30.11.12

Jornada: Como responder ao momento presente?

(um texto que divulgo)


"Considerar o problema da faculdade de julgar
como o mais premente de todos os problemas
e ousar julgar."
Hannah Arendt

Neste momento em que Portugal é sujeito a um processo de desmantelamento social, económico e cultural sem precedentes – pese embora tantas comparações, baseadas na premissa da “eterna repetição” – e cujas consequências não param de exceder as previsões dos responsáveis por esse desmantelamento, consideramos que os professores, investigadores, estudantes e funcionários da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e de outras Faculdades da Universidade Nova de Lisboa e de outras Universidades públicas, se devem fazer ouvir, ao mesmo tempo que lançamos o desafio àqueles que fora da Universidade se dedicam criticamente à observação e análise do estado de coisas actual, em muitos casos propondo soluções reais e inovadoras, e àqueles que têm a coragem de continuar a desenvolver a sua criatividade, para se juntarem a nós.
Gostaríamos de fazer nossas as palavras de Hannah Arendt em epígrafe, livremente tomadas da sua obra Eichmann em Jerusalém, e de agir em conformidade com a sua exigência num tempo em que:
– parece não haver alternativas;
– as escolhas políticas estão silenciadas ou são vilipendiadas.

Nesse sentido, anunciamos a realização de uma Jornada – cujo modelo é o do forum – que terá lugar no próximo dia 6 de Dezembro entre as 10h e as 14h, no Auditório 1 da FCSH.
Propomos uma discussão que evidencie o papel dos saberes e das actividades criativas como instrumentos de análise do momento presente, a fim de impedir que ele se possa tornar numa condenação eterna.
Apelamos à vossa participação e à divulgação desta iniciativa. O objectivo final será a redacção de um texto comum com base nas intervenções previstas e não previstas, o qual possa ser difundido nos meios de comunicação disponíveis e circular de mão em mão.

Irene Pimentel e Maria Filomena Molder
Lisboa, 27 de Novembro de 2012

29.11.12

há uma coisa que muitos políticos ainda não perceberam.


Pode ter acabado o tempo em que as pessoas votavam em B por não gostarem de A.

Pode ter chegado o tempo em que as pessoas que não gostam de A nem de B não votam nem em A nem em B.

Nem em C, nem em D, nem em E.

Pura e simplesmente.

Ainda por aí muito partido que parece não ter percebido isto.

pensar a censura.


Tribunal russo restringe acesso a vídeos das Pussy Riot na Internet.

Um assunto a seguir. Já expliquei antes o que penso desta matéria, mas voltarei um destes dias, quanto tiver tempo, porque as fracturas na leitura deste caso são muito importantes para perceber como realidades novas por vezes dificultam que as encaixemos nos velhos odres.

O mais conhecido dos vídeos “extremistas” é a “oração punk” em que as Pussy Riot pedem à Virgem para afastar Vladimir Putin, então primeiro-ministro e agora Presidente. Deixo essa peça.



o Estado vai passar a fazer os orçamentos das famílias?


Governo abre a porta a que o ensino secundário passe a ser pago.

O ensino secundário é obrigatório. Até agora, também é gratuito. Se o passismo levar a sua avante, o ensino secundário deixa de ser gratuito. Pode, deixando de ser gratuito, continuar a ser obrigatório? Apesar dos constitucionalistas, acho que não. (E não estou assim tão preocupado com os constitucionalistas: afinal, parece que tudo se pode defender juridicamente, desde que chegue a vontade para tanto.) Há um interesse nacional em elevar a qualificação dos portugueses e isso justifica a obrigatoriedade do secundário - mas, fazendo pagar o que é obrigatório, temos o Estado a fazer o orçamento das famílias, dizendo onde têm de gastar. A fazer o orçamento de cada família com filhos em idade de cursar o secundário.
As famílias têm uma escapatória: manter a pequenada, repetência após repetência, no ensino básico, que esse é gratuito por obrigação constitucional. Até se extinguir a obrigação... Ideia estapafúrdia? Certamente; tão estapafúrdia como pensar a educação como sítio para cortar no "Estado", em vez de a tratar cada vez mais como desígnio estratégico sempre e sempre a precisar de mais investimento.
Ou o melhor será aprender mandarim e ir para a porta das empresas onde primem administradores chineses?

novos dilemas desta crise.


Há muito quem queira enfrentar esta crise com as respostas passadas. O pessoal do "salve-se quem puder" quer resolver com mais mercado a crise que os mercados (financeiros) espalharam pelo mundo como vírus, parasitando a economia real. (Em rodapé: a maior parte dos anarquistas que por aí andam podem ser metidos na mesma categoria dos hiper-ultra-liberais, já que o individualismo os junta desgraçadamente na mesma prateleira.) O pessoal do Leviatã julga que o Estado resolve tudo, esquecendo as lições do passado acerca do onanismo da burocracia e as consequências em falta de democracia que daí resultaram historicamente. No meio disto tudo, a minha família ideológica - uma coisa que (já) não existe: os partidários da autonomia, do auto-governo, da descentralização, da responsabilidade local - está mais ou menos tão bloqueada pela crise como todos as outras.

Basicamente, os partidários da autonomia, do auto-governo, da responsabilidade descentralizada, dão de caras com o seguinte dilema: antes queríamos soluções locais, participativas, em pequena escala; mas, num mundo globalizado, face à imensidão das forças desorganizadoras, o que é pequeno e local dificilmente se aguenta. Um exemplo comezinho, mas próximo: no sistema financeiro (ver exemplo espanhol) os primeiros a cair foram os pequenos, locais/regionais (em Espanha, as Cajas, que tiveram de ser absorvidas por não se aguentaram nas pernas). Sem voarmos mais alto e mais juntos, cairemos mais facilmente: por isso precisamos da Europa, para lá de qualquer utopia, para sermos mais difíceis de engolir. O "pensar global, agir local" tornou-se muito difícil de praticar.

Estamos todos a precisar de reinvenção. E depressa, antes que o governo dos Relvas consiga não deixar pedra sobre pedra.

cambaleão = cambalhota + camaleão.


Barroso assume ideias alemãs para a resolução da crise do euro.

A escola maoísta portuguesa tem muitas variantes, mas uma ideia é património de todas as sub-seitas: "perder é que não". Tudo tem de ser feito para ganhar e isso vem muito antes de qualquer ideia-mais-ideológica. Barroso personifica exemplarmente essa escola: ele pode mudar de "programa" para a Europa (ou para Portugal, ou para o mundo) todas as vezes que a manobra possa aplainar o caminho para a sua ambição pessoal. O homem não emigrou apressadamente para ter de voltar ao seu torrão natal: a saga tem de prosseguir. De guinada em guinada, que importa isso.

28.11.12

nova espécie de leão.



Agora sem brincadeiras de mau gosto para os meus confrades leoninos: Nova espécie de leão... e já em vias de extinção. E é tudo ciência da mais séria!

as duas verdades a que temos direito.


Em tempos que já lá vão, um quotidiano da nossa praça tinha um lema: "a verdade a que temos direito". Esse jornal, "o diário", já lá vai.
Agora há por aí jornais, parece que com muito sucesso comercial, que vendem todos os dias "a pequena falsificação a que temos direito". Sejam umas falsas partes anatómicas de meninas e senhoras que supostamente vendem (papel), sejam falsas notícias que servem determinados propósitos.
Já o "Público", que vai despedindo e andando, é mais requintado: quer inovar sem jornalistas. E depois falta pau para tanta obra. Nessa saga, novo episódio: prolonga agora a técnica que deveria designar-se como "as duas verdades a que temos direito". Hoje dá uma amostra dessa técnica. Noticiando uma conferência do Instituto de Ciências Sociais, que assinala os 50 anos dessa prestigiada instituição de investigação, e na qual, escreve-se, "a crise económica esteve no centro das atenções", o Público titula na primeira página, entre aspas para mostrar que foram os cientistas sociais a dizer: "Não devemos temer grupos radicais mas quem fica em casa". Ficamos a pensar que algum cientista social decidiu desancar os pacatos cidadãos que não se radicalizam nas ruas, mas apenas no remanso do lar. Depois, vamos à página 12, onde a notícia se desenvolve, e o título já é outro, ainda entre aspas: "Não devemos temer grupos radicais mas o cidadão normal que fica sem casa".
Vai alguma distância entre o cidadão que fica em casa e o cidadão, ainda normal, que fica sem casa. Até por ser mais difícil ficar em casa depois de se ficar sem casa.
E assim o Público me serviu duas verdades a que tenho direito, pelo preço de uma só. Entre casa e o trabalho, no percurso de autocarro, tendo lido apenas o título de primeira página, reflecti sobre o perigo das pessoas que ficam em casa, contraposto ao perigo dos radicais, que seria uma teoria de algum cientista social em tempo de crise. Até já me sentia na obrigação de escrever um post sobre a coisa. Chegado aqui à "casa" que me abriga para trabalhar, ao café da manhã, li o miolo do jornal, arquivei a reflexão anterior, e dediquei-me a um novo problema: o potencial revoltoso das pessoas que ficam sem casa. Aqui, as minhas reflexões tornaram-se bastante mais do senso comum. E do comum e banal dos nossos tristes dias.

27.11.12

deputados que deixarem de o ser.





Se os deputados (neste caso, do grupo parlamentar do PSD) deixam que um ministro (neste caso, o Sr. Dr. Relvas) reescreva uma declaração de voto que eles assinam e entregam como sua, estes deputados estão lá para baixar as calças. Deixaram de ser deputados. Vão para casa. Estes e todos os outros, de qualquer partido, que tenham feito ou admitam vir a fazer o mesmo. Vão para casa, porque na realidade deixaram de ser deputados e estão a usurpar as cadeiras de verdadeiros deputados.

São tão deputados como seriam livres as eleições se fosse o príncipe a eleger os representantes do povo.

(imagem rapinada ao Miguel)

leite achocolatado.


Houve um tempo em que o PSD considerava que pensar num aumento na taxa de IVA do leite com chocolate era uma insuportável afronta às famílias portuguesas. Mas isso foi na altura do assalto. Agora eles acham que nós estamos mais capazes de suportar seja o que for.

(Lembrado por Nuno Pires.)

os prudentes nunca têm razão no momento.


Manifestantes no Egipto dispersados com gás lacrimogéneo.

Quando começaram as "primaveras" árabes, muitos dissemos que nada no mundo é a preto e branco. E que nem sempre o que vem a seguir a uma coisa má é necessariamente uma coisa boa. Não faltou quem clamasse horrores contra estes tipos prudentes, que logo se tornaram suspeitos de simpatia pelas ditaduras em apuros. Nessa vaga de entusiasmos sem cuidados, quem desconfiava e acautelava era um velho do Restelo.
Infelizmente, os prudentes sempre viram melhor no escuro do que os iluminados da vanguarda. Estes, aliás, perdem o pio com muita facilidade.

23.11.12

somos todos criminosos?


Organizadora da manifestação de 15/9 constituída arguida. Mariana Avelãs foi constituída arguida pelo “crime” de organização de manifestação não comunicada.

Concordo que o exercício do direito de manifestação não é prejudicado por ser necessário comunicar previamente às autoridades, nos termos da lei, que a manifestação se vai realizar. Organizar o exercício de um direito não é limitar esse direito.
Já coisa bem diferente é tentar perseguir criminalmente uma pessoa - ou quinze pessoas - por se terem juntado num local público para conversar com jornalistas sobre uma manifestação, mesmo que tenham levado um pano alusivo ao tema da manifestação. Parece-me isso mais um passo numa espiral de violência. Sim, porque tentar criminalizar a mais ordeira das aparições das pessoas na praça pública, é o quê se não dizer às pessoas que "estar contra", só por si, já é repreensível? E passível de repressão? Esses sinais de violência do Estado são convites à generalização da violência. Cuidado com essa gente, que tenta criminalizar o próprio facto de respirarmos.

Cavaco, personagem de Jorge Luis Borges?


Só pode. Isto não pode ser apenas insanidade.



Até que a morte nos separe?



Cito:
Segundo as estatísticas da APAV, entre 2000 e 2011, 76.582 vítimas recorreram à associação, tendo-se registado o maior número de vítimas em 2002, com 7.543 casos. Ao longo destes onze anos, as mulheres têm vindo a representar a maior percentagem de vítimas, atingindo o valor máximo em 2002, com 6.958 casos. No total das 76.582 vítimas, 68.751 eram mulheres, ou seja, 89,7%. Já em relação ao autor do crime, maioritariamente são homens em todos os anos em análise, contabilizando-se um total de 68.770 homens como autores do crime para os 76.582 casos reportados de violência doméstica, o que corresponde a 89,8% dos casos.

Mais aqui.

a tentação da omnipresença.


Nuno Santos demite-se de director de informação da RTP depois de a PSP ter pedido imagens da carga policial na noite da última greve.

O ainda chefe da Igreja de Inglaterra, comentando a decisão do sínodo da sua igreja que recusou a possibilidade de mulheres poderem ser bisp@s, afirmou que ela mostra cegueira face ao que importa no momento presente à sociedade secular. Muitas instituições deveriam pensar nesses termos: pode viver-se neste mundo sem ser deste mundo? Dito de outro modo: até que ponto podemos tolerar que certos aspectos da nossa vida colectiva funcionem em flagrante desprezo por princípios que consideramos fundamentais? Até que ponto devemos conviver com esse desprezo sem ficarmos e nos mostrarmos incomodados?
Esta pergunta pode - e deve - estender-se a muitos domínios.
As notícias de que a televisão pública pode ter facilitado o uso de imagens colhidas em reportagem sobre manifestações políticas para servirem o trabalho policial - ou, "apenas", de que para isso terá sido solicitada - entra na categoria dos acontecimentos com os quais não podemos conviver. Percebo que a polícia tenha de fazer o seu trabalho. Mas exijo, por outro lado, que informar não seja confundido com policiar, que um trabalhador da informação a tratar de me manter a par do que se passa na rua não seja transformado nos olhos ou nos ouvidos da polícia. Andam por aí estas meias-informações, certamente com contornos suficientemente complicados para já provocarem demissões, e nós fazemos de conta que podemos conviver com isto?
Não, não podemos conviver com a cultura securitária, na medida em que ela é uma cultura totalitária. Uma cultura totalitária é aquela que alimenta a ambição de organizar todo o mundo em função de um único ponto de vista. Mesmo que esse ponto de vista seja legítimo (defender a segurança pública é legítimo), a cultura totalitária tende a destruir a legitimidade de todos os outros pontos de vista e a submetê-los à condição de instrumentos. E isso afecta nuclearmente o nosso ecossistema de liberdade, que será insustentável se algum protector, iluminado ou não, pretender ter olhos e ouvidos por todo o lado. A tentação da omnipresença é uma tentação fatal, que nos obriga a estar atentos a estas notícias.

21.11.12

o mar, a agricultura e a indústria. e o Partido Comunista.


Segundo o Público, o Presidente da República afirmou que o país precisa de voltar a olhar para os sectores que esqueceu nas últimas décadas: o mar, a agricultura e a indústria.

Não interessa muito agora o facto de Cavaco Silva ter sido, enquanto governante, um dos entusiastas promotores desse esquecimento. A verdade é que a esmagadora maioria dos políticos portugueses - e dos portugueses, mesmo sem serem políticos - alinharam nesse esquecimento. Pensámos que sermos ricos era esquecer essas coisa da produção: os pobres do Sul e do Oriente que produzissem, enquanto nós nos dedicaríamos aos "serviços".
Interessa-me agora outro aspecto da questão: é justo lembrar que o Partido Comunista Português foi durante muitos anos a única força política portuguesa relevante a lutar contra esse esquecimento, ou abandono. Podemos dizer que o fazia por más razões. Por mim posso dizer, pelo menos, que tendo a não me reconhecer num certo nacionalismo que tintava excessivamente essa posição dos comunistas. Mas devo reconhecer que esse alerta se revela, passados todos estes anos, um alerta que fizemos mal em descartar demasiado apressadamente.
Há, aliás, uma mensagem política central a reter nesta questão: a vida política portuguesa há muitos anos que é demasiado teatral e atira para debaixo do tapete muitas questões que deviam ser discutidas mais seriamente. Em geral, as posições do PCP são tratadas com o desdém "lá vêm estes tipos sempre com a mesma conversa". O PCP entrincheirou-se, os demais partidos deixaram que se entrincheirasse, o próprio PCP encontra alguma comodidade nisso. Mas fazemos mal. E isso pode pagar-se caro. Como, se calhar, este caso exemplifica.
A democracia tem de continuar a aprender-se sempre. As vozes são para ser ouvidos e tidas em conta, não apenas para fazer um certo ruído que parece debate sem o ser.

(Rodapé acrescentado. Por alguém me ter chamado a atenção, esclareço que a expressão, da última frase, "as vozes são para ser ouvidos", não é um erro; não devia estar lá "as vozes são para ser ouvidas". Escrevi isso (uma "liberdade poética") para significar que falar e ouvir devem fazer parte do mesmo processo em democracia.)

isto ainda é uma democracia representativa?


Ou trata-se apenas de uma leilão pouco transparente?

Refiro-me a este destaque do Público de hoje:


19.11.12

vá, agradece ao robô.


Um exosqueleto é uma espécie de esqueleto externo: uma estrutura de suporte e protecção para outros órgãos do corpo humano, como também o esqueleto interno é, mas colocado no exterior do corpo. O exosqueleto é algo que outras espécies naturais possuem.
E que tal um exosqueleto robótico, para tornar o corpo humano mais forte, mais resistente? Estão a fazer isso, para soldados em condições extremas. Veja o video. Deixo os comentários para as reflexões dos leitores.



que o poeta seja um fingidor.


Que o poeta seja um fingidor, aceita-se.
Que a política oficial continue a ser largamente um fingimento, é inaceitável.
O governo finge que vai correr tudo bem. Minto: o governo finge que acredita que vai correr tudo bem.
A oposição responsável (se não quisermos ser simpáticos: a oposição deste rotativismo) finge que está nas nossas mãos fazer diferente apenas pelas nossas forças. Não digo que "a oposição de sua majestade" minta, porque não sei até que ponto vai a sua ingenuidade: quanto maior for a ingenuidade, menos será a sua culpa e menor será, ao mesmo tempo, a sua valia para um país aflito. Mas seria bom ir pondo os olhos em Hollande, cujas ideias não vão a lado nenhum só com vontade e declarações.
A oposição valentona (se não quisermos ser simpáticos: a oposição que quer deitar fora o bebé com a água do banho) finge que as nossas dores seriam menores se virássemos as costas aos nossos credores e vivêssemos desde já com o que produzimos. A retórica do "não pagamos" é pegar ou largar: há poucas pessoas que saibam o que isso nos custaria que ainda se atrevam verdadeiramente a defender tal opção.

O que é assustador no fingimento reinante não é a variedade das vozes. Poderia dizer-se: não saímos daqui porque "cada cabeça cada sentença". Julgo que, na verdade, não é isso o que se passa, mas antes algo bastante mais bizarro. O que assusta os políticos de circunstância é que o momento pede convergência e não brados heróicos contra todos os outros à sua volta, que é aquilo que esta guerra civil não declarada tem desgraçadamente pedido. Vejamos.

Quase toda a gente está de acordo que a actual estratégia de "ajustamento" não vai resultar e, além disso, que a única saída é conseguir uma condicionalidade diferente para os empréstimos da Troika. Desde Miguel Cadilhe a Arménio Carlos, passando por altas figuras dos partidos do governo, toda a gente já percebeu que assim vamos rebentar na praça pública. Claro que o "não pagamos" da esquerda da esquerda não é a mesma coisa que a "negociação honrada" de Cadilhe, ou o "mais tempo e menos juros" do PS. Isto é: todos estão a ver o problema mais ou menos da mesma maneira, embora não pareça. Não parece, porque o discurso anti-Euro tem um aspecto diferente do discurso pró-Euro, mas, em termos práticos, se se conseguir uma modificação substancial das condições, toda a gente vai respirar melhor e os termos do debate evoluem. Mesmo o PCP e o BE não se importam que venha o dinheiro...
Isto dá a ideia de que haveria condições para algum consenso nacional em torno de objectivos mínimos para tentarmos escapar do buraco. Só mesmo Passos e Gaspar remam contra esse consenso. O país ganharia imenso, em termos de margem de manobra internacional, se aparecesse unido contra esta austeridade sem futuro, exigindo outro programa para outro ajustamento - embora comprometendo-se a uma conduta responsável como parceiro na comunidade internacional. Já imaginaram a força que teria lá fora aparecerem os patrões e os sindicatos, a direita e os comunistas, unidos nesta frente?
A dificuldade é que para isso teriam de unir-se agora naquilo em que convergem, deixando para depois as divergências. E isso está contra a moda da guerra de todos contra todos na nossa política doméstica.

Assim sendo, todos fingem que as suas representações habituais continuam a valer alguma coisa. Alguns esperam que o brinde de uma nova orientação europeia (depois das eleições alemãs) chegue antes do dilúvio (e antes de o seu governo cair). Outros esperam chegar ao poder em bom tempo, para não arderem no mesmo fogo que já deflagrou. Outros (na esquerda da esquerda) esperam que tudo corra suficientemente mal (ao PS e à Europa) para mudarem o mapa político português e atirarem os socialistas para o lixo. E todos vão fazendo de conta que isto é forma de lidar com um país.

A convergência, se não o consenso, arde muito nas mãos dos políticos tradicionais portugueses: não sabem o que lhe hão-de fazer. Neste momento, em vez de valorizarem o facto de quase todos verem o perigo vir do mesmo lado, em vez de investirem num consenso político tão alargado como quase nunca é possível, continuamos a esmiuçar os sufrágios. E o tempo a passar. Contra nós.

(No meio disto tudo, esqueci-me de falar de Cavaco Silva. Na verdade, é um esquecimento que não faz muita diferença: o Presidente já não é deste mundo. A menos que tenha regressado ao Pulo do Lobo e à manha de se esconder para regressar vestido de cordeiro.)

um problema das religiões.


Um problema bastante generalizado das religiões é terem tendência para uma visão auto-centrada do mundo.
Será só um problema das religiões? Não, até não é; mas quanto maior é a pretensão de abrangência de um pensamento, mais nítido se torna aquele defeito e mais destruidores se podem tornar os seus efeitos.




não quero mais destas campanhas eleitorais.



Não era preciso fazer mais sacrifícios. Pois não. "Isto" é puro prazer para masoquistas.

18.11.12

governados por comediantes?


O primeiro-ministro descobre-se irónico:

O primeiro-ministro lamentou hoje não ter sido "possível" ao ministro da Administração Interna fazer "uma declaração mais esclarecedora" sobre a intervenção do Governo na sequência da tempestade no Algarve. Mais tarde, veio o esclarecimento: Passos estava a ser irónico.

O que se pergunta é: PPC estava a ser irónico com quem? a propósito de quê?

Devia haver limites para a comédia. E deviam ensinar ao PM como a ironia deslocada pode tornar-se comédia, ou mesmo tragédia.

Mesmo para um governo que consegue tirar Santana Lopes do topo da lista dos governos risíveis. Até por já não haver grande vontade de rir.

17.11.12

Arthur Bispo do Rosário.


Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) foi um artista brasileiro. Viveu 50 anos internado como louco e foi aí que deu a sua obra ao mundo, usando os materiais que podia encontrar no seu ambiente. Vi uma pequena exposição dele em Bruxelas, no Museu de Arte Bruta, por ocasião da Europália dedicada ao Brasil. Fiquei impressionado com a imaginação prodigiosa do homem, que fora marinheiro antes de ser internado e misturou tudo na sua cabeça, para de lá tirar um mundo completo, complexo, intrincado. Agora, a partir de amanhã, domingo, 18 de Novembro, está uma grande exposição da sua obra no Museu da Cidade, em Lisboa, tendo como curador Wilson Lázaro, o director do Museu do Bispo do Rosário.

A descoberta de Bispo do Rosário como artista (louco ou génio? a pergunta retórica habitual) andou de par com uma reavaliação crítica das ideias dominantes acerca da loucura e acerca das teorias psiquiátricas, uma reavaliação crítica em que o Brasil se empenhou a certa altura da sua história.

Este é, por tudo isso, um artista que tem muito por onde nos interrogar. Como aperitivo deixo parte de um documentário realizado por Fernando Gabeira na década de 1980.



16.11.12

se a senhora Merkel diz...


Passo a citar:
Uma das coisas divertidas da passagem de Angela Merkel por Lisboa – para além da “photo opportunity” do letreiro “governo de Portugal” – aconteceu quando a chanceler, na conferência de imprensa ao lado de Passos Coelho, lembrou a origem da crise do euro. Deve ter sido esquisito para quem está habituado a culpar “o Sócrates” ter ouvido a todo-poderosa Angela explicar que, por causa da crise financeira desencadeada nos Estados Unidos, e da sua propagação à Europa, os governos europeus desataram a apostar no investimento público para conter o descalabro das suas economias. Só que entretanto os investidores começaram a desconfiar de algumas economias (as mais frágeis) e a duvidar da fiabilidade de alguns para pagar as respectivas dívidas. Esta foi a explicação de Merkel, perante um Passos Coelho que arrumou a um canto o discurso habitual do “vivemos acima das nossas possibilidades” e se concentrou no verdadeiro desastre nacional – um grave problema de produção.

Ana Sá Lopes, Os dias do fim

a violência e a credulidade de alguns liberais.


A propósito da violência nas margens da greve geral de dia 14, queria (além do que já ficou dito) dar nota de um espanto meu.
É claro que a polícia reagiu a uma actuação violenta e perfeitamente inútil da parte de um pequeno grupo de manifestantes. Concordo que esses actos não devem ser tolerados, porque já basta a selva que temos, não precisamos de mais fogo. Mas, e este é um grande mas, estou espantado com a facilidade com que alguns comentadores descartam a análise dos muitos elementos que indiciam que a polícia foi além do necessário e atingiu desnecessariamente muitos cidadãos pacíficos - e, se calhar, usou métodos duvidosos.
Estou espantado com essa benevolência de alguns face à violência do Estado. Afinal, vós que pregais tanto a salutar desconfiança face ao Estado no tocante a assuntos económicos e sociais, porque nesses temas sempre o indivíduo haveria de vir antes do Estado, porque o Estado seria sempre de presumir como um papão (ao querer, por exemplo, redistribuir), esmoreceis tão rapidamente de querer interrogar as razões e os processos do Estado quando se chega a um caso destes? Quanto chega à gestão da violência já sois todos crédulos? Se a polícia disse, está dito, não se pensa mais nisso?
Espanta-me essa acomodação repentina dos que pugnam sempre tanto contra a mão do Estado quando se trata de usar o Estado para redistribuir - e aceitam com tanta benevolência o longo braço da violência. Não se julgue que quero um Estado fraco na manutenção da ordem pública, que é antes de mais uma ordem necessária à convivência democrática e à liberdade. Mas a vigilância e o espírito crítico são indispensáveis quanto às formas concretas de prosseguir essas funções. Por serem vitais essas funções, não podemos autorizar-nos a ser, quanto a elas, crédulos nem benevolentes. Temos de estar vigilantes, tanto quanto à violência da turba, como quanto às responsabilidades daqueles que o Estado paga para nos protegerem.

a violência.


Acerca dos confrontos violentos entre manifestantes e polícias, ontem, em frente à Assembleia da República, quero deixar dois apontamentos.

Primeiro, sem dúvida que as agressões à polícia existiram, não tiveram nada a ver com o grosso da manifestação e, a meu ver, são um método de existência no espaço público que não contribui em nada para melhorar o país ou resolver os nossos problemas. Mesmo que haja infiltração policial nesses grupos, não acredito que essa infiltração seja o essencial do problema, nem a sua causa ou explicação. (Embora se deva fazer luz sobre o papel de eventuais infiltrados nestas situações, mesmo que essa luz não possa acontecer na praça pública e seja entregue ao controlo das pertinentes instituições.) Esta violência serve os que preferem a via da repressão e distrai as pessoas dos verdadeiros problemas.

Segundo, ontem houve muita gente pacífica, que estava a manifestar-se normalmente ou apenas a observar, ou simplesmente a passar por ali, e que apanhou cassetada valente nos costados. Basta ver as imagens da televisão para perceber que assim foi. Isso é inadmissível. A polícia diz que avisou antes de avançar, mas pelos relatos de cidadãos normalíssimos que por ali andavam, e por análise da situação, acredito que a polícia avisou - mas parece que não avisou de modo a que isso fosse entendido, sequer ouvido, pela generalidade das pessoas ali presentes. Umas palavras de megafone a partir da escada facilmente se perdem sem chegarem à generalidade das pessoas no meio da confusão da praça. As consequência estão à vista. Sem nenhuma retórica revolucionária, julgo que a polícia tem a obrigação profissional de fazer as coisas de modo a evitar o espancamento generalizado de pessoas que nada fizeram de mal. Não podem levar tudo à frente. Eu não estive lá, mas tinha o direito de ter estado sem correr o risco de ser corrido à bastonada. As imagens da TV mostram pessoas encostadas aos prédios, a observar, que se repente começam a ser violentamente molestadas pela polícia. Face a esta situação, o ministro das polícias devia usar menos de palavras grandiosas e levar mais a sério a necessidade de garantir que as forças de segurança não se tornem elas próprias factor de insegurança para o cidadão anónimo que quer manifestar-se sem correr estes riscos. Claro que os manifestantes violentos lhe deram o bom pretexto para aquela cena, mas a obrigação de um governante responsável não é abrir as asas e embarcar na onda; a sua obrigação é garantir que as forças do Estado façam tudo no estrito respeito pela integridade dos cidadãos.

14.11.12

o chumbo estrondoso do camarada Barroso.



Comunico os resultados de um inquérito sobre o desempenho da Comissão Europeia, presidida pelo camarada Durão Barroso.

Numa escala de 1 a 10 (1 = mau, 10 = bom), 53,6% dos respondentes deram à Comissão Barroso uma nota de 3. Chumbo redondo. Ainda: 23,1% deram-lhe o mínimo: nota 1. Menos de 1% deu nota 10.

Foram inquiridas 811 pessoas, das quais perto de 30% trabalham para instituições europeias, cerca de 10% trabalham em universidades, cerca de 13% no mundo empresarial. Os respondentes são nacionais de vários países da UE, com um peso particular para a Alemanha e a Bélgica (mais de 12% cada). (Como seria se tivessem perguntado mais nos países do Sul?)

Entre todos os comissários, Barroso foi o que recebeu a pior nota: 2,5 em 10.

Notícia mais detalhada do chumbo do camarada Barroso, que anda mais virado para procurar novo emprego do que para fazer a Europa fazer o seu trabalho, pode ser encontrada aqui.

(Tentei aumentar o tamanho da imagem, mas a qualidade intrínseca não permitiu.)

Greve de zelo.



Em dia de greve geral, reproduzo um excerto do meu livro Podemos matar um sinal de trânsito? (Esfera do Caos).

***

Estando a falar de hábitos, há uma distinção que seria interessante introduzir. Hábitos e rotinas. A hábitos no seio de organizações chamamos rotinas. Rotinas são comportamentos que estabelecem certas interacções entre posições (ou papéis) dentro de uma organização. Essas rotinas preenchem os espaços deixados vazios pelas regras, já que as regras formais não podem antecipar todos os pormenores da vida real. Naquela empresa, as regras estipulam que as facturas se entregam ao contabilista – mas, na prática, elas são sempre entregues ao secretariado do contabilista. Se alguém insistir em falar pessoalmente com o contabilista para lhe entregar pessoalmente um monte de facturas perfeitamente banais, será considerado inconveniente, além de estar a desperdiçar o seu tempo e o dos outros. Um aspecto importante é que não interessa se hoje é o senhor António ou a menina Helena quem está a secretariar o contabilista: a rotina não distingue a pessoa, mas a posição na organização, o papel. Que a posição, ou o papel, sejam um fato que sabemos distinguir de quem o veste, nota-se em inúmeras circunstâncias corriqueiras da vida: sei como devo dirigir-me ao senhor da bilheteira do teatro, sei como ele se comportará perante a minha pretensão de comprar um bilhete, sei como ele fará a gestão do acto de pagar o bilhete, apesar de não o conhecer pessoalmente, não lhe reconhecer o rosto nem saber o nome. Interajo com ele como ocupante de uma posição, ele faz o mesmo comigo. As rotinas organizacionais também separam (razoavelmente) a posição e a pessoa que ocupa a posição. Inúmeras rotinas, hábitos organizacionais, mantêm a funcionar autênticas máquinas feitas de humanos. Coisa que as regras explícitas, inscritas em algum normativo, só por si não poderiam conseguir.
Um determinado fenómeno, apesar de relativamente raro, pode ajudar-nos a compreender este carácter das organizações. Falamos da greve de zelo. Chama-se "greve de zelo" a uma prática de contestação laboral usada em certa altura em alguns países. Coisas de uma luta de classes sofisticada, em que não se encontram (as classes) a meio da noite para traulitarem mutuamente nas respectivas cabeças – antes procuram maior subtileza, pela qual conseguem, mais do que amassar a classe antagonista, encher-lhe o peito de espanto e a cabeça de dificuldades de compreensão. Numa greve de zelo, os grevistas não se recusam a trabalhar: limitam-se a aplicar de forma estrita todas as regras formalizadas (escritas nos regulamentos) que enquadram a sua actividade. O resultado de uma greve de zelo não é que as coisas funcionam melhor, como qualquer racionalista da acção haveria de esperar. Esses pensam que nas regras miúdas e precisas é que está o segredo do bom funcionamento da máquina do mundo. Pelo contrário, o verdadeiro resultado de obedecer total e exclusivamente a todas as regras escritas e bem assentes é... a inoperância!
É que, no domínio exclusivo das regras formais e bem firmadas, faltam aquelas práticas que, fugindo à letra dos regulamentos, fazem funcionar as coisas. Por exemplo, quando um funcionário subalterno toma uma iniciativa sem autorização superior, porque “sabe” que ela seria dada se o chefe estivesse presente, apesar de, em rigor, arriscar uma sanção por avançar sem uma assinatura no papel apropriado. A assinatura virá. E normalmente vem. Mas emperra tudo se eu insistir que espero pelo chefe. E isto multiplicado a cada momento dos dias longos e complicados de qualquer organização humana sofisticada, por muito burocrática que seja. (Merleau-Ponty escreveu que “a instituição não é apenas o que foi fixado por contrato, mas isso mais funcionamento”.)
Há quem confie que a acção dos humanos segue as regras escritas que aparecem nos manuais de procedimentos (relativos, por exemplo, à autorização de pagamentos dentro de uma organização, como se esse manual fosse comparável a um manual de reparação de uma máquina). Esses racionalistas da acção, tão ingénuos por demasiado admiradores da razão, nunca compreenderão o segredo de uma greve de zelo. Não estranha: muitos gestores e políticos também não percebem. E, não percebendo, descuidam "ninharias" e "perdas de tempo" que consistem em envolver, mobilizar e interagir com os agentes.

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Abordo muitos outros aspectos da nossa vida social e institucional, sempre com exemplos práticos apresentados de forma simples, neste livro:



(Republicação)

hoje há uma greve perfeitamente justificada.

(Diego de Rivera, O Homem Controla o Universo, 1934)

12.11.12

perguntas tipo jangada de pedra.


A Ana Sá Lopes pergunta: «Como é que é possível que a Europa do Sul não discuta em conjunto a saída do euro, a única arma de negociação com peso de que dispõe?». Até um famoso Ladrão de Bicicletas (João Rodrigues) aplaude a pergunta.

Ora, a resposta é fácil: "a Europa do Sul" não existe. Existem países da Europa do Sul com alguns interesses convergentes e alguns interesses divergentes. Se um acordo para fazerem qualquer coisa em conjunto lhes fosse metido no bolso por, digamos, Deus Nosso Senhor; se tal acordo já feito e fechado caísse do céu aos trambolhões, talvez até fizessem qualquer coisa em conjunto. Assim, quem arrisca ser o primeiro a dar um passo no sentido da saída do Euro? O primeiro a dar esse passo é sacrificado no dia seguinte pelo resto dos parceiros (ou, se preferirem, pelos "mercados") e sai pela janela, sozinho e não com a companhia dessa mítica entidade, "a Europa do Sul". Se a Europa do Sul fugisse com os seus trapinhos, no dia seguinte estaríamos a carpir a maldita sorte de estarmos aqui entalados no fim da Península com a Espanha a separar-nos do resto da Europa e a abusar de ser muito maior e rica do que nós. Nessa altura, os brilhantes estrategas do "vamos dar cabo deles" haveriam de conceber uma aliança com a Madeira, os Açores e, quem sabe, as Berlengas e as Desertas.

Afinal, parece que não são só os "economistas ortodoxos" que se esquecem das realidades políticas e institucionais quando se põem a imaginar soluções catitas para os problemas.

em dia de visita de Merkel.


Como já é sabido que, em termos políticos, quanto à visita de Merkel hoje a Portugal estou na toca, deixo, para não perder de vista os meus amigos que andam a expressar a sua zanga com a Alemanha, uma matéria lateral aos dias de hoje, mas sem dúvida com alguma ligação. Segue-se uma longa citação de um texto de 1939.

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Foi o grande historiador alemão Alexander von Humboldt, que, há um século, proclamou a ignorância dos navegadores portugueses da época dos descobrimentos nestes termos bastante depreciativos: "Não é a multidão guerreira e pouco civilizada dos conquistadores que devemos honrar pelos avanços científicos que, sem dúvida, têm o seu princípio na descoberta do novo continente."
Ao mesmo tempo que ele avançava a tese da ignorância dos conquistadores (alusão directa aos navegadores Portugueses), Humboldt apresentou os seus dois compatriotas Martin Behaim e Regiomontanus como os fundadores da arte de navegar na época das descobertas. Em sua opinião, Martin Behaim, o "homem extraordinário", "cosmógrafo de grande renome" tinha recebido do rei de Portugal, D. João II, a ordem de calcular uma tabela das declinações do Sol e de ensinar aos pilotos a guiarem-se pelas alturas do Sol e das estrelas. E ele sustentava que "Regiomontanus publicara em Nuremberga as suas famosas Efemérides Astronómicas... que serviram nas costas da África, da América e da Índia, nas primeiras viagens de descoberta de Bartolomeu Dias, de Colombo, Vespúcio e Gama".
Desde então Colombo começou a figurar na história como o verdadeiro iniciador dos empreendimentos marítimos do seu século.
Foi assim que nasceu, com toda a aparência de uma verdade comprovada, a lenda da origem alemã da ciência náutica portuguesa na época dos descobrimentos, com a exclusão total da obra do Infante D. Henrique o navegador e do Rei D. João II.
A propaganda a favor de Behaim continuou na obra de Ghillany, Geschichte des Seefahrers Bitter Martin Behaim, publicada em 1853 sob o patrocínio e com a colaboração de Humboldt, para "lembrar à memória do mundo o papel da ciência alemã que, no fim da Idade Média, permitiu aos célebres navegadores percorrer e penetrar corajosamente no Oceano, graças à ajuda prestada pela ciência de Regiomontanus e Behaim."
A história desta campanha, iniciada por Humboldt e continuada pelos seus discípulos, a favor de Behaim, de Regiomontanus e da origem alemã da ciência náutica portuguesa, é rastreada nos dois volumes de Les légendes Allemandes sur l'Histoire des Découvertes Maritimes Portugaises [Lendas alemãs sobre a história das descobertas marítimas portuguesas], de Joaquim Bensaude.
Já em 1899, Ravenstein, estudando cuidadosamente todos os documentos utilizáveis, conscientemente concluiu que "o objetivo principal, senão único, da viagem de Behaim a Portugal foi de natureza comercial" e que ele "não exerceu qualquer influência sobre a origem ou os progressos da arte da navegação na época das descobertas."
Ravenstein liquidou assim a tese de Humboldt sobre o suposto envolvimento de Behaim como auxiliar dos empreendimentos empresas marítimos de D. João II.
Em 1912 foi publicado em Portugal o notável trabalho de Joaquim Bensaude sobre L'astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes découvertes [A Astronomia Náutica em Portugal na época das grandes descobertas] e, no ano seguinte, A Astronomia dos Lusíadas, do professor de mecânica celeste na Universidade de Coimbra, Luciano Pereira da Silva, que vieram revolucionar a concepção corrente da história e dos progressos da ciência náutica das descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, ao mesmo tempo que denunciavam os erros e equívocos prevalentes por esse mundo fora, após a publicação do Exame crítico e, mais tarde, do Cosmos, de Humboldt.
Desde então, estes dois cientistas publicaram uma notável série de novos trabalhos que abriram horizontes mais amplos para a investigação histórica.
A descoberta do Regulamento do Astrolábio da Biblioteca de Munique, o mais antigo manual náutico conhecido, que contém as regras para o cálculo da latitude geográfica para uso dos navegadores portugueses, derramou uma viva luz sobre o problema da origem e dos progressos da ciência náutica das descobertas e, graças a este feliz achado, conhecemos hoje como nasceu, e sobretudo como evoluiu e progrediu, toda a ciência náutica, desde a segunda metade do século XV.
Este é o primeiro resultado desses estudos, levados a bom termo após investigações persistentes, realizadas entre grandes dificuldades, porque os documentos encontrados e agora ao alcance de pesquisadores em edições fac-símile, estavam então esquecidos e quase ignorados no segredo das bibliotecas.
Estes documentos permitem-nos provar que os navegadores portugueses da época dos descobrimentos foram os verdadeiros criadores da ciência náutica que usaram nas suas frequentes viagens e explorações, a partir do primeiro quarto do século XV, quando começaram as descobertas do Infante D. Henrique e ao longo do século XVI.

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Parágrafos iniciais de António Barbosa, "L'astronomie nautique au Portugal pendant les découvertes", Separata de : Revue d'histoire moderne, T. 14 (nouv. ser. t. 8) n.º 39 (Aout-Sept, 1939).
(Tradução de Porfírio Silva)



locais de peregrinação.



(Reportagem ao local de peregrinação por Porfírio Silva.)

11.11.12

Eu não vou manifestar-me contra a visita de Merkel.


Eu não vou manifestar-me contra a visita de Merkel. Porquê? Por concordar com as políticas que ela conduz como chefe de governo de um Estado-Membro da União Europeia? Decerto que não é por isso, porque discordo muitíssimo das suas políticas, julgo que elas rasgam de forma profunda a ideia de interesse comum europeu e são uma má resposta à solidariedade que a Europa deu anteriormente à Alemanha. Então, porque, mesmo assim, não vou manifestar-me contra a sua visita?

Primeiro, porque só sou contra a vinda a Portugal de ditadores (e, mesmo assim, depende: há circunstâncias em que isso se justifica diplomaticamente). Merkel é a líder democraticamente eleita de um país amigo.

Segundo, porque estou farto dos disparates de comparação desta Alemanha com o nazismo e parafernália associada e prevejo que nas manifestações contra a visita haja muito material desse – e não quero estar de modo nenhum associado a ajuntamentos onde esses crimes contra a memória se repitam.

Terceiro, porque o problema não é "a Merkel": a chancelerina alemã dá voz à esmagadora maioria do seu povo – que pode estar errado, mas é assim que as coisas funcionam em democracia. Há quem brame muito para que os representantes dos portugueses não vão além da nossa vontade expressa no concerto europeu, ao mesmo tempo esquecendo que os alemães também são gente e têm as suas próprias opiniões acerca do que o seu governo deve fazer na Europa. E não vamos convencer os alemães das nossas razões hostilizando a sua chefe de governo de forma violenta.

Quarto, porque o problema nem sequer é especificamente a Alemanha. Se não fosse a Alemanha, uma série de outros Estados-Membros da EU, mais a norte e mais a leste, já teriam bloqueado tudo o que, mesmo assim, se tem feito. Os eleitorados desses países, se não fosse a imagem de firmeza que Merkel tem transmitido, fazendo dela uma ponte negocial entre interesses em confronto na Europa, há muito teriam desligado dos nossos problemas e teriam batido com a porta na nossa cara.

Quinto, porque pintar a Alemanha como a "grande egoísta" na Europa é uma visão parcial das coisas. Desde logo, (parte "mesquinha" do argumento) a Alemanha é uma das fontes principais do financiamento da União - e de países como Portugal que desse financiamento beneficiam muito; e, também, porque (argumento mais ao largo) a Alemanha tem décadas como um dos parceiros mais responsáveis no seio da Europa. Devemos vender-nos por fundos comunitários? Não, não devemos vender-nos; mas também não faz muito sentido continuar a querer o apoio dos outros e estar sempre a fazer de conta que prescindimos deles lindamente. A Alemanha também ganha com a Europa? Claro que ganha, mas é de interesses mútuos que se trata, não de beneficência.

Sexto, porque o que Portugal precisa não é de se isolar da Alemanha: o que Portugal precisa é de negociar com toda a gente, incluindo a Alemanha. E negociar não é berrar: é ter posições e defendê-las. Se temos um governo que prescindiu de defender Portugal na Europa, não estou certo que isso seja culpa de Merkel, acho que é mais culpa da agenda ideológica de Passos Coelho e do seu ajudante Gaspar. Aplaudiria que várias forças da sociedade civil, e mesmo forças políticas, tivessem solicitado encontros com Merkel para discutir com ela o que a crise exige. Não na qualidade de um César de saias, mas como chefe de governo de um país amigo dentro de uma comunidade de Estados e de povos.

Sétimo, porque cada vez tenho mais vontade de me manifestar, mas cada vez tenho menos condições para o fazer. A rua está cada vez mais tomada pelas correntes anti-europeístas, herdeiras (envergonhadas ou assumidas) do nacionalismo comunista ou do nacionalismo de direita; a rua está cada vez mais radicalizada contra as forças (nomeadamente socialistas) que são mais ciosas do compromisso europeu e percebem que sem mais Europa (outra Europa) isto não vai lá. Para já não falar da crescente ameaça de violência que paira sobre essas manifestações, servindo talvez os interesses eleitorais de alguns (que pensam que só com um cenário grego podem dobrar o PS, por exemplo), mas decerto não servindo a capacidade de construir um largo bloco político-social de alternativa a este entreguismo do governo. O radicalismo da rua cada vez mais se encaixa no radicalismo do passo-gasparismo – e isso a mim não me serve como ecossistema.

Por último, e em resumo, eu até poderia manifestar-me contra a política de Merkel, porque sou contra essa política. Não posso é manifestar-me contra a visita de Merkel, pela razões que acima procurei expor, e quem sair à rua vai fazê-lo com esse propósito que eu não partilho. Não haveriam, pois, de querer a minha companhia.


10.11.12

lá fora, o dia do cão negro espreita.




Não sou contra o protesto da cidadania. Também por estes dias tudo em mim protesta contra a (des)ordem do mundo, cada vez menos acolhedor. Contudo, creio que, se todas as forças políticas do país se tornarem apenas forças de protesto, estaremos acabados como comunidade política viável. Quer dizer: tornar-se-á muito difícil vivermos juntos e vivermos bem neste jardim à beira do mar plantado.

Nestes tempos infaustos, o grito tornou-se a única palavra ouvida. Grita-se contra os ministros, contra os deputados, contra o presidente, contra a Merkel, contra o protectorado. Tornou-se popular dizer que se cerca o parlamento, que se invade o parlamento, que se parte a tralha toda. Publicam-se listas de nomes e de fotografias de deputados que votaram o orçamento do Estado, porque o orçamento, dizem, é assassino, e será cúmplice todo aquele que o vote. Querem julgá-los no tribunal, como criminosos, e invocam o exemplo da Islândia, ignorando que na Islândia, em substância, nenhum político foi condenado pela crise, apesar dos julgamentos. E parecem ignorar que quem realmente ganha com a crise não são os políticos. Fazem-se esperas aos ministros, perseguem-se deputados da maioria na rua aos gritos de ladrão, ladrão, fazem-se manifestações contra Barroso quando ele vai - como pessoa privada - a um teatro e há quem bata palmas e augure que daqui a pouco "nenhum deles sairá à rua". Como arma de luta política, abandona-se o terreno do debate político para criminalizar a divergência. Poucos dos que assim procedem têm a real noção de como começaram os fascismos. Quero dizer: alguns saberão e andam nisto por saberem que isto é o alimento das ditaduras, mas a maioria anda nisto sem sequer ter consciência disso. É que a "justiça" às mãos da rua, a intimidação como método, a criminalização das divergências políticas, podem não ficar sempre pelos alvos de hoje - e os alvos de amanhã podem vir a ser determinados pela habilidade dos incitadores e não pela pureza virginal dos protestantes. E os que realmente enchem os bolsos com a crise nunca são cercados, nem invadidos, muito menos travados, sequer inibidos.

Todos os que assim gritam assumem-se como sumamente patriotas, competentes, esforçados e honestos. Partem do princípio de que qualquer político é um calaceiro, um incompetente, um vende-pátrias. Só não se percebe em que se fundamentam para partirem desse princípio, quando é público e sabido que, se há deputados que nunca fizeram nada na vida a não ser deputar, muitos deputados e outros políticos já tinham uma vida profissional e cívica antes e para além da política e alguns chegaram mesmo ao topo das suas carreiras profissionais antes de serem políticos - e esses são, pelo menos nisso, escrutináveis, o que os distingue de muitos que os criticam no remanso do anonimato, da multidão, da caixa de comentários. A crítica generalizada aos "políticos" é um substituto aguado da verdadeira discussão política, ocupa o lugar mas não o papel do confronto de programas, substitui o debate pelo anátema. E o anátema nunca discute razões, porque toma a razão como sua prisioneira e serva, para a manietar. A crítica indiferenciada aos políticos é, no plano individual, simples arrogância de quem se julga acima dos outros sem ter para isso créditos firmados. E é, no plano do país, o desprezo pela democracia concreta: jurar a pés juntos que se é democrata e, ao mesmo tempo, tudo fazer para desmantelar a máquina da democracia - a democracia que existe, não a ideal numa ilha perfeita em lugar nenhum -, é colaboracionismo com os que gostariam de uma "democracia" musculada ou tutelada - na qual, aliás, estes protestos não mais seriam possíveis. Os políticos não são todos iguais, podem ser avaliados pelo que fizeram e fazem, mas quem critica a eito não tem tempo para esse escrutínio, porque faz da sua voz pública um mero exercício de azia. E a azia nunca foi boa conselheira.

Eu também detesto o rumo que este país está a levar, detesto a estupidez desta Europa corrente, detesto as injustiças deste mundo. Mas já pensava isso antes de sermos todos vítimas do processo. É por isso que, francamente, não me sinto obrigado a ter muito respeito por quem só se lembrou dos males do mundo quando perdeu uma fatia do ordenado, quando começou a pagar mais impostos. Por quem só se apercebeu quando foi tocado pessoalmente, se calhar tendo antes andado a bramir contra o rendimento mínimo, contra "os subsídios" (se calhar, até contra o salário mínimo). Por quem, se calhar, reclamou a candura da "livre iniciativa" sem freio. Não me sinto obrigado a ter muito respeito por quem, depois do que está à vista, ainda está contra os sindicatos (não me refiro à discordância das orientações concretas, discordância que é legítima; refiro-me ao ataque sistemático à sua acção em geral). Não me sinto obrigado a ter muito respeito por quem diz querer um sistema político melhor e no entanto também diz que nunca vota: como se os sistemas políticos caíssem do céu como as águas da chuva. Por isto, o grito, em si mesmo, não me mobiliza - muito menos me convence necessariamente. Nem sequer me obriga sempre ao simples respeito.

Posso perceber que se grite: eu também grito e protesto. Julgo é que se pode perguntar aos manifestantes: e para além disso, não há nada a fazer? Todos sabem como resolver a crise em três horas e um quarto. Duvido é que, na sua maioria, estejam dispostos a fazer mais qualquer coisa de concreto na vida política. Uma sugestão: os que se queixam tanto do monopólio dos partidos, que se reclamam excluídos da participação política pelas leis eleitorais, têm proximamente uma boa oportunidade: apresentem listas de cidadãos às próximas eleições autárquicas. É um ponto para começar a trabalhar perto das pessoas, onde as pessoas conhecem melhor os políticos e estão dispostas a avaliá-los pelo seu trabalho concreto, onde se pode mostrar a genica e o saber que sugerimos ao mundo quando protestamos e sugerimos servir melhor a polis.

O sopro anti-políticos, que por estes dias sopra forte, mesmo violentamente, é um sopro anti-democrático, assanhado por ideias simplistas acerca de um mundo complicado. Os deuses do Olimpo nos salvem de algum dia sermos governados por esta fúria. Precisamos de melhor política, porque o mundo está difícil. Mas o mundo nunca deixou de estar difícil para a quinta parte dos portugueses que vivem abaixo do limiar da pobreza, mas muitos nunca se preocuparam com isso e olharam para eles com desdém. E o mundo nunca deixou de estar difícil para milhões de pessoas por esse mundo fora que sobrevivem com quase nada durante todo o seu calvário do nascer até à morte. Precisamos de melhor política, porque o mundo está difícil, mas o "grito" de radicalismo, ideias feitas, violência verbal, justicialismo, por vezes com muita mentira e ignorância à mistura, esse "grito" que campeia neste país por estes dias, é política da pior, é o pão dos ditadores, é a negação da palavra argumentada e reflexiva de que precisamos hoje.

Lá fora, o dia do cão negro espreita. Mas não abriremos um caminho entre os perigos apenas gritando. Porque o breu não se assusta com gritos.



(A foto lá em cima foi encontrada no facebook de Inês Meneses, mas não consegui determinar a fonte.)

9.11.12

crescer atrás da cortina de ferro, de Peter Sís.


Sendo hoje 9 de Novembro, e por estas razões, justifica-se comemorar com Banda Desenhada.

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O álbum que hoje nos faz falar é de Peter Sís, que escreve e desenha The Wall, Growing Up Behind the Iron Curtain, no título do original norte-americano de 2007, publicado pela Frances Foster Books. A edição que possuo é italiana, de Setembro de 2008, na editora Rizzoli.




Peter Sís cresceu na Checoslováquia comunista e apresenta-nos mais uma obra da vaga de obras de BD que pensam e divulgam a história contemporânea recente a partir dos olhos de uma criança. Em 1982, Peter Sís foi a Los Angeles para trabalhar num filme para o governo checo e, uma vez lá, optou pelo exílio - como muitos outros foram fazendo ao longo da história.




A história que nos conta, apesar de tentar partir do olhar de uma criança, é densa - e o autor faz alguma coisa para nos levar para mão, fornecendo vários elementos de contexto. Não é, contudo, história que um adolescente desprevenido possa compreender cabalmente como quem lê "histórias aos quadradinhos" ...




Graficamente, o que temos como elemento básico são desenhos a preto e branco, sugerindo uma atmosfera cinzenta - política, cultural e socialmente cinzenta. Muitos dos desenhos têm pormenores a uma única cor, o vermelho - funcionando o vermelho quase sempre como marca do poder comunista, por exemplo nas bandeiras, nos símbolos (foice e martelo, estrela), no lenço ao pescoço da "farda" dos pioneiros. Dado este ponto de partida, os poucos elementos fortemente coloridos são marcas de ruptura, normalmente festiva ou pelo menos "agitada", de momentos em que a contestação às normas imperantes é vivida como um gozo suplementar da vida. A cor é o outro lado da vida (do muro): "tudo o que vem do Ocidente parece colorido". A cor é também o que distingue os desenhos que Sís faz desde miúdo.




As duas páginas inteiras que reproduzimos de seguida, constituindo uma única imagem, aparecem na narração da Primavera de Praga. A Primavera de Praga foi, em 1968, uma tentativa do partido comunista local para seguir uma via democrática para o socialismo, afastando-se da ortodoxia soviética. Esta imagem, com esse colorido pop, e por contraste com o preto e branco com pormenores de vermelho do grafismo dominante, dá uma conotação fortemente festiva a essa possibilidade de liberdade, possibilidade que foi frustrada pela invasão dos tanques do Pacto de Varsóvia, o bloco militar do leste comunista da Europa liderado pela União Soviética.




A representação dessa invasão segue o plano gráfico dominante: preto e branco com o vermelho do poder a salpicar: neste caso os elementos vermelhos são os tanques invasores espalhados pela cidade como um vírus que toma conta de um corpo.




Esta obra de BD não é de leitura imediata para quem esteja demasiado alheado do contexto da época e de algumas referências históricas. Vemos abaixo a referência a um concerto dos Beach Boys, de uma pequena tournée que fizeram por aquelas bandas alguns meses depois da invasão antidemocrática, a qual teve o condão de ainda dar um pequeno sopro à esperança de que talvez não se tivessem fechado todas as portas.




Nos desenhos que se seguem, que são parte de uma sequência um pouco maior, há uma luta entre o preto e branco do grafismo dominante, representando o cinzentismo do regime, e a cor como representante da expressão que alguns tentaram que fosse livre. Os grafitos que os anónimos tentam pintar nas paredes são coloridos e as peripécias do confronto com a polícia - entre pintar e apagar, e voltar a pintar - são um ir e vir entre a sobrevivência e a extinção da cor.








A queda do Muro de Berlim, datada de 9 de Novembro de 1989, é o fim desta história. Uma história que, neste álbum, passa pela insurreição popular na Hungria em 1956, esmagada pelos "aliados" soviéticos; pela construção do próprio Muro em 1961; pela crise dos mísseis em Cuba em 1962; pela visita do Presidente Kennedy dos EUA a Berlim em Junho de 1963 e pelo assassinato desse mesmo presidente em Dallas mais tarde nesse mesmo ano; pelo papel de Alexander Dubcek, líder do partido comunista checoslovaco em 1968 e verdadeiro herói da Primavera de Praga, quando "tudo parecia possível"; depois do fim, ou depois do princípio do fim, pelos estudantes checos Jan Palach e Jan Zajic que se imolaram pelo fogo no centro de Praga "para despertar a nação da letargia"; pela Carta 77, o grupo dissidente formado em 1977 e que contaria com alguns dos heróis da futura revolução democrática. A queda do Muro de Berlim é o fim desta longa e amarga história, um fim que não é só uma data, mas um conjunto de datas para várias revoluções no leste europeu, assinaladas junto a estes desenhos (mas aqui não visíveis). É um fim apropriado para uma narrativa que não é só uma história da Checoslováquia recente - mas uma história de uma parte importante da Europa e das suas vicissitudes num período de cerca de meio século.

É um pouco pena que a narrativa seja, do ponto de vista ideológico, um pouco unilateral - como se todas as desgraças do mundo tivessem a cor vermelha. Por exemplo, logo no início dá-se como definição de "comunismo": um sistema de governo em que o Estado controla toda a actividade social e económica. Mas o regime fascista nazi também era isso, pelo que a definição não faz o trabalho de uma definição. Além disso esquece-se que a história do leste europeu é também a história das derrotas que sofreram certos sectores dos partidos comunistas que tentaram a via democrática. A "insurreição popular" na Hungria de 1956 tinha a cumplicidade da liderança comunista, que foi afastada por pressão e acção soviética. E o mesmo aconteceu na própria Checoslováquia com a Primavera de Praga. E, se é para fazer história, mesmo aos quadradinhos, talvez fosse bem não ver só certas coisas e esquecer sempre outras. Por outro lado, certas coisas que se denunciam como se fossem exclusivas das ditaduras comunistas - não o são. Ser obrigatório fazer parte da organização de juventude do regime, nós por cá também sabemos o que isso é (foi). O mesmo para as actividades da polícia política, da censura. Certas coisas até existem ou existiram em países democráticos, como a obrigatoriedade de hastear a bandeira nas festas oficiais (eu já vivi num país onde isso era assim e ninguém considerava repressivo).
Mas será justo fazer este tipo de críticas a uma obra de BD? Porque não, pergunto eu. A BD é coisa séria. Às vezes, como neste caso, está a apresentar uma visão da história recente, de uma história que ainda interessa muito à compreensão do presente. E, nesse caso, o rigor que se pode exigir é o que se exige a qualquer obra séria.




Como o autor escreve no posfácio: alguns terão dificuldade em compreender que as coisas eram mesmo assim. Estamos a falar de história recente, mesmo muito recente, e muito próxima geograficamente. É também por isso que livros destes são um serviço prestado à memória cívica. Mas parece que não têm muito público em Portugal... Ou há por aí edições que eu desconheça (o que não seria de estranhar, porque sou um mero leigo curioso)?

(Republicação)


Memórias. Berlim, 1989, um dia como este, um muro como qualquer outro.




Na noite de 9 de Novembro há 23 anos, o governo da então chamada República Democrática Alemã anuncia de forma desastrada (por não corresponder exactamente ao que queriam fazer, que era uma liberalização cautelosa das saídas para o estrangeiro), anuncia, dizíamos, que os cidadãos desse país poderiam atravessar as respectivas fronteiras (de dentro para fora...) livremente. Em consequência, logo nessa noite, cerca de vinte mil alemães de leste atravessaram o posto fronteiriço de Berlim Leste para Berlim Oeste. No dia 11, as máquinas começaram a abrir mais passagens através do muro da vergonha, já que os postos normais não davam vazão à enchente dos que queriam experimentar o sabor dessa nova liberdade. Logo foram anunciadas conversações para a abertura da simbólica Porta de Brandemburgo, que só viria a tornar-se uma ampla passagem entre dois mundos em Dezembro desse ano. No fim de semana seguinte à abertura, cerca de dois milhões de alemães orientais visitaram Berlim Ocidental.
Tive a sorte de estar nessa Berlim esfuziante por esses dias. Tinha ido à conferência "Security in Europe: Challenges of the 1990's", organizada pelo Politischer Club Berlin e pela Amerika Haus Berlin,  que decorreu entre 15 e 17 desse mês, tendo ficado mais uns dois ou três dias. A conferência acabou na tarde de sexta-feira (17) e, desde aí até ao regresso no domingo, deambulei como uma esponja pela cidade que era nessa altura o centro do mundo. Havia, além do povo que estava a fazer a sua história, uma multidão de jornalistas por todo o lado, especialmente postados em frente à Porta de Brandemburgo, por haver então a expectativa de esse local histórico ser aberto imediatamente.
Descobri há algum tempo duas folhinhas que escrevi na altura, "do lado de lá", no meio da agitação. Estão a ficar roídas pelo tempo. Antes que desapareçam, transcrevo-as para este arquivo-pessoal-público.

Folha 1. "Aqui é a Marx-Engels Platz, em Berlim Leste. Hoje são 17 de Novembro de 1989. O Muro já tem aberturas mas ainda falta muita coisa. Aqui está a ocorrer uma manifestação (ou concentração) de estudantes (pelo menos parecem, pela sua juventude, apesar de também haver gente mais velha). Vim para aqui directamente da estação de metropolitano, onde comprei o meu visto e troquei os obrigatórios 25 DM por 25 marcos da DDR. Do lado de lá vale, não 1 para 1, mas 1 para 10 ou ainda mais. Há o pequeno pormenor de que tenho a máquina fotográfica da Guida ao ombro, mas não consigo tirar nenhuma fotografia. Até o azar pode ser histórico... Outro pormenor é que está um frio danado, que entra por todo o lado apesar de estar com dois pares de meias calçados, camisa, camisola de gola alta, casaco de inverno e gabardina. São aqui 15.50H."
Folha 2. "No mapa, tenho aqui uma indicação sobre a Igreja de S. Nicolau, no centro histórico de Berlim. Fui para entrar, vi que se pagavam entradas e que havia um museu. Como não estou com grande tempo para museus, fui perguntar se também se pagava para ver a igreja. Resposta: «Isto não é uma igreja. Isto é um museu.» Entendi: estamos, realmente, no Leste. São 16H 13M."

Memórias das minhas ingenuidades, pois. Como se vê, ainda havia muita coisa por mudar. Eu não falava uma palavrinha de alemão, mas recolhi um comunicado da SPARTAKIST - Herausgegeben von der Trotzkistischen Liga Deutschlands, com o título "Für eine leninistisch-trotzkistische Arbeitpartei!". E em baixo de página: "Für den Kommunismus von Lenin, Luxemburg und Liebknecht!". Ainda tenho uns jornais, uns autocolantes, uns "alfinetes de peito", desses dias. E, claro, umas pedrinhas pequeninas que eu próprio rapei do muro, à unha, enquanto outros já andavam em cima dele com picaretas.

O mundo, realmente, mudou muito. Nem tudo correu bem, como se sabe. Só que ninguém, sabendo do que fala, pode desprezar o valor da liberdade - haja o que houver, com todos os defeitos que as democracias possam ter. Isso sentiu-se naqueles dias (e ainda se sente) em Berlim. Claro, ainda há quem, por cegueira ideológica, ache que tudo não passou de uma operação das forças reaccionárias conspirando por todo o mundo. Por hoje, a esses nada a dizer.

(Republicação)


Um fã de popós.


O ex-deputado e ex-secretário de Estado Vasco Correia Guedes, mais conhecido por Vasco Pulido Valente (não gostava do nome, mudou-o – e isso é importante em gente que vive do nome), cuja acção na governança não deixou para a memória dos feitos da nação sequer um pum, mas julga sempre com muita sanha a falta de grandeza dos demais políticos, dedica as horas vagas (mas, decerto, não gratuitas) a destilar ódios na forma de arrogância, não poucas vezes tintada de ignorância, caindo o fruto desse labor, por vezes, nas páginas do Público.

Saiu hoje mais uma rifa dessas. O mote é um problema qualquer de azia que ele tem contra os que ficaram contentes com a vitória de Obama. Para Vasco Correia Guedes, - o homem que, quando deputado, se deu ao trabalho de ocupar a Câmara com o pedido para ser nomeado como Pulido Valente - essa maltosa que gosta de Obama é “a populaça”. A populaça deve ser a massa de gente que nunca teve tempo para se dedicar a mudar de nome. Ou, simplesmente, talvez a populaça seja quem, de momento, não aplauda vibrantemente as suas opiniões. “De momento”, escrevi, porque, por auto-pluralismo, o Vasco-qualquer-coisa pode ter uma opinião hoje e, sobre o mesmo assunto, ter outra assaz diferente em próximo artigo. Sempre brilhante, claro. Quem não siga a manobra, um iletrado.

Mas, afinal, qual é o problema com Obama, na óptica de VCG/VPV ? Basicamente, ele foi eleito por uma coligação social de não-brancos. O tipo é preto, caraças !

(E aqui VCG/VPV faz alarde da sua ignorância, invocando o conceito de raça como cimento da coligação. “A raça (é bom chamar os bois pelos nomes) determinou…” – escreve ele. Mas não há distintas raças dentro da humanidade; só há uma raça. É uma questão de biologia, mas isso não interessa nada ao escriba: a ciência deste mundo e do outro é feita por ele, ele sabe tudo, todos os demais são ignorantes, quem não lê pelo manual dele não é cientista nem nada ponto final.)

E é isso: Obama é preto e os brancos, maioritariamente, não estão com ele. Quem está com ele são os africanos, os latinos e os asiáticos. E os Republicanos (que, pelos vistos, são o partido dos brancos) vão, com a maioria na Câmara dos Representantes, continuar a boicotar a sua acção. E, segundo ele, a esquerda, pelo menos a esquerda que gosta de Obama (ou que, no mínimo, preferia Obama ao outro senhor), não percebe nada de nada: “a nossa esquerda nunca na vida olhou a sério para a realidade do mundo”. Isto quer dizer o quê? A grande divisão “racial” seria a mesma se Obama tivesse perdido estas eleições. Mas a chatice é que ganhou o preto em vez de ganhar o branco. Os Republicanos, com a sua acção partidária, vão tentar travar Obama. A crítica devia ir para o partidarismo exacerbado dos Republicanos? Não, Obama é que devia ter perdido para facilitar a vida aos Republicanos. Tem tudo imensa lógica, claro. Tem a lógica de VCG/VPV, um tipo amargo porque o mundo não se limita a pensar pela cabeça do articulista, logo ele que é tão brilhante que consegue defender uma tese e a respectiva antítese com a mesma maestria e o mesmo auto-convencimento.

Que lhe paguem para isto não é desculpa: este tipo é mesmo um fã de popós, essa é que é essa.


é pecado criticar Isabel Jonet?


O que acho, explicado com mais vagar, das teses de Isabel Jonet sobre o empobrecimento, já o escrevi anteriormente, antes das últimas declarações. Nada disso me leva a assinar petições contra a senhora, nem a chamar-lhe nomes, nem a fazer suposições que, a menos que sejam provadas, são puras tolices. (Apesar de alguns dos que se escandalizam contra esses métodos, quando aplicados a Jonet, não se importarem nada quando eles são aplicados a outros alvos.) Entretanto, está em marcha a operação "escudo invisível": não se pode criticar Isabel Jonet "porque ela tem obra feita". Exemplar dessa linha de raciocínio é este texto de Henrique Monteiro, Isabel Jonet, as palavras e os atos, no sítio do Expresso.

O núcleo do que julgo errado no artigo de Henrique Monteiro (e nos que seguem a mesma linha) está nesta frase: "A obra de Isabel Jonet fala por si."

O que as pessoas fazem (bem ou mal) é um elemento de juízo acerca delas, da realidade, do mundo. Claro, não é indiferente o que as pessoas fazem. Contudo, a opinião é outra coisa. Vejamos. Se Estaline desse aos pobres o que o Banco Alimentar dá, Estaline não passava a ser boa pessoa por causa disso, nem as suas ideias passavam a ser maravilhosas por causa disso. (Podem colocar Pinochet onde está Estaline, se preferirem.) Discordo de muitas formas que tem assumido a contestação às palavras de Jonet, mas discordo igualmente da tentativa de bloquear a crítica à ideologia de Jonet por causa da sua "obra". (Sim, "aquilo" é ideologia, nem sequer é "doutrina social da Igreja", como alguns querem fazer crer.)

Seria preciso sermos muito cínicos para aceitarmos que quem quer que seja está acima da crítica por causa de ter feito coisas úteis, boas ou necessárias.