28.9.12

cuidado, esta aritmética não é uma simples palhaçada.


Boas notícias são boas notícias; Lê-se no Público: "Os professores do ensino superior vão ficar a salvo dos congelamentos decretados para a função pública e, no próximo ano, a progressão na carreira destes docentes voltará a ser acompanhada dos respectivos aumentos salariais."

Quer dizer: são boas notícias para um certo grupo profissional. Um grupo profissional certamente merecedor - mas não serão os demais grupos profissionais também merecedores? Parece que entrámos numa lógica (melhor: numa falta de lógica) em que o governo corta, corta em alguns e não em todos, iniciando depois uma lotaria de excepções pela qual alguns são brindados, como dádiva, com o prémio de escaparem à facada geral. Pode dizer-se que se trata da velha táctica de dividir para reinar: espera-se que os beneficiados sejam o alvo da raiva dos demais, criando assim uma diversão que momentaneamente faz esquecer o autor da marosca. Julgo, contudo, que se trata de algo mais sério. Os defensores da "pura liberdade contratual" gostariam que o "patrão" não estivesse limitado no seu arbítrio de pagar mais ou menos a qualquer trabalhador, sem tabelas salariais por categorias, sem respeitar contratos colectivos. Poder pagar mais ao José porque ele se dobra com maior diligência e pagar menos à Maria porque ela é arisca, independentemente das tabelas para o sector, é o sonho de qualquer desses pequenos ditadores de bolso que uso tratar por patrões (em vez de empresários). O arbítrio é o mecanismo central do poder pelo poder, do poder desligado da legitimidade, sendo que esse mecanismo é o inferno concreto de muitos trabalhadores neste país (e por esse mundo fora). O que o governo está a fazer, com esta política dos cortes e das excepções, é levar o princípio dessa arbitrariedade para dentro da ilha que se julgava mais protegida dessa praga: os servidores do Estado. A partir de agora (essa é a mensagem), embora havendo regras sobre o que se paga a quem, a aplicação dessas regras depende do "patrão" do momento (o governo). De momento, essa prática só discrimina por grupos, não individualmente, mas se esta moda se consolidar, logo veremos os passos seguintes.

Como se isto não fosse ainda suficientemente mau, o ministro Crato apresenta uma esplendorosa justificação para o "benefício": a legalidade. De novo segundo o Público: "O Ministério da Educação e Ciência (MEC) garantiu na quinta-feira que os professores do ensino superior não terão qualquer regime de excepção no próximo ano e que a valorização remuneratória associada à progressão na carreira decorre de obrigações legais."
Mas como poderia não decorrer de obrigações legais? O ministro não pode decidir pagar isto ou aquilo sem imposição legal! Ah, mas pode o governo cortar contra a lei! Aliás, todos os cortes resultam de derrogações a obrigações legais. Os cortes, de uma forma ou de outra, consistem em virar de pernas para o ar anteriores obrigações legais. Pode discutir-se se isso se justifica, pode até defender-se que se justifica sim senhor: o que não pode um ministro é vir explicar mais uma excepção (que faça bom proveito a quem dela aproveita) com as obrigações legais, porque tudo o que pagam aos funcionários públicos decorre de obrigações legais - com a diferença que está muito na moda ultimamente mandar as obrigações legais às malvas e trocá-las por outras que façam as vezes das "gorduras" que era tão fácil cortar antes de estes senhores chegarem ao governo.



25.9.12

política em rede | Europa e Portugal


Não andamos nesta coisa de editar um blogue para publicar comunicados de imprensa, mas desta vez é isso mesmo que vou fazer. Dá a notícia que quero dar, diz o que importa e se eu fizesse rodriguinhos só acrescentaria palha. Aí vai, então.

***

A deputada Edite Estrela vai juntar esta quinta-feira, dia 27 de setembro, dezenas de personalidades públicas portuguesas e europeias no Parlamento Europeu, em Bruxelas, para um debate via twitter sobre a Europa e Portugal. Esta iniciativa inovadora e inédita no Parlamento Europeu, conta com a participação do líder dos Socialistas Europeus, Hannes Swoboda, do líder da bancada socialista na Assembleia da República, Carlos Zorrinho, de jornalistas, intelectuais, membros do Parlamento Europeu, e outros convidados da deputada.

Edite Estrela tem sublinhado o papel crescente que as redes sociais desempenham no fomento da cidadania e da participação política nas sociedades contemporâneas. Com esta iniciativa que terá lugar numa sala equipada para o efeito, no Parlamento Europeu, Edite Estrela reafirma a importância que atribui ao papel das redes sociais na atividade política e cívica bem como o seu compromisso em estimular a utilização das tecnologias de comunicação e informação como espaços públicos e abertos de debate democrático, divulgação de informação e troca de ideias e opiniões.

Edite Estrela tem-se destacado no Parlamento Europeu pela sua consistente e ativa presença nas redes sociais. Num estudo publicado em Portugal, em Abril, sobre utilizadores das redes sociais, a deputada foi considerada uma das personalidades portuguesas mais influentes no twitter. Segundo a eurodeputada socialista, "o funcionamento em rede é uma vantagem dos nossos tempos e as redes sociais desempenham um papel cada vez mais importante na vida política. Não só porque permitem chegar a um público mais jovem e menos politizado, mas também porque são fonte de informação para os media tradicionais". E recorda, a propósito, o papel das redes sociais na Primavera árabe e na mobilização dos "indignados" e outros manifestantes em muitas cidades europeias e em Portugal. "Sem as redes sociais seria quase impossível reunir centenas de milhares de pessoas numa manifestação espontânea como a do passado dia 15".

(Comunicado de imprensa da deputada europeeia Edite Estrela, Delegação Portuguesa do Grupo dos Socialistas & Democratas no Parlamento Europeu)

***

No meio de tanta gente ilustre, lá estarei também, a ver se aprendo alguma coisa sobre estas novas formas de se fazer política com pessoas dentro.


alteração das condições meteorológicas.


Os acontecimentos dos últimos dias provocaram uma importante modificação das percepções básicas das pessoas comuns acerca da natureza da política governamental.

Penso que até há pouco tempo a maioria das pessoas acreditavam que o governo estava a fazer uma política que, embora causadora de grandes estragos na vida de muita gente, estava de certo modo sobre-determinada pela pressão da troika, se destinava a equilibrar as contas públicas, transmitir aos credores a sensação de sermos um país esforçado e empenhado em respeitar os compromissos, sendo que tudo isso deveria permitir a prazo voltarmos a poder financiar a República nos mercados. Julgo que mesmo muitos dos que estavam convencidos que, por razões internas ou externas, esta política não daria os resultados pretendidos, ainda assim creditavam ao governo aqueles objectivos e lhes reconheciam validade. O caminho era duvidoso mas valeria a pena deixar o governo tentar.

Sinto que essa percepção desabou nos últimos dias. Não se trata "apenas" de o governo ter anunciado uma medida (a modificação da TSU) vista como brutalmente injusta, tirando do trabalho para dar ao capital. Isso já foi sobejamente comentado. Trata-se, em acréscimo, de estar agora generalizada a percepção de que o governo tomou essas decisões com extrema ligeireza, sem fundamento sério e sem boa compreensão técnica das possibilidades de acção alternativa.
Se o governo pôde tão rapidamente prescindir do aumento de 7% na contribuição dos trabalhadores para o financiamento do sistema social, sendo tantas as vozes nesse sentido, isso não quererá dizer que pensou pouco antes de ameaçar com essa medida? Se um leque tão vasto de organizações, não apenas do lado dos trabalhadores, mas também do lado dos patrões, apresentam alternativas e o governo diz que as vai estudar - não quererá isso dizer que afinal havia mesmo outras vias e o governo não as tinha considerado com suficiente atenção? Se, pelos vistos, o próprio governo também apresentou ideias aos parceiros sociais acerca de como recolher as receitas necessárias por outras vias - por que não pensou nisso antes? Se, afinal, cobrando mais aos trabalhadores e menos aos patrões, não se ia poupar assim tanto, não será que se estava a programar uma "punção" escusada? Se a Troika agora vem dizer que não conhece nenhum estudo do governo que fundamentasse aquela mexida na TSU, não será que o governo anda demasiado ligeiro a saltar-nos em cima, já não curando sequer de estudar bem as suas medidas antes de nos ir ao bolso?

A meu ver está aqui uma mudança importante de atitude: as pessoas passaram a desconfiar do governo, incluindo o primeiro-ministro e o ministro das finanças, não apenas em termos de conteúdo das políticas, mas também em termos de seriedade: afinal, andavam a fazer de conta que estudavam tudo muito bem estudadinho e só pediam os sacrifícios indispensáveis, mas na realidade tomam decisões tão graves com grande ligeireza. Uma certa resignação, mesmo entre os que discordavam politicamente, pode ter dado lugar a uma desconfiança fundamental: a suspeita de que andavam a brincar com as nossas vidas como quem joga com números em papéis.

Não estou sequer a dizer que as coisas do lado do governo sejam exactamente assim. Estou a dizer que me parece cheirar uma alteração das condições meteorológicas: o tempo está para desconfiar da seriedade que esta gente coloca na função de nos governar em tempos tão difíceis.



24.9.12

Bruxelas - Amadora, voo directo.


No dia 27 de Setembro, próxima quinta-feira, pelas 18:30h, estarei em Bruxelas para participar na apresentação do meu último livro: Podemos matar um sinal de trânsito? Um divertimento político-filosófico acerca da profundidade do quotidiano.

Será na Livraria Orfeu e a apresentação estará a cargo de Edite Estrela, autora de várias obras de cultura e língua portuguesa e eurodeputada.

No próximo domingo, dia 30, estarei na Feira do Livro da Amadora, para encontro com leitores e autógrafos. Será entre as 15 e as 17 horas, no pavilhão da livraria Palavras de Culto.


racionalidade e mercado. Ou Samsung e Apple.


Quase tudo na economia real desmente o pressuposto da racionalidade optimizadora dos agentes económicos. Sem querer agredir os inúmeros fãs da Apple, os fãs da Apple são, colectivamente, uma demonstração daquela afirmação ali na primeira frase. Por exemplo, os seguidores do iPhone têm aturado (é o termo) opções tecnológicas e erros de construção que nenhum consumidor sofisticado aturaria a mais nenhuma marca. Eles terão outras razões: é o facto de existirem sempre "outras razões" que faz com que a "racionalidade" real dos agentes económicos seja uma coisa muito mais confusa do que parece aos tipos que fazem contas com base na "racionalidade celestial".

A Samsung aposta, como estratégia publicitária, em mostrar que as "outras razões" dos fãs da Apple são falsas razões. Como exemplifica este vídeo.




Declaração de interesses: obviamente, a Samsung pagou-me uns milhões de dólares para colocar aqui este vídeo.

uma sugestão para as próximas manifestações.


Cantar e tocar o hino do PSD pelas ruas de Portugal...



22.9.12

Um governo infantilizado.


Passos Coelho foi ao Palácio de Belém para lhe explicarem, em substância, o seguinte: a TSU tem de ser atirada para o lixo, porque insultar as pessoas pode dar péssimo resultado; quando o governo tiver de fazer novas punções aos meios de vida dos portugueses, deve tratar primeiro de negociar com os parceiros sociais e outras forças que contam para definir condições mínimas de aplicação. Demoraram 8 horas nisto. Não sei o que demorou mais: ou os conselheiros a perceber por que PPC não tinha feito isso antes deste disparate, se PPC a perceber o que lhe estavam a dizer e a escrever no caderninho dos TPC o que lhe cabia da peça.

Como escrevi ontem, antes do encontro de Belém: «Se, pelo contrário, for o Presidente e o Conselho de Estado a conseguirem mudar o rumo da política anunciada, Passos Coelho terá sido a vítima de uma mudança de regime: o primeiro-ministro ficará reduzido, como em França, a um impedido do Presidente. O governo terá mudado de palácio e, nos próximos pacotes de medidas, o "povo" pedirá que o Conselho de Estado reúna de novo e volte a emendar a mão de PPC.»

Entretanto, o "efeito comunicacional" de tudo isto traduz-se em estarem, de novo, dominantes na rua e nas televisões as vozes que apregoam que tudo se resolve com a queda do governo, um governo de salvação nacional, novas eleições, mandar a troika embora, etc. etc. etc. Em suma: o "não pagamos" voltou a estar na moda. Voltaram as ilusões de que o dinheiro cai do céu; voltou o esquecimento do pequeno detalhe de que sem financiamento externo temos de fechar a loja.

O menino Pedro foi a casa dos avós levar um raspanete e apontar os trabalhos de casa. Infantilizado como chefe de governo, deitou fora a paciência dos que acreditam que Portugal não deve tornar-se um pária na cena internacional e deu folgo aos que são incapazes de pensar uma equação com mais do que uma variável.

um encontro com Manuel Cargaleiro.



No passado dia 11 de Setembro encontrámos Manuel Cargaleiro em Ravello.

Já tínhamos visto que estava bem presente na zona: em Amalfi deparámos com um grande painel seu, implantado em espaço público, com uma placa a explicar que o artista português tinha realizado aquela obra nas oficinas de cerâmica tradicional de Vietri sul Mare (ali perto, para o lado de Salerno).


Naquele dia, visitando a Villa Rufolo, em Ravello, observámos com pena que tinha lá estado uma exposição de Cargaleiro, mas que teria encerrado há poucos dias, a 8. Afinal, vendo bem, a exposição continuava acessível - e, surpresa nossa, o artista encontrava-se nesse espaço a trabalhar.



Mostrou-nos simpaticamente o trabalho que estava a terminar. Garantiu-nos, de pincel na mão, que tinha de o terminar até ao dia seguinte. E contou-nos a pequena marotice que estava a planear: num painel dedicado a famosos frequentadores de Ravello (painel encomendado) preparava-se para incluir Fernando Pessoa, apesar do literato nunca ter posto os pés em Ravello. Vamos ver se ainda um dia conseguimos ir verificar se se concretizou essa piada de artista.




21.9.12

o que é uma crise política para Cavaco?


Cavaco Silva considera “ultrapassada” hipótese de crise política.

Se para o actual PR a crise são os arrufos de Paulo Portas, talvez possa dizer que passou a tempestade num copo de água. Tudo graças ao "comité central da coligação": tal como na antiga União Soviética, em vez de serem os órgãos de Estado a deter verdadeiramente o poder, são comités, desenhados fora do Estado para acomodar a elite da elite partidária, que definem o rumo. Em vez de se tratar de que o governo funcione (reúna, discuta e decida o que compete decidir) e o parlamento legisle e controle, e nesse regular funcionamento das instituições a maioria se exerça e faça o seu trabalho, cria-se um monstrinho inter-partidário para tomar conta dos ministros e dos deputados. Um politburo à PPC.

Se era essa crise que mencionava, Cavaco tem razão: o arrufo de Portas terá passado. Embora à custa de uma incontornável vitória do CDS: se foi preciso fazer esta complicada manobra para melhorar a coordenação entre os parceiros de coligação, é porque essa coordenação antes estava mal. E, então, o CDS tinha razão. E levou a sua avante. Embora sem que isso tenha muito a ver com o que realmente preocupa o país.

De qualquer modo, mal vai o Presidente se pensa que a crise é essencialmente feita de pó da maquilhagem de Paulo Portas. A verdadeira crise política é o corte entre os cidadãos e os órgãos de soberania - e essa está para durar. Cavaco, ao convocar deste modo o Conselho de Estado, criou a expectativa de poder mudar o rumo. Se, da reunião de hoje, não obtiver mais do que magros resultados, não escapará também ele a essa crise. Se, pelo contrário, for o Presidente e o Conselho de Estado a conseguirem mudar o rumo da política anunciada, Passos Coelho terá sido a vítima de uma mudança de regime: o primeiro-ministro ficará reduzido, como em França, a um impedido do Presidente. O governo terá mudado de palácio e, nos próximos pacotes de medidas, o "povo" pedirá que o Conselho de Estado reúna de novo e volte a emendar a mão de PPC.

O anúncio da ultrapassagem do cenário de crise pode, pois, ser exagerado.


20.9.12

bodas de prata esta semana, bodas de ouro na próxima, de diamante na outra.


O governo português devia negociar melhor com a Troika, para evitar que a Troika deixe o governo português fazer todos os disparates que ele quer.
O governo português devia ter uma diplomacia mais activa dentro da União Europeia, para reforçar as tendências mais atentas ao fracasso da linha austeritária e à necessidade de agir na frente do dinamismo económico.
Devia aproveitar que o presidente da Comissão Europeia seja um português (mas não sei se ainda é vivo, porque há séculos que não se sabe nada de Barroso).
Mas não. Nada disso. Para ter qualquer coisa que negociar, o governo português negoceia consigo mesmo: PSD convida CDS a renovar apoio ao acordo de coligação (renovam o casamento, com festa de bodas de prata, ao fim de um ano; se calhar para o mês que vem já celebram as bodas de ouro; espero que ainda sobrevivam até às bodas de diamante). Para se encontrarem com alguém, mesmo que não com aqueles com quem de facto deviam conversar, os ministros e dirigentes dos partidos da maioria encontram-se uns com os outros: PSD e CDS-PP reúnem-se às 19h sem Passos e Portas.
Entretanto, para se orientarem, podiam pegar nos programas que submeteram ao eleitorado no ano passado. Sempre dava para se lembrarem do que falta cumprir. Seria talvez preferível a este PNIEC (Processo Negocial Intestino em Curso).

da caridade.


S. Martinho corta o manto com a espada para o dividir com o pedinte (El Greco, 1598).


O debate entre a “caridade” e a “caridadezinha” tem tido, nos últimos tempos, picos de aquecimento na blogosfera e nas redes sociais. Até cantores de esquerda foram acusados de envolvimento em iniciativas pintadas com as cores da caridadezinha, mas a intervenção de Isabel Jonet nessa questão tem sido mais focada. O tema importa, não apenas pela sua relevância política, mas por dizer directamente respeito a pessoas que precisam de não serem deixadas à sua sorte, bem como a pessoas que por isso se interessam. Ora, então, vamos lá por partes.

Ponto 1. Eu não sou contra a caridade. Não sou contra as pessoas que, livremente e para lá de quaisquer direitos ou deveres legais, dão coisas e/ou tempo e/ou dedicação a outras pessoas, gratuitamente. Não sou contra isso, nem na forma individual, nem na forma organizada. Pelo contrário. Por exemplo, acho meritório o trabalho dos Bancos Alimentares contra a Fome. Como instituição e na pessoa dos colaboradores que concretizam a sua acção. Mesmo que eu não partilhe algumas das suas ideias, acho meritório. Há, de facto, seres humanos concretos que obtém, mesmo que momentaneamente, algum tipo de alívio para os seus sofrimentos por causa de acções que costumam designar-se como caridade. Não podemos ser indiferentes a isso.

Ponto 2. No plano de uma comunidade política civilizada, as pessoas têm direitos. Para falar genericamente, direito a uma vida digna. Os direitos não são oferecidos pela boa vontade de alguém, são uma bagagem inalienável de cada pessoa. Os direitos não devem depender de que apareça alguém com disponibilidade para os concretizar, devem ser assumidos por uma comunidade organizada. Uma comunidade onde a caridade é precisa, de forma sistemática, para atender a direitos básicos que deviam estar assegurados, é uma comunidade doente. O "Estado social", tal como o entendo, é necessário para que ninguém precise da caridade. O projecto de tornar a caridade o caminho principal, a via real, relegando para segundo plano a solidariedade organizada e a garantia dos direitos, é um projecto para uma sociedade de pedintes e servos. É que os direitos não podem depender das boas vontades, enquanto a caridade é, por natureza, arbitrária: ninguém pode ser obrigado a ser caridoso, o caridoso é caridoso quando quer, como quer, com quem quer. Esse elemento de discricionaridade, sempre presente na caridade, não é tolerável como elemento central de uma comunidade de cidadãos.
Por isso acho intolerável a ideologia de Isabel Jonet sobre este ponto, quando diz: «Eu sou mais adepta da caridade do que da solidariedade. A caridade é muito mais. A palavra está desvirtuada por ter uma conotação religiosa, mas para mim a caridade é a solidariedade com amor. Com entrega de si mesmo. A grande diferença é que caridade é amor e solidariedade é serviço.» (fonte)
Colocar os direitos, e a solidariedade organizada como meio de os fazer valer, em segundo plano face à caridade, é ideologicamente um regresso ao salazarismo. Que recuso liminarmente.

Ponto 3. Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, tem-se colocado sistematicamente, de há algum tempo a esta parte, numa linha claramente ideológica, política no sentido mais parcial do termo, assumindo teses muito antigas e muito claramente posicionadas no tabuleiro da luta político-partidária. Quando alerta para os «efeitos perversos» do Estado Social; quando defende que o novo pacote de austeridade de Setembro (incluindo o Robin dos Bosques invertido, mais conhecido por TSU) é um «mal menor»; quando afirma: «As pessoas passaram a achar que têm direito a todas as prestações sociais e dão-no como adquirido. Muitas vezes, preferem ir para o subsídio de desemprego do que ter um emprego, ainda que ele seja menos bem pago, porque sabem que vão ter a prestação social no final do mês.» (fonte). Entretanto, se alguém ataca as declarações da senhora, há logo umas vozes escandalizadas porque a senhora é muito boazinha e não pode ser criticada. Ora, nada disto é caridade: isto é política de uma tendência bem determinada.
Saberá Isabel Jonet, por exemplo, que quase metade dos desempregados em Portugal não recebem nenhuma prestação de desemprego? Misturar toda essa gente, em geral, com os que se encostam e não fazem nada (que também existem, sim) é pura ideologia. E é um velho argumento, que vem sempre do lado dos que culpam os aflitos pela sua aflição. Isabel Jonet tem insistido, nos últimos tempos, em fazer ideologia, em falar demasiado genericamente. Fica-lhe mal e, se o que ela quer mesmo é fazer caridade, está a prejudicar essa mesma caridade com esta insistente agenda ideológica. Infelizmente, até já a caridade serve para fazer currículo que depois se usa no combate político (um Fernando Nobre de saias?). O que é uma pena: há pessoas que admiro apesar das divergências, mas também há pessoas que nos fazem perder o respeito pela sua acção quando confundem os carrinhos todos e se metem em guerras a que se deviam poupar.

Ponto 4. Usar a caridade para promover certas ideias políticas é repugnante. Moralmente repugnante. Mesmo em termos cristãos, é contra o Evangelho, que manda que a mão esquerda não saiba o que faz a mão direita (quer dizer, que não se apregoe, não se faça propaganda da caridade praticada). Não sou contra a caridade como caridade, mas tenho muito contra a intrusão da caridade na luta ideológica, como arma de arremesso política. Infelizmente, a Isabel Jonet que assim entra no combate ideológico, sem luvas nem nada (de uma forma quase partidária, pelo tom da sua vinda a terreiro neste momento), lança desse modo uma sombra sobre um projecto (os bancos alimentares contra a fome) que, apesar das discordâncias com as tintas ideológicas, considerávamos meritório. E continuamos a considerar: meritório e necessário. Infelizmente necessário.

Ponto 5. Uma última palavra sobre a solidariedade que vai para além do “Estado social”. Nem toda a caridade é caridadezinha, mas anda por aí muita caridadezinha disfarçada de caridade cristã. Gostaria de saber se todos os entusiastas de Jonet seriam igualmente entusiastas de associações operárias de socorros mútuos, que certamente não beneficiariam de tanta benevolência de certos meios, nem de tantas bênçãos. E, contudo, têm tradição e fizeram muita obra: mas com uma ideologia muito diferente. Aliás, é pena que a esquerda, em tantos países, tenha perdido essas tradições, tornando-se demasiado estatista: mas essa é outra conversa. Entretanto, aos que fazem ideologia e política de facção do alto dos seus tronos de caridade, digo, usando ainda outra expressão do Evangelho, que são "túmulos caiados de branco". E que, como tal, não me merecem o respeito que presumem ser-lhes devido.

(Acrescento este link, por conter alguma informação relevante de enquadramento.)

19.9.12

postal para Maria Teresa Horta.


Maria Teresa Horta, respeito a sua decisão de recusar ir receber o prémio literário D. Dinis, pelo seu monumental romance “As Luzes de Leonor”, das mãos de Passos Coelho. Respeito integralmente: tem o direito a esse gesto, esse gesto tem um significado, as pessoas devem estar no mundo com os gestos que transportem os significados que para si valem a pena.
Quero publicamente dizer-lhe, mesmo assim, que preferia que tivesse decidido ir à cerimónia, receber o prémio das mãos do primeiro-ministro, e aproveitasse para fazer um discurso sobre as suas razões acerca do país neste momento.
Tenho duas bases para esta minha preferência.
Primeira: sendo as instituições aquilo que distingue a civilização da selva, prefiro sempre que tratemos os lugares institucionais como coisa de todos, não como coisa de quem os ocupa no momento. Não é o senhor Pedro que conta, não seria o senhor Pedro a entregar o prémio; seria o primeiro-ministro do nosso país. Não deveria engrandecer Passos Coelho, tratando-o como se ele estivesse lá por direito pessoal (numa cerimónia literária, ainda por cima). Temos de lidar com o actual primeiro-ministro como primeiro-ministro, um a seguir a outros e antes de outros, não como se ele fizesse o cargo (não tem, parece, estatura para fazer o cargo). Este Pedro não usurpou o cargo: chegou lá pelos nossos erros colectivos, que ele lá continue ou não é coisa nossa, não dele, não de qualquer entidade mais alta. É isso que faz a importância dos lugares institucionais: nem são dos indivíduos, nem são dos deuses. Não são dos indivíduos, porque as posições (em democracia republicana) não estão reservadas a nenhum indivíduo ou casta; não são dos deuses, por quem ocupa as posições é responsabilidade nossa, não de "alguém lá de cima".
Segunda razão: ao publicitar a recusa em ir, teve a sua oportunidade de explicar as suas razões. Mas de forma breve, porque o que passa para o espaço público, nessas condições, é pouco. Passa a recusa e uma frase condenatória de PPC, apenas. Se tivesse ido, poderia ter garantido o direito a um discurso mais articulado, mais aprofundado, mais reflexivo, mais capaz de nos fazer pensar. E precisamos disso: precisamos que os intelectuais falem do país, se debatam com esta realidade dura que temos, mas o façam com mais sumo e seiva do que a mera repulsa pelo erro. E digo isto estando, muito provavelmente, de acordo com a sua repulsa. Precisamos, hoje, de gente de cultura que vá mais ao osso do que apenas dar bofetadas na cara dos maus governantes. Se a Maria Teresa Horta tivesse ido, tivesse discursado, poderia ter feito uma magnífica peça que tocasse os nossos corações e a nossa inteligência, porventura mais do que a nossa raiva e a nossa angústia.
Como digo, respeito integralmente a sua decisão de não ir. E não tenho a arrogância de lhe dizer que seria seu dever ir. Apenas lhe digo, pelas razões aduzidas, que preferia que o tivesse feito e tivesse aproveitado para cravar um espinho mais consistente na nossa consciência colectiva.


o que eu partilho com Romney.


Fiquei a saber, pelo noticiário das 7 da manhã, que Mitt Romney tinha dito, num discurso para apoiantes, que os Republicanos não podiam à partida contar com os votos de 47% (ou 49% ?) dos americanos, os que recebem prestações do Estado. A ideia era que esses estavam "comprados" pelos Democratas, ou pelo governo, ou pelos malditos estatistas, que na cabeça dele é tudo mais ou menos a mesma coisa. Um discurso que entre nós é sobre os subsídio-dependentes (os que sejam pobres ou remediados, porque os ricos têm direito a todos os subsídios que consigam recolher e nisso só têm mérito, claro está).

Confesso a minha fraqueza: embora achando que o "racismo ideológico" da declaração era abominável, pensei que o homem teria razão numa coisa: os que beneficiam da protecção da sociedade seriam mais de "esquerda" do que de "direita".

Pois, numa coisa acompanho o candidato republicano à presidência dos States: na ignorância. Aquela minha convicção é demonstração de ignorância: talvez menos grave em mim do que num candidato a presidente daquele país, mas, de qualquer modo, ignorância. É que, como se explica neste artigo, o retrato do recebedor de prestações nos EUA é mais deste tipo: republicano, idoso, branco e diplomado. [The people who receive the disproportionate share of government spending are not big-government lovers. They are Republicans. They are senior citizens. They are white men with high school degrees.]

Os preconceitos são tão estúpidos, não são? Lá e cá, bem entendido.

(Agradeço ao Paulo ter indicado este caminho de ataque à minha ignorância.)

a tomada da pastilha.


~bucz, sem titulo

Lendo algumas opiniões disponíveis na blogosfera e nas redes sociais acerca das manifestações do passado dia 15, duas coisas me espantam.
A primeira: há quem julgue que não aconteceu nada, ou que o que se passou foi uma mera passeata de portugueses irresponsáveis. Sobre isso não há muito dizer: todos os governos têm os seus tolinhos de serviço, capazes de matar o pai e a mãe e os irmãos em lugar de reconhecer quando se fazem disparates e as pessoas se cansam.
A segunda: há quem julgue que os portugueses detestam a troika, os credores, o equilíbrio orçamental, que são partidários do "não pagamos" e de optarmos pelo estatuto de pária na economia internacional, marimbando-se para os compromissos assumidos por Portugal em troca de dinheiro fresco. Acho completamente errada essa leitura: creio que a maioria esmagadora dos portugueses acredita que temos de pagar o que nos emprestaram, que temos de endividar-nos menos e só para o que seja importante. E creio que a esmagadora maioria dos portugueses "apenas" exige que não haja filhos e enteados, que o governo tenha juízo e não se sinta livre para fazer o que lhe der na real gana, que a manta não seja curta só para alguns, que se gira com muito cuidado o produto dos nossos sacrifícios.
Afinal, já toda a gente o disse: as pessoas querem equidade.
Confundir isso com o apoio da maioria dos portugueses ao "não pagamos", é um abuso. E, sejamos claros, as pessoas estão tão fartas dos abusos dos "austeritários" como dos abusos dos "revolucionários" que interpretam as nossas dores como vermelhidão e vontade de tomar de novo a Bastilha.
Há que não confundir as dores da "tomada da Bastilha" com as da "toma da pastilha"...

o trânsito na rotunda.




Entraram ontem em vigor as alterações ao trânsito na rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa (regime experimental). Há vários aspectos do folclore associado que merecem ser analisados por quem se interesse pelo funcionamento das nossas sociedades.
Desde logo, mexer nos hábitos e rotinas é muito complicado: nós não somos máquinas de calcular, não computamos com uma racionalidade furiosa os prós e os contras de cada uma das alternativas de comportamento que se nos apresentam a cada momento, a maior parte do tempo fazemos aquilo a que estamos habituados. E ainda bem: seguimos hábitos e rotinas para deixar o nosso "pensamento" dedicar-se a outras coisas. É essa a principal razão para estas mudanças em aspectos rotinados da nossa vida comum serem difíceis de entrar em funcionamento.
Prever as dificuldades práticas de tal adaptação é difícil. A Câmara de Lisboa, mesmo tendo passado meses a estudar a alteração, não previu, por exemplo, que as pessoas teriam tendência a ir pela rotunda exterior, mais lenta, mesmo que fossem para os principais destinos, servidos pela rotunda central, porque achavam estar assim a proceder com mais cautela. Mesmo sendo difícil prever, até com aturado estudo, há sempre quem tenha sentenças a ditar desde o primeiro minuto: ouçam-se as declarações dos sábios do costume, ao volante da sua viatura, antevendo novo terramoto em consequência de um esquema que, dizem, está fadado a fracassar. É assim: há sempre quem tenha visões miraculosas, instantâneas e precisas, de tudo e mais alguma coisa ao cimo da Terra; há sempre quem suponha saber tudo do mundo, de todos os recantos do mundo, em todas as especialidades e sub-especialidades. (Como aquele pescador, ontem no Prós e Contras, que criticava que, onde antes estava a escola de pesca, estivesse agora a Fundação Champalimaud, que, dizia ele, toda a gente sabe que não serve para nada. Sem que ninguém, excepto o tímido esboço de protesto da apresentadora, lhe sugerisse que não confundisse o mundo com o redondo da sua barriga e lhe pedisse para não expandir a arrogãncia opinativa para lá da fronteira do ridículo.) Mas estas mudanças são sempre pasto para o "achismo", onde toda a gente, quanto menos estudou o assunto mais se acha dotado de saber prático para achar isto e aquilo.
Finalmente, falo por mim: somos frequentemente preguiçosos e deixamos para depois o que se podia fazer antes. É verdade que, praticamente não usando carro em Lisboa, como conduzir no Marquês é assunto que não me toca muito. Mesmo assim, só ontem, perante a constatação do caos, voltei a olhar para os esquemas explicativos para perceber o essencial: vamos pela rotunda interna para os três grandes destinos ali servidos, vamos pela rotunda externa para os demais. O resto virá da experiência, quando lá tiver de passar. Não custava nada ter pensado nisso há mais tempo...
Convicção minha: António Costa, pragmático e focado nos resultados, vai levar mais esta alteração a bom termo, continuando assim o trabalho de formiga, que tem melhorado muita coisa com contenção de custos e com intervenções que parecem localizadas mas, realmente, mostram um conhecimento do quotidiano concreto das pessoas e uma atenção às pequenas coisas da qualidade de vida.

17.9.12

no que vai de Setembro.





No que vai de Setembro, o primeiro-ministro de Portugal aviou uma receita sem ler a posologia - e vai ter a oportunidade, oferecida pelo Presidente da República, de perceber o que isso significa. (Não é de excluir que Cavaco Silva tenha convidado Vítor Gaspar para dar explicações no Conselho de Estado para garantir que Passos Coelho saiba realmente o que se está a passar: "eles" querem ver o PM ouvir a história bem contada, para saberem que ele a ouviu contar pelo menos uma vez. Não acredito que o PR simplesmente tenha convidado Gaspar por este ser melhor a usar o powerpoint do que PPC, quando o próprio PPC estará no Conselho de Estado. De qualquer modo, PPC transforma-se assim, oficialmente, num pau-mandado do ministro das finanças.)
No que vai de Setembro, o povo saiu à rua: mesmo o povo que deu um crédito de confiança a este governo está cansado da ligeireza com que o PM apresenta as facadas como se fossem uma espécie de acupuntura pós-moderna. (Esse facto, notável, de ter ido meio milhão para a rua tugir e mugir contra o estado a que isto chegou, não torna menos grave o seguinte facto: muitos dizem que há alternativas a esta austeridade cega, mas nenhuma força política ainda apresentou com clareza, e contas, um caminho alternativo. Se isso não é muito grave no caso do BE e do PCP, no caso do PS está chegada a hora de demonstrar como se pode ter um rigor progressista, em vez do despesismo que só enche os bolsos a alguns, e em vez de querermos viver com o dinheiro dos outros e ao mesmo tempo querermos ter uma soberania impossível.)
No que vai de Setembro, Portas abriu o jogo que vem a jogar há muito tempo: quer entrar no carrinho de este plano resultar (dirá que fez parte da solução) e ao mesmo tempo entrar no carrinho de tudo isto acabar mal (dirá que sempre alertou para os perigos de fazer as coisas desta maneira). Confirma-se aquilo que se sabe há muito tempo: Portas é um actor brilhante a fazer figura de homem de Estado, mas isso é só pose, porque realmente está sempre a fazer contas à sua popularidade e aos votos que possa ganhar na eleição seguinte. É pornográfico que PSD e CDS nos governem como têm estado a governar e ainda por cima nos queiram entreter com o seu processo de contabilidade interna.
No que vai de Setembro, os empresários que merecem a designação (e não os patrões que andam sempre a tentar roubar os trabalhadores) dizem que estar a tirar mais a quem trabalha só dá cabo das empresas que vivem do bom desempenho de quem lhes dá vida. E alguns até dizem (ver notícia na foto sobre o sector do calçado), lá por Milão onde vendem como melhores entre os melhores, que pensam como "devolver" aos trabalhadores aquilo que os gasparzinhos querem roubar ao trabalho para entregar ao capital.
No que vai de Setembro, o país está quente e não vai ser fácil resfriar as cabeças só com declarações de circunstância.

6.9.12

ai as liberdades.


Já anteriormente me insurgi neste espaço contra a tendência para ver os grupos de hackers que por aí andam como uma espécie de fazedores da justiça que falta neste nosso mundo. Já perguntei "quem nos salva dos salvadores?", afirmando que essas multinacionais anónimas não andam muito longe da lógica das "milícias populares" que se reclamam da "justiça por suas próprias mãos", num estilo em tempos muito incentivado por Paulo Portas e quejandos. Já fiz notar hackers acusando outros hackers de serem puros criminosos escondidos sob a máscara de puras intenções políticas. Já relatei notícias de como esses grupos são vulneráveis à infiltração pelas polícias, tornando o entornar do caldo muito difícil de acautelar. Já aqui escrevi que a lógica das milícias populares leva sempre ao abuso: embora o abuso possa parecer mais romântico por ser praticado em nome da democracia, da anarquia, ou da transparência, não deixa de ser abuso por isso.
Contudo, se há coisa que os tempos actuais nos pedem é que sejamos capazes de fazer distinções mais finas do que aquelas a que estávamos habituados.
Esta notícia – Hackers acusam FBI de recolher dados sobre utilizadores de iPhones e iPads – dá conta de uma acção hacker que me parece perfeitamente conforme aos ideais de cidadania. Segundo a notícia, “o Antisecurity Movement divulgou na Internet 1.000.001 identificadores únicos de equipamentos da Apple, que podem dar acesso a dados pessoais dos utilizadores (nome, morada, número de telefone, etc.) e à sua localização geográfica – através das chaves utilizadas pelo Twitter, Facebook ou Instagram, por exemplo, cujas aplicações "perguntam" aos utilizadores onde é que eles estão num determinado momento, para que possam publicar fotografias, vídeos e texto com a indicação do sítio em que esses ficheiros foram criados e/ou partilhados”. O AntiSec roubou esses dados do computador de um agente do FBI para poder demonstrar a veracidade da acusação: o FBI usa esses meios para controlar pessoas fora daquilo que legalmente deveria estar ao seu alcance. Trata-se, pois, de um roubo que considero justificado e proporcionado ao fim justo em vista. O AntiSec teve o cuidado de “limpar” a informação para que ninguém seja capaz de identificar a propriedade daqueles equipamentos, excepto exactamentr os legítimos proprietários. A acção terá provavelmente ferido a legalidade, mas sem ferir os direitos de outras pessoas e instituições, na medida em que tocou cirurgicamente (até ao momento) no podre que estava escondido.
Os tempos são perigosos. Temos de estar alertas contra aqueles que se dizem nossos protectores para melhor nos fazer mal. Mas temos de saber reconhecer aqueles que nos ajudam a combater a tirania dos candidatos a serem órgãos do novo Big Brother. Reconheço que, em geral, não será fácil fazer as boas distinções. Estaremos, também aí, sempre em risco de errar. Mas não podemos, simplesmente, descansar como tontos à sombra de antigas distinções que já não explicam o mundo em que vivemos.

litigância de má-fé.


O jurista Pedro Lomba escreve hoje na última página do Público para defender o ministro Crato, por este, supostamente, "continuar a partir muita falsa porcelana do nosso ensino". Ares do tempo: a qualidade dos governantes, na cabeça de alguns, mede-se pela quantidade de louça partida. Fraca medida da boa governação, diria eu, que parto facilmente copos e terrinas e, contudo, sou péssimo cozinheiro. Mas, enfim, há quem se sinta na obrigação de defender os correlegionários com qualquer arma (retórica).

O tópico de Pedro Lomba hoje é o ensino "fora da via única": profissional, vocacional, "artes e ofícios", como ele diz em título. Já ontem aqui escrevi que só a ignorância permite falar de via única no nosso sistema educativo. Discutir se a diferenciação deve ser antes ou depois do 9º ano, e em que moldes, é um outro debate. Tentar misturar as questões é tentar enganar o pagode.

Contudo, os passes de ilusionismo retórico de Pedro Lomba ultrapassam, neste caso, o aceitável - mesmo que, em vez de estar a discutir assuntos de grande impacte na vida das pessoas e do país, estivesse apenas a fazer literatura. É que Pedro Lomba quer falar da "via única até ao 9º ano" e, para isso, usa metade do artigo a invocar o exemplo de Matthew Crawford, que foi muito feliz na América com uma oficina de reparação de motas - exemplo, segundo o nosso articulista, das maravilhas "do trabalho com as mãos", do "conhecimento real das coisas", da "aprendizagem de ofícios", do "ensino prático". E Crawford ainda hoje "divide o seu tempo entre a filosofia e as motas".
Entre a filosofia e as motas?! Filosofia?! Então, mas isto não era tudo sobre mandar os meninos antes do 9º ano para vias castigadoras do respectivo insucesso, chamadas, sem mais nem quê, vocacionais ou profissionais?!
É que Matthew Crawford fez um doutoramento em filosofia em Chicago, fez investigação durante algum tempo... e depois não gostou do trabalho e dedicou-se às motas. Matthew Crawford não foi ganhar a vida a reparar motas aos doze ou treze ou quatorze anos; Matthew Crawford doutorou-se em filosofia, começou a fazer investigação e depois decidiu arejar - e pensar filosoficamente sobre a relação entre teoria e prática na nossa vida de humanos. E escreve sobre isso. E publica sobre isso. Matthew Crawford não é exemplo nenhum para argumentar acerca da suposta uniformidade do ensino não superior em Portugal, nem é argumento a favor de castigar os meninos com vias vocacionais, nem deveria servir para arroubos mal informados acerca da uniformidade da nossa escola.
Se Pedro Lomba quer abrir janelas aos nossos jovens, acho muito bem. Sugestões para aumentar a pluralidade dos mundos acessíveis aos jovens antes do 9º ano: deixem-nos aprender música a sério; deixem-nos fazer desporto a sério; dêem-lhes reais oportunidades de se dedicarem às artes: à pintura, à escultura, ao teatro, à dança. Ou essa pluralidade de mundos, Pedro Lomba, só é boa para doutorados em filosofia, como Matthew Crawford?

Em assuntos sérios, que têm a ver com a qualidade da vida das pessoas, e com a qualidade da democracia, misturar alhos com bugalhos é litigância de má-fé. Gastar meio artigo a falar do doutorado em filosofia Matthew Crawford para servir como ilustração e defesa das vias profissionais ou vocacionais antes do 9º ano cabe, a meu ver, nessa categoria: litigância de má-fé.

Se Matthew Crawford pode ver a maravilha que é a prática, isso não resulta de o terem enterrado desde menino e para toda a vida numa oficina de reparação de motas. Isso resulta de lhe terem dado janelas variadas para ver o mundo. Quem não perceba isso, não percebeu mesmo nada.

arte de rua.







Liqen, in Miami. «Wall Street bankers trapped in a maze, unable to escape the encroaching flames. This took 12 days to paint.»

5.9.12

um professor universitário a quem eu recomendaria uma escola profissional.


Carlos Fiolhais, em artigo hoje no Público, intitulado "Uma herança do PREC", vem fazer um confrangedor exercício de ignorância e de ideologia barata sobre "ensino profissional", talvez para relativizar os disparates que o ministro Crato tem dito sobre a matéria.
Sem me alongar, porque isso não aproveitaria muito a Fiolhais, que parece definitivamente ter-se desinteressado pela verdade ou inverdade das coisas que escreve, direi apenas duas ou três coisas.
Primeiro: comparar aquilo que muitos escrevinhadores chamam "a abolição do ensino técnico a seguir ao 25 de Abril" com o ensino profissional que actualmente existe em Portugal, ou é ignorância ou má-fé. Ou as duas coisas. O ensino profissional que hoje existe não é um beco destinado a encaixar as "classes baixas", é um ensino de qualidade, que dá acesso a profissões qualificadas e muitas vezes bem remuneradas, com uma formação de espectro largo que não separa os que podem e os que não podem ir para o ensino superior, que não fecha portas, antes as abre. Isso faz toda a diferença, tanto em termos de qualidade da democracia, como em termos de qualidade do ensino. Ignorar isso e misturar alhos com bugalhos, como faz Fiolhais logo desde o título do seu artigo, é estar enganado ou querer enganar-nos.
Segundo: escrever, como faz Fiolhais, que a oferta educativa existente em Portugal é "como as lojas de souvenirs na antiga União Soviética onde só havia bustos de Lenine", porque é completamente unificado até ao 9º ano "e com poucas escolhas depois dele", é estar num Portugal diferente daquele em que vivemos aqui a leste do cabo da Roca. Se Fiolhais não conhece a oferta de ensino profissional, informe-se em vez de dizer disparates. Vá, por exemplo, à procura da lista de Escolas Profissionais e dos cursos que elas oferecem por todo o país. Informe-se em lugar de se engasgar com ideias feitas. É o mínimo que deve aos leitores do jornal em que escreve, o qual pago para ler.
Terceiro: a "via única", "instituída em nome da igualdade", a que Fiolhais atribui a fonte do insucesso do sistema educativo, só existe na cabeça de ideólogos mal informados. Que Fiolhais deteste a igualdade, mormente a igualdade de oportunidades, não nos custa a crer; mas podemos pedir que confronte as suas preferências com a realidade, ou isso é demais para si, Carlos Fiolhais? É que já existem mais de 40% dos jovens no ensino profissional ao nível secundário - como pode, mesmo assim, falar de via única? Nem no papel, nem na realidade. Só na cabeça destes propagandistas. E a "nova meta" dos 50% dos jovens do nível secundário a frequentar o ensino profissional, propalada pelo ministro Crato, é uma "nova meta" desde os anos 90 do século passado.

Tanta ignorância será devida a más escolas frequentadas por tamanho professor doutor, à falta de tempo para preparar os seus escritos, ou simplesmente à deficiente formação cívica de quem não cura de falar verdade quando se mete a fazer propaganda? Estou certo que um curso de uma das muitas Escolas Profissionais deste país evitaria ao Professor Doutor Carlos Fiolhais estas falhas deontológicas, e mesmo de carácter, porque muitas Escolas Profissionais oferecem, além de excelente formação, um ambiente propiciador de uma relação saudável com a vida, assim fazendo também educação, além de ensino.



4.9.12

«Eu nunca tive a infelicidade de conhecer o fascismo.»


Encontrei no Entre as brumas da memória um texto que Mário de Carvalho divulgou hoje no Facebook. O título é: "Denegação por anáfora merencória". Quer o escritor, quer o texto, quer o blogue, quer a autora do blogue - todos me merecem respeito. Convido-vos a lerem esse texto na sua inteireza.
E depois convido-vos a lerem uma versão retalhada por mim, que vem a seguir. As partes em itálico e a vermelho são pedaços intercalados por mim. A minha intenção não é desrespeitar o texto, nem o autor - nem as vítimas. Mas, apenas, fazer pensar. Por me parecer que pensar não passa necessariamente por extremar posições - ou, pior ainda, confundir as oposições, porque nem todas as oposições se recortam do mesmo modo nem com as mesmas fronteiras.

***

Eu nunca fui obrigado a fazer a saudação fascista aos «meus superiores».

Mas muitos, por essas repartições e empresas deste país, são hoje obrigados a lamber o cú ao patrão ou ao chefe, sob pena de irem para o olho da rua ou de terem de assear a latrina com o paninho de limpar os óculos.

Eu nunca andei fardado com um uniforme verde e amarelo de S de Salazar à cintura. Eu nunca marchei, em ordem unida, aos sábados, com outros miúdos, no meio de cânticos e brados militares. Eu nunca vi os colegas mais velhos serem levados para a «mílícia», para fazerem manejo de arma com a Mauser. Eu nunca fui arregimentado, dias e dias, para gigantescos festivais de ginástica no Estádio do Jamor.

E os camaradas na URSS e na RDA e em outros países das amplas liberdades, que participavam de libérrima vontade nas respectivas “organizações de petizes”, como os pioneiros, ou em outras organizações de juventude, ou em outras organizações de massas, em nome do progresso da humanidade, ou da revolução, ou dos proletários de todos os países que deviam unir-se, tinham muito mais sorte porque levavam outras coisas à cintura em vez do S de Salazar. E contudo ninguém pretende que na URSS ou na RDA havia fascismo.

Eu nunca assisti ao histerismo generalizado em torno do «Senhor Presidente do Conselho», nem ao servilismo sabujo para com o «venerando Chefe do Estado». Eu nunca fui sujeito ao culto do «Chefe», «chefe de turma», «chefe de quina», «chefe dos contínuos», «chefe da esquadra», «chefe do Estado».

Nisso tive imensa sorte, porque hoje em dia, quase 40 anos depois do 25 de Abril, o que há mais é o culto do chefe, do chefão, do chefinho, do senhor doutor, do senhor prior, do senhor director-geral, do menino assessor e de toda a catrefa de pequenos caciques que nos podem tramar, mesmo que ainda por cima tenhamos de lhes dar palmadas nas costas e pagar-lhes um café de vez em quando para eles amansarem aos intervalos, porque a senhora que vende os jornais no meu bairro me trata por senhor doutor quando vou de gravata e nem bom-dia me diz quando vou de t-shirt, porque a porra da veneração escusada é uma coisa tão espalhada entre o carneiral humano que de tanta veneração até parece uma transmissível doença venérea.

Eu nunca fui obrigado a ouvir discursos sobre «Deus, Pátria e Família».

Mas eu já fui “descontratado” pela Universidade Católica Portuguesa, depois de ter ganho um concurso para recrutamento de professores, porque tinha assinado uma petição contra a pouca vergonha do Cavaco e outros “altos dignitários” confundirem as suas pessoas privadas com as suas funções de Estado no acolhimento ao Papa em Portugal – e recebi, sobre isso, o comentário de um blogueiro muito-muito de esquerda-da-esquerda que isso não tinha mal nenhuma porque a Católica sendo privada faz o que quer e o que lhe apetece e ninguém tem nada a ver com isso.

Eu nunca ouvi gritar: «quem manda? Salazar, Salazar, Salazar». Eu nunca tive manuais escolares que ironizassem com «os pretos» e com «as raças inferiores». Eu nunca me apercebi do «dia da Raça».

E no entanto o actual Presidente da República já disse num 10 de Junho estar a comemorar o dia da raça. E o que não falta por aí é racismo. Racismo prático, não apenas teórico.

Eu nunca ouvi louvar a acção dos «Viriatos» na Guerra de Espanha. Eu nunca fui obrigado a ler textos escolares que convidassem à resignação, à pobreza e ao conformismo.

E agora já não preciso disso, basta ligar a televisão e ouvir os governantes fazerem esses mesmos apelos e recomendações. O (nosso) empobrecimento é agora a ideologia da classe dominante, se ainda não deu conta disso.

Eu nunca fui pressionado para me converter ao catolicismo e me «baptizar».

Eu, pessoalmente, também não, mas há muita gente por aí que conhece outras realidades: por exemplo, “bons colégios” que só admitem meninos e meninas que cumpram os requisitos da santa madre igreja (sabemos qual a igreja a que me refiro).

Eu nunca fui em grupos levar géneros a pobres, politicamente seleccionados, porque era mesmo assim. Eu nunca assisti à miséria fétida dos hospitais dos indigentes. Eu nunca vi os meus pais inquietados e em susto. Eu nunca tive que esconder livros e papéis em casa de vizinhos ou amigos. Eu nunca assisti à apreensão dos livros do meu pai.

Eu também não, mas a censura à criação está, hoje em dia, entregue ao mercado da cultura, seja ao mercado da comunicação social, onde os temas políticos relevantes para merecerem destaque editorial dependem da linha política dos donos, seja ao mercado do livro e de outros bens, onde as mais das vezes se paga para escrever ou para compor, em vez de se ser pago para criar.

Eu nunca soube de uma cadeia escura chamada o Aljube em que os presos eram sepultados vivos em «curros». Eu nunca convivi com alguém que tivesse penado no Tarrafal. Eu nunca soube de gente pobre espancada, vilipendiada e perseguida e nunca vi gente simples do campo a ser humilhada e insultada. Eu nunca vi o meu pai preso e nunca fui impedido de o visitar durante dias a fio enquanto ele estava «no sono». Eu nunca fui interpelado e ameaçado por guardas quando olhava, de fora, para as grades da cadeia. Eu nunca fui capturado no castelo de S. Jorge por um legionário, por estar a falar inglês sem ser «intérprete oficial». Eu nunca fui conduzido à força a uma cave, no mesmo castelo, em que havia fardas verdes e cães pastores alemães. Eu nunca vi homens e mulheres a sofrer na cadeia da vila por não quererem trabalhar de sol a sol. Eu nunca soube de alentejanos presos, às ranchadas, por se encontrarem a cantar na rua.

Eu também não: tenho a sorte de essas liberdades estarem, no essencial, protegidas na democracia imperfeita que temos hoje. Tenho a sorte de alguns terem tratado disso por mim. Mas, ao mesmo tempo, tenho consciência da tendência crescente para criminalizar a dissidência, o que se nota quando a polícia “dispersa” uma “manifestação” de três ou quatro pessoas, quando a prática de actividades culturais com a população de um bairro numa escola antes abandonada é perseguida com a mesma brutalidade com que se perseguiria um bando de ladrões, como se destruir e construir fossem coisas iguais só por não se estar dentro do regulamento, como se os direitos fundamentais e os regulamentos tivessem a mesma dignidade.

Eu nunca assisti a umas eleições falsificadas,

… já eu, embora não encontre o termo jurídico apropriado para falar disso, não posso impedir-me de ver as “eleições” jardinistas como eleições falsificadas desde há não sei quantos anos a esta parte, ainda por cima toleradas por todos os poderes…

nunca vi uma manifestação espontânea ser reprimida por cavalaria à sabrada; eu nunca senti os tiros a chicotearem pelas paredes de Lisboa, em Alfama, durante o Primeiro de Maio. Eu nunca assisti a um comício interrompido, um colóquio desconvocado, uma sessão de cinema proibida. Eu nunca presenciei a invasão dum cineclube de jovens com roubo de ficheiros, gente ameaçada, cartazes arrancados. Eu nunca soube do assalto à Sociedade Portuguesa de Escritores, da prisão dos seus dirigentes. Eu nunca soube da lei do silêncio e da damnatio memoriae que impendia sobre os mais prestigiados intelectuais do meu país. Eu nunca fui confrontado quotidianamente com propaganda do estado corporativo e nunca tive de sofrer as campanhas de mentalização de locutores, escribas e comentadores da Rádio e da Televisão. Eu nunca me dei conta de que houvesse censura à imprensa e livros proibidos. Eu nunca ouvi dizer que tinha havido gente assassinada nas ruas, nos caminhos e nas cadeias. Eu nunca baixei a voz num café, para falar com o companheiro do lado. Eu nunca tive de me preocupar com aquele homem encostado ali à esquina.

(Uma declaração a precisar de revisão um destes dias, apesar de os métodos já não serem, de modo nenhum, os mesmos.)

Eu nunca sofri nenhuma carga policial por reclamar «autonomia» universitária. Eu nunca vi amigos e colegas de cabeça aberta pelas coronhas policiais.

(Anda a ir pouco a manifestações ultimamente – ou então está desatento aos sinais. É que os regimes mudam e nem sempre mudam por golpe de Estado.)

Eu nunca fui levado pela polícia, num autocarro, para o Governo Civil de Lisboa por indicação de um reitor celerado. Eu nunca vi o meu pai ser julgado por um tribunal de três juízes carrascos por fazer parte do «organismo das cooperativas», do PCP, com alguns comerciantes da Baixa, contabilistas, vendedores e outros tenebrosos subversivos.

Eu, se não tivesse olhos, não veria que hoje em dia se é julgado sem ir a tribunal, pela “comunicação social”, ou que se pode ir a tribunal por ter roubado um quilo de arroz no supermercado para matar a fome, sem perder de vista que a malvadez de um tempo não desculpa, nem sequer explica, a malvadez de outro tempo.

Eu nunca fui sistematicamente seguido por brigadas que utilizavam um certo Volkswagen verde. Eu nunca tive o meu telefone vigiado.

Eu, o telefone vigiado, suponho que também nunca tive – mas isso é por eu ser um tipo irrelevante quer para as pequenas quer para as grandes potências deste mundo, mas, por outro lado, seria capaz de jurar que muita gente, nos tempos que correm, é ilegalmente vigiada por gente que abusa dos meios especiais que o Estado lhes põe à disposição. Por exemplo, super-espiões. Ou talvez por smartphones que trabalham por conta própria.

Eu nunca fui impedido de ler o que me apetecia, falar quando me ocorria, ver os filmes e as peças de teatro que queria. Eu nunca fui proibido de viajar para o estrangeiro. Eu nunca fui expressamente bloqueado em concursos de acesso à função pública. Eu nunca vi a minha vida devassada, nem a minha correspondência apreendida. Eu nunca fui precedido pela informação de que não «oferecia garantias de colaborar na realização dos fins superiores do Estado». Eu nunca fui objecto de comunicações «a bem da nação». Eu nunca fui preso. Eu nunca tive o serviço militar ilegalmente interrompido por uma polícia civil. Eu nunca fui julgado e condenado a dois anos de cadeia por actividades que seriam perfeitamente quotidianas e normais noutro país qualquer; Eu nunca estive onze dias e onze noites, alternados, impedido de dormir, e a ser quotidianamente insultado e ameaçado. Eu nunca tive alucinações, nunca tombei de cansaço. Eu nunca conheci as prisões de Caxias e de Peniche. Eu nunca me dei conta, aí, de alguém que tivesse sido perseguido, espancado e privado do sono. Eu nunca estive destinado à Companhia Disciplinar de Penamacor. Eu nunca tive de fugir clandestinamente do país. Eu nunca vivi num regime de partido único.

Eu também não, por ser mais novo. Por ser mais novo escapei a coisas horríveis que se fizeram neste país no tempo da outra senhora. Por isso continuo a festejar o 25 de Abril. Com mais entusiasmo do que aquele com que festejo outros feriados nacionais, mesmo alguns feriados que estão a deixar de ser feriados. E dou muito valor a isso tudo. E repugna-me que alguém tente fazer do salazarismo um jardim das delícias, um tempo de passarinhos a chilrear, uma modorra quase epicurista. Repugnam-me os que tentam branquear o “fascismo português”; repugnam-me, também, os que falam ou escrevem por meias palavras para fazer passar por fascista qualquer interpretação desse regime que, sem esconder as suas malfeitorias, o interprete no contexto do seu tempo. Sem relativismos, porque abomino o relativismo, mas também sem absolutismos interpretativos, que também me causam urticária. Por exemplo, não gostei de ver ridicularizado um historiador por defender a tese, talvez hoje minoritária, de que o fascismo português é comparável ao fascismo italiano. Porque não quero confundir debates historiográficos com debates de sociedade.

Eu nunca tive a infelicidade de conhecer o fascismo.

E eu nunca tive a infelicidade de sofrer na pele outros regimes hediondos, como, apenas por exemplo, largos períodos da história de Angola independente onde a política oficial foi inseparável do crime. E, no entanto, acredito realmente que nem todos os regimes hediondos devem ser classificados de fascistas. E que é possível reconhecer a natureza repressiva e totalitária do salazarismo sem evitar uma comparação com outros regimes considerados fascistas. E que discordar sobre alguns aspectos da caracterização de um regime como fascista ou não fascista não é a mesma démarche que alinhar com ou contra o fascismo. Mas isto sou eu a dizer, que não sou nem historiador nem escritor e era novo quando “se deu” o 25 de Abril e devo, portanto, estar calado e não me intercalar nas vozes das autoridades na matéria.




os competentes.


Não é preciso muito para o efeito, mas a notícia do Público sobre O fabuloso destino dos jovens assessores do Governo Passos levantou "na rede" mais um dos enésimos coros de comentários jocosos e/ou desabridos sobre a incompetência dos políticos e a sabujice dos assessores e demais pessoal de acompanhamento.
Como é claro, nenhum dos competentíssimos comentadores se sente no dever de mostrar quais os grandes feitos - ou apenas esforçada experiência - acumulou na sua própria pessoa, em termos de poder com propriedade criticar a falta de merecimento ou currículo dos demais.
Se o currículo de dizer mal dos outros bastasse para ser uma luminária, o mundo haveria de temer-nos. Mas não: quem verdadeiramente nos deve temer, somos nós próprios. Tão-somente.

as rendas excessivas.



Passo a citar:

«Assim, de uma penada, o Governo reconhece que toda a sua campanha anti-renováveis e, sobretudo, anti-Sócrates não passa de mistificação propagandística e desonesta manipulação. A verdade é que as eólicas mais caras e que mais pesam na tarifa são as anteriores aos Governos Sócrates. E que, a partir de 2005, o custo da energia eólica passou a ser significativamente mais baixo. Tanto que o atual Governo não vê necessidade de rever a remuneração atribuída às centrais eólicas de 2005 a esta parte.»

Indo à fonte - Rendas excessivas? E de quem é a culpa, afinal? -, está lá tudo explicadinho.

3.9.12

depois das guerras da história de portugal em fascículos.


A generalidade das postas que tive oportunidade de ler, nos últimos dias, sobre a polémica entre Rui Ramos e Manuel Loff em torno da obra de História de Portugal que em boa hora o Expresso se lembrou de oferecer ao povo, mostram algo que me parece extremamente grave: a maioria dos comentadores que, em blogues, tocaram nesse tópico têm em muito má conta a "História" como disciplina científica. Quer dizer: partem do princípio que investigar história é um exercício necessariamente dominado pela ideologia.
Isto quer dizer que eu penso que a investigação histórica pode ser higienizada, separada do resto do pensamento de um investigador? Não. Quer dizer que eu penso que um historiador que só ande à procure de confirmação dos seus pre-juízos, ou que só escreva para público o que tenha esse condão, não é um historiador, é um aldrabão. Isto quer dizer que eu penso que a ideologia é má para a investigação histórica? Não. Quer dizer que só reconheço o nome de investigador a quem, partindo do ponto que partir, por exemplo das suas convicções, aceite submeter a duras provas as suas teses e corra o risco de procurar o que as pode mudar. Atacar, ou defender, este ou aquele historiador principalmente por causa das suas convicções políticas, em vez de criticar ou suportar as suas teses enquanto historiador, é tratar a investigação histórica como um mero subproduto da ideologia.
É por causa do tipo de espectáculo que tem sido dado por alguns dos intervenientes nesta novela, designadamente por aqueles que entraram na questão antes de tudo como uma guerra política insusceptível de ser travada no plano histórico, e por causa de muitos espectáculos parecidos que se vão dando ao longo do tempo em disciplinas das ciências sociais e humanas, ou das humanidades, que há quem trate estas disciplinas como "ciências moles". Conversa fiada, afinal.
Condição na qual estão sempre em risco de cair. Mas risco que não constitui uma inevitabilidade.

(Isto não é um texto de epistemologia. É apenas um desabafo.)