nos separe?



Cito:
Segundo as estatísticas da APAV, entre 2000 e 2011, 76.582 vítimas recorreram à associação, tendo-se registado o maior número de vítimas em 2002, com 7.543 casos. Ao longo destes onze anos, as mulheres têm vindo a representar a maior percentagem de vítimas, atingindo o valor máximo em 2002, com 6.958 casos. No total das 76.582 vítimas, 68.751 eram mulheres, ou seja, 89,7%. Já em relação ao autor do crime, maioritariamente são homens em todos os anos em análise, contabilizando-se um total de 68.770 homens como autores do crime para os 76.582 casos reportados de violência doméstica, o que corresponde a 89,8% dos casos.

Mais aqui.

a tentação da omnipresença.


Nuno Santos demite-se de director de informação da RTP depois de a PSP ter pedido imagens da carga policial na noite da última greve.

O ainda chefe da Igreja de Inglaterra, comentando a decisão do sínodo da sua igreja que recusou a possibilidade de mulheres poderem ser bisp@s, afirmou que ela mostra cegueira face ao que importa no momento presente à sociedade secular. Muitas instituições deveriam pensar nesses termos: pode viver-se neste mundo sem ser deste mundo? Dito de outro modo: até que ponto podemos tolerar que certos aspectos da nossa vida colectiva funcionem em flagrante desprezo por princípios que consideramos fundamentais? Até que ponto devemos conviver com esse desprezo sem ficarmos e nos mostrarmos incomodados?
Esta pergunta pode - e deve - estender-se a muitos domínios.
As notícias de que a televisão pública pode ter facilitado o uso de imagens colhidas em reportagem sobre manifestações políticas para servirem o trabalho policial - ou, "apenas", de que para isso terá sido solicitada - entra na categoria dos acontecimentos com os quais não podemos conviver. Percebo que a polícia tenha de fazer o seu trabalho. Mas exijo, por outro lado, que informar não seja confundido com policiar, que um trabalhador da informação a tratar de me manter a par do que se passa na rua não seja transformado nos olhos ou nos ouvidos da polícia. Andam por aí estas meias-informações, certamente com contornos suficientemente complicados para já provocarem demissões, e nós fazemos de conta que podemos conviver com isto?
Não, não podemos conviver com a cultura securitária, na medida em que ela é uma cultura totalitária. Uma cultura totalitária é aquela que alimenta a ambição de organizar todo o mundo em função de um único ponto de vista. Mesmo que esse ponto de vista seja legítimo (defender a segurança pública é legítimo), a cultura totalitária tende a destruir a legitimidade de todos os outros pontos de vista e a submetê-los à condição de instrumentos. E isso afecta nuclearmente o nosso ecossistema de liberdade, que será insustentável se algum protector, iluminado ou não, pretender ter olhos e ouvidos por todo o lado. A tentação da omnipresença é uma tentação fatal, que nos obriga a estar atentos a estas notícias.

21.11.12

o mar, a agricultura e a indústria. e o Partido Comunista.


Segundo o Público, o Presidente da República afirmou que o país precisa de voltar a olhar para os sectores que esqueceu nas últimas décadas: o mar, a agricultura e a indústria.

Não interessa muito agora o facto de Cavaco Silva ter sido, enquanto governante, um dos entusiastas promotores desse esquecimento. A verdade é que a esmagadora maioria dos políticos portugueses - e dos portugueses, mesmo sem serem políticos - alinharam nesse esquecimento. Pensámos que sermos ricos era esquecer essas coisa da produção: os pobres do Sul e do Oriente que produzissem, enquanto nós nos dedicaríamos aos "serviços".
Interessa-me agora outro aspecto da questão: é justo lembrar que o Partido Comunista Português foi durante muitos anos a única força política portuguesa relevante a lutar contra esse esquecimento, ou abandono. Podemos dizer que o fazia por más razões. Por mim posso dizer, pelo menos, que tendo a não me reconhecer num certo nacionalismo que tintava excessivamente essa posição dos comunistas. Mas devo reconhecer que esse alerta se revela, passados todos estes anos, um alerta que fizemos mal em descartar demasiado apressadamente.
Há, aliás, uma mensagem política central a reter nesta questão: a vida política portuguesa há muitos anos que é demasiado teatral e atira para debaixo do tapete muitas questões que deviam ser discutidas mais seriamente. Em geral, as posições do PCP são tratadas com o desdém "lá vêm estes tipos sempre com a mesma conversa". O PCP entrincheirou-se, os demais partidos deixaram que se entrincheirasse, o próprio PCP encontra alguma comodidade nisso. Mas fazemos mal. E isso pode pagar-se caro. Como, se calhar, este caso exemplifica.
A democracia tem de continuar a aprender-se sempre. As vozes são para ser ouvidos e tidas em conta, não apenas para fazer um certo ruído que parece debate sem o ser.

(Rodapé acrescentado. Por alguém me ter chamado a atenção, esclareço que a expressão, da última frase, "as vozes são para ser ouvidos", não é um erro; não devia estar lá "as vozes são para ser ouvidas". Escrevi isso (uma "liberdade poética") para significar que falar e ouvir devem fazer parte do mesmo processo em democracia.)

isto ainda é uma democracia representativa?


Ou trata-se apenas de uma leilão pouco transparente?

Refiro-me a este destaque do Público de hoje:


19.11.12

vá, agradece ao robô.


Um exosqueleto é uma espécie de esqueleto externo: uma estrutura de suporte e protecção para outros órgãos do corpo humano, como também o esqueleto interno é, mas colocado no exterior do corpo. O exosqueleto é algo que outras espécies naturais possuem.
E que tal um exosqueleto robótico, para tornar o corpo humano mais forte, mais resistente? Estão a fazer isso, para soldados em condições extremas. Veja o video. Deixo os comentários para as reflexões dos leitores.



que o poeta seja um fingidor.


Que o poeta seja um fingidor, aceita-se.
Que a política oficial continue a ser largamente um fingimento, é inaceitável.
O governo finge que vai correr tudo bem. Minto: o governo finge que acredita que vai correr tudo bem.
A oposição responsável (se não quisermos ser simpáticos: a oposição deste rotativismo) finge que está nas nossas mãos fazer diferente apenas pelas nossas forças. Não digo que "a oposição de sua majestade" minta, porque não sei até que ponto vai a sua ingenuidade: quanto maior for a ingenuidade, menos será a sua culpa e menor será, ao mesmo tempo, a sua valia para um país aflito. Mas seria bom ir pondo os olhos em Hollande, cujas ideias não vão a lado nenhum só com vontade e declarações.
A oposição valentona (se não quisermos ser simpáticos: a oposição que quer deitar fora o bebé com a água do banho) finge que as nossas dores seriam menores se virássemos as costas aos nossos credores e vivêssemos desde já com o que produzimos. A retórica do "não pagamos" é pegar ou largar: há poucas pessoas que saibam o que isso nos custaria que ainda se atrevam verdadeiramente a defender tal opção.

O que é assustador no fingimento reinante não é a variedade das vozes. Poderia dizer-se: não saímos daqui porque "cada cabeça cada sentença". Julgo que, na verdade, não é isso o que se passa, mas antes algo bastante mais bizarro. O que assusta os políticos de circunstância é que o momento pede convergência e não brados heróicos contra todos os outros à sua volta, que é aquilo que esta guerra civil não declarada tem desgraçadamente pedido. Vejamos.

Quase toda a gente está de acordo que a actual estratégia de "ajustamento" não vai resultar e, além disso, que a única saída é conseguir uma condicionalidade diferente para os empréstimos da Troika. Desde Miguel Cadilhe a Arménio Carlos, passando por altas figuras dos partidos do governo, toda a gente já percebeu que assim vamos rebentar na praça pública. Claro que o "não pagamos" da esquerda da esquerda não é a mesma coisa que a "negociação honrada" de Cadilhe, ou o "mais tempo e menos juros" do PS. Isto é: todos estão a ver o problema mais ou menos da mesma maneira, embora não pareça. Não parece, porque o discurso anti-Euro tem um aspecto diferente do discurso pró-Euro, mas, em termos práticos, se se conseguir uma modificação substancial das condições, toda a gente vai respirar melhor e os termos do debate evoluem. Mesmo o PCP e o BE não se importam que venha o dinheiro...
Isto dá a ideia de que haveria condições para algum consenso nacional em torno de objectivos mínimos para tentarmos escapar do buraco. Só mesmo Passos e Gaspar remam contra esse consenso. O país ganharia imenso, em termos de margem de manobra internacional, se aparecesse unido contra esta austeridade sem futuro, exigindo outro programa para outro ajustamento - embora comprometendo-se a uma conduta responsável como parceiro na comunidade internacional. Já imaginaram a força que teria lá fora aparecerem os patrões e os sindicatos, a direita e os comunistas, unidos nesta frente?
A dificuldade é que para isso teriam de unir-se agora naquilo em que convergem, deixando para depois as divergências. E isso está contra a moda da guerra de todos contra todos na nossa política doméstica.

Assim sendo, todos fingem que as suas representações habituais continuam a valer alguma coisa. Alguns esperam que o brinde de uma nova orientação europeia (depois das eleições alemãs) chegue antes do dilúvio (e antes de o seu governo cair). Outros esperam chegar ao poder em bom tempo, para não arderem no mesmo fogo que já deflagrou. Outros (na esquerda da esquerda) esperam que tudo corra suficientemente mal (ao PS e à Europa) para mudarem o mapa político português e atirarem os socialistas para o lixo. E todos vão fazendo de conta que isto é forma de lidar com um país.

A convergência, se não o consenso, arde muito nas mãos dos políticos tradicionais portugueses: não sabem o que lhe hão-de fazer. Neste momento, em vez de valorizarem o facto de quase todos verem o perigo vir do mesmo lado, em vez de investirem num consenso político tão alargado como quase nunca é possível, continuamos a esmiuçar os sufrágios. E o tempo a passar. Contra nós.

(No meio disto tudo, esqueci-me de falar de Cavaco Silva. Na verdade, é um esquecimento que não faz muita diferença: o Presidente já não é deste mundo. A menos que tenha regressado ao Pulo do Lobo e à manha de se esconder para regressar vestido de cordeiro.)

um problema das religiões.


Um problema bastante generalizado das religiões é terem tendência para uma visão auto-centrada do mundo.
Será só um problema das religiões? Não, até não é; mas quanto maior é a pretensão de abrangência de um pensamento, mais nítido se torna aquele defeito e mais destruidores se podem tornar os seus efeitos.




não quero mais destas campanhas eleitorais.



Não era preciso fazer mais sacrifícios. Pois não. "Isto" é puro prazer para masoquistas.

18.11.12

governados por comediantes?


O primeiro-ministro descobre-se irónico:

O primeiro-ministro lamentou hoje não ter sido "possível" ao ministro da Administração Interna fazer "uma declaração mais esclarecedora" sobre a intervenção do Governo na sequência da tempestade no Algarve. Mais tarde, veio o esclarecimento: Passos estava a ser irónico.

O que se pergunta é: PPC estava a ser irónico com quem? a propósito de quê?

Devia haver limites para a comédia. E deviam ensinar ao PM como a ironia deslocada pode tornar-se comédia, ou mesmo tragédia.

Mesmo para um governo que consegue tirar Santana Lopes do topo da lista dos governos risíveis. Até por já não haver grande vontade de rir.

17.11.12

Arthur Bispo do Rosário.


Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) foi um artista brasileiro. Viveu 50 anos internado como louco e foi aí que deu a sua obra ao mundo, usando os materiais que podia encontrar no seu ambiente. Vi uma pequena exposição dele em Bruxelas, no Museu de Arte Bruta, por ocasião da Europália dedicada ao Brasil. Fiquei impressionado com a imaginação prodigiosa do homem, que fora marinheiro antes de ser internado e misturou tudo na sua cabeça, para de lá tirar um mundo completo, complexo, intrincado. Agora, a partir de amanhã, domingo, 18 de Novembro, está uma grande exposição da sua obra no Museu da Cidade, em Lisboa, tendo como curador Wilson Lázaro, o director do Museu do Bispo do Rosário.

A descoberta de Bispo do Rosário como artista (louco ou génio? a pergunta retórica habitual) andou de par com uma reavaliação crítica das ideias dominantes acerca da loucura e acerca das teorias psiquiátricas, uma reavaliação crítica em que o Brasil se empenhou a certa altura da sua história.

Este é, por tudo isso, um artista que tem muito por onde nos interrogar. Como aperitivo deixo parte de um documentário realizado por Fernando Gabeira na década de 1980.



16.11.12

se a senhora Merkel diz...


Passo a citar:
Uma das coisas divertidas da passagem de Angela Merkel por Lisboa – para além da “photo opportunity” do letreiro “governo de Portugal” – aconteceu quando a chanceler, na conferência de imprensa ao lado de Passos Coelho, lembrou a origem da crise do euro. Deve ter sido esquisito para quem está habituado a culpar “o Sócrates” ter ouvido a todo-poderosa Angela explicar que, por causa da crise financeira desencadeada nos Estados Unidos, e da sua propagação à Europa, os governos europeus desataram a apostar no investimento público para conter o descalabro das suas economias. Só que entretanto os investidores começaram a desconfiar de algumas economias (as mais frágeis) e a duvidar da fiabilidade de alguns para pagar as respectivas dívidas. Esta foi a explicação de Merkel, perante um Passos Coelho que arrumou a um canto o discurso habitual do “vivemos acima das nossas possibilidades” e se concentrou no verdadeiro desastre nacional – um grave problema de produção.

Ana Sá Lopes, Os dias do fim

a violência e a credulidade de alguns liberais.


A propósito da violência nas margens da greve geral de dia 14, queria (além do que já ficou dito) dar nota de um espanto meu.
É claro que a polícia reagiu a uma actuação violenta e perfeitamente inútil da parte de um pequeno grupo de manifestantes. Concordo que esses actos não devem ser tolerados, porque já basta a selva que temos, não precisamos de mais fogo. Mas, e este é um grande mas, estou espantado com a facilidade com que alguns comentadores descartam a análise dos muitos elementos que indiciam que a polícia foi além do necessário e atingiu desnecessariamente muitos cidadãos pacíficos - e, se calhar, usou métodos duvidosos.
Estou espantado com essa benevolência de alguns face à violência do Estado. Afinal, vós que pregais tanto a salutar desconfiança face ao Estado no tocante a assuntos económicos e sociais, porque nesses temas sempre o indivíduo haveria de vir antes do Estado, porque o Estado seria sempre de presumir como um papão (ao querer, por exemplo, redistribuir), esmoreceis tão rapidamente de querer interrogar as razões e os processos do Estado quando se chega a um caso destes? Quanto chega à gestão da violência já sois todos crédulos? Se a polícia disse, está dito, não se pensa mais nisso?
Espanta-me essa acomodação repentina dos que pugnam sempre tanto contra a mão do Estado quando se trata de usar o Estado para redistribuir - e aceitam com tanta benevolência o longo braço da violência. Não se julgue que quero um Estado fraco na manutenção da ordem pública, que é antes de mais uma ordem necessária à convivência democrática e à liberdade. Mas a vigilância e o espírito crítico são indispensáveis quanto às formas concretas de prosseguir essas funções. Por serem vitais essas funções, não podemos autorizar-nos a ser, quanto a elas, crédulos nem benevolentes. Temos de estar vigilantes, tanto quanto à violência da turba, como quanto às responsabilidades daqueles que o Estado paga para nos protegerem.

a violência.


Acerca dos confrontos violentos entre manifestantes e polícias, ontem, em frente à Assembleia da República, quero deixar dois apontamentos.

Primeiro, sem dúvida que as agressões à polícia existiram, não tiveram nada a ver com o grosso da manifestação e, a meu ver, são um método de existência no espaço público que não contribui em nada para melhorar o país ou resolver os nossos problemas. Mesmo que haja infiltração policial nesses grupos, não acredito que essa infiltração seja o essencial do problema, nem a sua causa ou explicação. (Embora se deva fazer luz sobre o papel de eventuais infiltrados nestas situações, mesmo que essa luz não possa acontecer na praça pública e seja entregue ao controlo das pertinentes instituições.) Esta violência serve os que preferem a via da repressão e distrai as pessoas dos verdadeiros problemas.

Segundo, ontem houve muita gente pacífica, que estava a manifestar-se normalmente ou apenas a observar, ou simplesmente a passar por ali, e que apanhou cassetada valente nos costados. Basta ver as imagens da televisão para perceber que assim foi. Isso é inadmissível. A polícia diz que avisou antes de avançar, mas pelos relatos de cidadãos normalíssimos que por ali andavam, e por análise da situação, acredito que a polícia avisou - mas parece que não avisou de modo a que isso fosse entendido, sequer ouvido, pela generalidade das pessoas ali presentes. Umas palavras de megafone a partir da escada facilmente se perdem sem chegarem à generalidade das pessoas no meio da confusão da praça. As consequência estão à vista. Sem nenhuma retórica revolucionária, julgo que a polícia tem a obrigação profissional de fazer as coisas de modo a evitar o espancamento generalizado de pessoas que nada fizeram de mal. Não podem levar tudo à frente. Eu não estive lá, mas tinha o direito de ter estado sem correr o risco de ser corrido à bastonada. As imagens da TV mostram pessoas encostadas aos prédios, a observar, que se repente começam a ser violentamente molestadas pela polícia. Face a esta situação, o ministro das polícias devia usar menos de palavras grandiosas e levar mais a sério a necessidade de garantir que as forças de segurança não se tornem elas próprias factor de insegurança para o cidadão anónimo que quer manifestar-se sem correr estes riscos. Claro que os manifestantes violentos lhe deram o bom pretexto para aquela cena, mas a obrigação de um governante responsável não é abrir as asas e embarcar na onda; a sua obrigação é garantir que as forças do Estado façam tudo no estrito respeito pela integridade dos cidadãos.

14.11.12

o chumbo estrondoso do camarada Barroso.



Comunico os resultados de um inquérito sobre o desempenho da Comissão Europeia, presidida pelo camarada Durão Barroso.

Numa escala de 1 a 10 (1 = mau, 10 = bom), 53,6% dos respondentes deram à Comissão Barroso uma nota de 3. Chumbo redondo. Ainda: 23,1% deram-lhe o mínimo: nota 1. Menos de 1% deu nota 10.

Foram inquiridas 811 pessoas, das quais perto de 30% trabalham para instituições europeias, cerca de 10% trabalham em universidades, cerca de 13% no mundo empresarial. Os respondentes são nacionais de vários países da UE, com um peso particular para a Alemanha e a Bélgica (mais de 12% cada). (Como seria se tivessem perguntado mais nos países do Sul?)

Entre todos os comissários, Barroso foi o que recebeu a pior nota: 2,5 em 10.

Notícia mais detalhada do chumbo do camarada Barroso, que anda mais virado para procurar novo emprego do que para fazer a Europa fazer o seu trabalho, pode ser encontrada aqui.

(Tentei aumentar o tamanho da imagem, mas a qualidade intrínseca não permitiu.)

Greve de zelo.



Em dia de greve geral, reproduzo um excerto do meu livro Podemos matar um sinal de trânsito? (Esfera do Caos).

***

Estando a falar de hábitos, há uma distinção que seria interessante introduzir. Hábitos e rotinas. A hábitos no seio de organizações chamamos rotinas. Rotinas são comportamentos que estabelecem certas interacções entre posições (ou papéis) dentro de uma organização. Essas rotinas preenchem os espaços deixados vazios pelas regras, já que as regras formais não podem antecipar todos os pormenores da vida real. Naquela empresa, as regras estipulam que as facturas se entregam ao contabilista – mas, na prática, elas são sempre entregues ao secretariado do contabilista. Se alguém insistir em falar pessoalmente com o contabilista para lhe entregar pessoalmente um monte de facturas perfeitamente banais, será considerado inconveniente, além de estar a desperdiçar o seu tempo e o dos outros. Um aspecto importante é que não interessa se hoje é o senhor António ou a menina Helena quem está a secretariar o contabilista: a rotina não distingue a pessoa, mas a posição na organização, o papel. Que a posição, ou o papel, sejam um fato que sabemos distinguir de quem o veste, nota-se em inúmeras circunstâncias corriqueiras da vida: sei como devo dirigir-me ao senhor da bilheteira do teatro, sei como ele se comportará perante a minha pretensão de comprar um bilhete, sei como ele fará a gestão do acto de pagar o bilhete, apesar de não o conhecer pessoalmente, não lhe reconhecer o rosto nem saber o nome. Interajo com ele como ocupante de uma posição, ele faz o mesmo comigo. As rotinas organizacionais também separam (razoavelmente) a posição e a pessoa que ocupa a posição. Inúmeras rotinas, hábitos organizacionais, mantêm a funcionar autênticas máquinas feitas de humanos. Coisa que as regras explícitas, inscritas em algum normativo, só por si não poderiam conseguir.
Um determinado fenómeno, apesar de relativamente raro, pode ajudar-nos a compreender este carácter das organizações. Falamos da greve de zelo. Chama-se "greve de zelo" a uma prática de contestação laboral usada em certa altura em alguns países. Coisas de uma luta de classes sofisticada, em que não se encontram (as classes) a meio da noite para traulitarem mutuamente nas respectivas cabeças – antes procuram maior subtileza, pela qual conseguem, mais do que amassar a classe antagonista, encher-lhe o peito de espanto e a cabeça de dificuldades de compreensão. Numa greve de zelo, os grevistas não se recusam a trabalhar: limitam-se a aplicar de forma estrita todas as regras formalizadas (escritas nos regulamentos) que enquadram a sua actividade. O resultado de uma greve de zelo não é que as coisas funcionam melhor, como qualquer racionalista da acção haveria de esperar. Esses pensam que nas regras miúdas e precisas é que está o segredo do bom funcionamento da máquina do mundo. Pelo contrário, o verdadeiro resultado de obedecer total e exclusivamente a todas as regras escritas e bem assentes é... a inoperância!
É que, no domínio exclusivo das regras formais e bem firmadas, faltam aquelas práticas que, fugindo à letra dos regulamentos, fazem funcionar as coisas. Por exemplo, quando um funcionário subalterno toma uma iniciativa sem autorização superior, porque “sabe” que ela seria dada se o chefe estivesse presente, apesar de, em rigor, arriscar uma sanção por avançar sem uma assinatura no papel apropriado. A assinatura virá. E normalmente vem. Mas emperra tudo se eu insistir que espero pelo chefe. E isto multiplicado a cada momento dos dias longos e complicados de qualquer organização humana sofisticada, por muito burocrática que seja. (Merleau-Ponty escreveu que “a instituição não é apenas o que foi fixado por contrato, mas isso mais funcionamento”.)
Há quem confie que a acção dos humanos segue as regras escritas que aparecem nos manuais de procedimentos (relativos, por exemplo, à autorização de pagamentos dentro de uma organização, como se esse manual fosse comparável a um manual de reparação de uma máquina). Esses racionalistas da acção, tão ingénuos por demasiado admiradores da razão, nunca compreenderão o segredo de uma greve de zelo. Não estranha: muitos gestores e políticos também não percebem. E, não percebendo, descuidam "ninharias" e "perdas de tempo" que consistem em envolver, mobilizar e interagir com os agentes.

***

Abordo muitos outros aspectos da nossa vida social e institucional, sempre com exemplos práticos apresentados de forma simples, neste livro:



(Republicação)

hoje há uma greve perfeitamente justificada.

(Diego de Rivera, O Homem Controla o Universo, 1934)

12.11.12

perguntas tipo jangada de pedra.


A Ana Sá Lopes pergunta: «Como é que é possível que a Europa do Sul não discuta em conjunto a saída do euro, a única arma de negociação com peso de que dispõe?». Até um famoso Ladrão de Bicicletas (João Rodrigues) aplaude a pergunta.

Ora, a resposta é fácil: "a Europa do Sul" não existe. Existem países da Europa do Sul com alguns interesses convergentes e alguns interesses divergentes. Se um acordo para fazerem qualquer coisa em conjunto lhes fosse metido no bolso por, digamos, Deus Nosso Senhor; se tal acordo já feito e fechado caísse do céu aos trambolhões, talvez até fizessem qualquer coisa em conjunto. Assim, quem arrisca ser o primeiro a dar um passo no sentido da saída do Euro? O primeiro a dar esse passo é sacrificado no dia seguinte pelo resto dos parceiros (ou, se preferirem, pelos "mercados") e sai pela janela, sozinho e não com a companhia dessa mítica entidade, "a Europa do Sul". Se a Europa do Sul fugisse com os seus trapinhos, no dia seguinte estaríamos a carpir a maldita sorte de estarmos aqui entalados no fim da Península com a Espanha a separar-nos do resto da Europa e a abusar de ser muito maior e rica do que nós. Nessa altura, os brilhantes estrategas do "vamos dar cabo deles" haveriam de conceber uma aliança com a Madeira, os Açores e, quem sabe, as Berlengas e as Desertas.

Afinal, parece que não são só os "economistas ortodoxos" que se esquecem das realidades políticas e institucionais quando se põem a imaginar soluções catitas para os problemas.

em dia de visita de Merkel.


Como já é sabido que, em termos políticos, quanto à visita de Merkel hoje a Portugal estou na toca, deixo, para não perder de vista os meus amigos que andam a expressar a sua zanga com a Alemanha, uma matéria lateral aos dias de hoje, mas sem dúvida com alguma ligação. Segue-se uma longa citação de um texto de 1939.

***

Foi o grande historiador alemão Alexander von Humboldt, que, há um século, proclamou a ignorância dos navegadores portugueses da época dos descobrimentos nestes termos bastante depreciativos: "Não é a multidão guerreira e pouco civilizada dos conquistadores que devemos honrar pelos avanços científicos que, sem dúvida, têm o seu princípio na descoberta do novo continente."
Ao mesmo tempo que ele avançava a tese da ignorância dos conquistadores (alusão directa aos navegadores Portugueses), Humboldt apresentou os seus dois compatriotas Martin Behaim e Regiomontanus como os fundadores da arte de navegar na época das descobertas. Em sua opinião, Martin Behaim, o "homem extraordinário", "cosmógrafo de grande renome" tinha recebido do rei de Portugal, D. João II, a ordem de calcular uma tabela das declinações do Sol e de ensinar aos pilotos a guiarem-se pelas alturas do Sol e das estrelas. E ele sustentava que "Regiomontanus publicara em Nuremberga as suas famosas Efemérides Astronómicas... que serviram nas costas da África, da América e da Índia, nas primeiras viagens de descoberta de Bartolomeu Dias, de Colombo, Vespúcio e Gama".
Desde então Colombo começou a figurar na história como o verdadeiro iniciador dos empreendimentos marítimos do seu século.
Foi assim que nasceu, com toda a aparência de uma verdade comprovada, a lenda da origem alemã da ciência náutica portuguesa na época dos descobrimentos, com a exclusão total da obra do Infante D. Henrique o navegador e do Rei D. João II.
A propaganda a favor de Behaim continuou na obra de Ghillany, Geschichte des Seefahrers Bitter Martin Behaim, publicada em 1853 sob o patrocínio e com a colaboração de Humboldt, para "lembrar à memória do mundo o papel da ciência alemã que, no fim da Idade Média, permitiu aos célebres navegadores percorrer e penetrar corajosamente no Oceano, graças à ajuda prestada pela ciência de Regiomontanus e Behaim."
A história desta campanha, iniciada por Humboldt e continuada pelos seus discípulos, a favor de Behaim, de Regiomontanus e da origem alemã da ciência náutica portuguesa, é rastreada nos dois volumes de Les légendes Allemandes sur l'Histoire des Découvertes Maritimes Portugaises [Lendas alemãs sobre a história das descobertas marítimas portuguesas], de Joaquim Bensaude.
Já em 1899, Ravenstein, estudando cuidadosamente todos os documentos utilizáveis, conscientemente concluiu que "o objetivo principal, senão único, da viagem de Behaim a Portugal foi de natureza comercial" e que ele "não exerceu qualquer influência sobre a origem ou os progressos da arte da navegação na época das descobertas."
Ravenstein liquidou assim a tese de Humboldt sobre o suposto envolvimento de Behaim como auxiliar dos empreendimentos empresas marítimos de D. João II.
Em 1912 foi publicado em Portugal o notável trabalho de Joaquim Bensaude sobre L'astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes découvertes [A Astronomia Náutica em Portugal na época das grandes descobertas] e, no ano seguinte, A Astronomia dos Lusíadas, do professor de mecânica celeste na Universidade de Coimbra, Luciano Pereira da Silva, que vieram revolucionar a concepção corrente da história e dos progressos da ciência náutica das descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, ao mesmo tempo que denunciavam os erros e equívocos prevalentes por esse mundo fora, após a publicação do Exame crítico e, mais tarde, do Cosmos, de Humboldt.
Desde então, estes dois cientistas publicaram uma notável série de novos trabalhos que abriram horizontes mais amplos para a investigação histórica.
A descoberta do Regulamento do Astrolábio da Biblioteca de Munique, o mais antigo manual náutico conhecido, que contém as regras para o cálculo da latitude geográfica para uso dos navegadores portugueses, derramou uma viva luz sobre o problema da origem e dos progressos da ciência náutica das descobertas e, graças a este feliz achado, conhecemos hoje como nasceu, e sobretudo como evoluiu e progrediu, toda a ciência náutica, desde a segunda metade do século XV.
Este é o primeiro resultado desses estudos, levados a bom termo após investigações persistentes, realizadas entre grandes dificuldades, porque os documentos encontrados e agora ao alcance de pesquisadores em edições fac-símile, estavam então esquecidos e quase ignorados no segredo das bibliotecas.
Estes documentos permitem-nos provar que os navegadores portugueses da época dos descobrimentos foram os verdadeiros criadores da ciência náutica que usaram nas suas frequentes viagens e explorações, a partir do primeiro quarto do século XV, quando começaram as descobertas do Infante D. Henrique e ao longo do século XVI.

***

Parágrafos iniciais de António Barbosa, "L'astronomie nautique au Portugal pendant les découvertes", Separata de : Revue d'histoire moderne, T. 14 (nouv. ser. t. 8) n.º 39 (Aout-Sept, 1939).
(Tradução de Porfírio Silva)



locais de peregrinação.



(Reportagem ao local de peregrinação por Porfírio Silva.)

11.11.12

Eu não vou manifestar-me contra a visita de Merkel.


Eu não vou manifestar-me contra a visita de Merkel. Porquê? Por concordar com as políticas que ela conduz como chefe de governo de um Estado-Membro da União Europeia? Decerto que não é por isso, porque discordo muitíssimo das suas políticas, julgo que elas rasgam de forma profunda a ideia de interesse comum europeu e são uma má resposta à solidariedade que a Europa deu anteriormente à Alemanha. Então, porque, mesmo assim, não vou manifestar-me contra a sua visita?

Primeiro, porque só sou contra a vinda a Portugal de ditadores (e, mesmo assim, depende: há circunstâncias em que isso se justifica diplomaticamente). Merkel é a líder democraticamente eleita de um país amigo.

Segundo, porque estou farto dos disparates de comparação desta Alemanha com o nazismo e parafernália associada e prevejo que nas manifestações contra a visita haja muito material desse – e não quero estar de modo nenhum associado a ajuntamentos onde esses crimes contra a memória se repitam.

Terceiro, porque o problema não é "a Merkel": a chancelerina alemã dá voz à esmagadora maioria do seu povo – que pode estar errado, mas é assim que as coisas funcionam em democracia. Há quem brame muito para que os representantes dos portugueses não vão além da nossa vontade expressa no concerto europeu, ao mesmo tempo esquecendo que os alemães também são gente e têm as suas próprias opiniões acerca do que o seu governo deve fazer na Europa. E não vamos convencer os alemães das nossas razões hostilizando a sua chefe de governo de forma violenta.

Quarto, porque o problema nem sequer é especificamente a Alemanha. Se não fosse a Alemanha, uma série de outros Estados-Membros da EU, mais a norte e mais a leste, já teriam bloqueado tudo o que, mesmo assim, se tem feito. Os eleitorados desses países, se não fosse a imagem de firmeza que Merkel tem transmitido, fazendo dela uma ponte negocial entre interesses em confronto na Europa, há muito teriam desligado dos nossos problemas e teriam batido com a porta na nossa cara.

Quinto, porque pintar a Alemanha como a "grande egoísta" na Europa é uma visão parcial das coisas. Desde logo, (parte "mesquinha" do argumento) a Alemanha é uma das fontes principais do financiamento da União - e de países como Portugal que desse financiamento beneficiam muito; e, também, porque (argumento mais ao largo) a Alemanha tem décadas como um dos parceiros mais responsáveis no seio da Europa. Devemos vender-nos por fundos comunitários? Não, não devemos vender-nos; mas também não faz muito sentido continuar a querer o apoio dos outros e estar sempre a fazer de conta que prescindimos deles lindamente. A Alemanha também ganha com a Europa? Claro que ganha, mas é de interesses mútuos que se trata, não de beneficência.

Sexto, porque o que Portugal precisa não é de se isolar da Alemanha: o que Portugal precisa é de negociar com toda a gente, incluindo a Alemanha. E negociar não é berrar: é ter posições e defendê-las. Se temos um governo que prescindiu de defender Portugal na Europa, não estou certo que isso seja culpa de Merkel, acho que é mais culpa da agenda ideológica de Passos Coelho e do seu ajudante Gaspar. Aplaudiria que várias forças da sociedade civil, e mesmo forças políticas, tivessem solicitado encontros com Merkel para discutir com ela o que a crise exige. Não na qualidade de um César de saias, mas como chefe de governo de um país amigo dentro de uma comunidade de Estados e de povos.

Sétimo, porque cada vez tenho mais vontade de me manifestar, mas cada vez tenho menos condições para o fazer. A rua está cada vez mais tomada pelas correntes anti-europeístas, herdeiras (envergonhadas ou assumidas) do nacionalismo comunista ou do nacionalismo de direita; a rua está cada vez mais radicalizada contra as forças (nomeadamente socialistas) que são mais ciosas do compromisso europeu e percebem que sem mais Europa (outra Europa) isto não vai lá. Para já não falar da crescente ameaça de violência que paira sobre essas manifestações, servindo talvez os interesses eleitorais de alguns (que pensam que só com um cenário grego podem dobrar o PS, por exemplo), mas decerto não servindo a capacidade de construir um largo bloco político-social de alternativa a este entreguismo do governo. O radicalismo da rua cada vez mais se encaixa no radicalismo do passo-gasparismo – e isso a mim não me serve como ecossistema.

Por último, e em resumo, eu até poderia manifestar-me contra a política de Merkel, porque sou contra essa política. Não posso é manifestar-me contra a visita de Merkel, pela razões que acima procurei expor, e quem sair à rua vai fazê-lo com esse propósito que eu não partilho. Não haveriam, pois, de querer a minha companhia.