retrato de Portugal.
Aquela que poderia ser uma das mais impressionantes casas barrocas do país é... só fachada. A Casa das Obras, também conhecida por Obras do Fidalgo, fica em Vila Boa de Quires, próximo de Marco de Canaveses, e se é verdade que não passa de uma dramática e imponente ruína, não deixa também de fazer adivinhar o ambicioso projecto pensado para o local há 250 anos.
(Fotos de Porfírio Silva. Janeiro de 2009)
Tivesse sido concluído e, hoje, não haveria grandes dúvidas em considerar o palácio mandado edificar pelo fidalgo António de Vasconcelos Carvalho e Menezes em Vila Boa de Quires, por volta de 1750, como uma das mais belas e imponentes casas construídas em Portugal durante o período barroco. Ficou-se, no entanto, pela fachada. Monumental. Grandiosa. Cenográfica...Mas, mesmo tendo em conta que nos encontramos perante “uma das mais impressionantes construções barrocas do país”, é dramática e inverosimilmente apenas uma fachada...
Conhece-se pouco sobre a história deste insólito monumento. As suas características artísticas, entre as quais se salienta a riquíssima decoração rocaille das portas e janelas, não deixam grandes dúvidas quanto ao arranque da construção em meados do século XVIII. Sabe-se, de resto, que aquando do terramoto de 1755 já decorria a construção.
O fidalgo responsável pela edificação da mansão pensou, seguramente, numa construção de dimensões consideráveis. Tal é evidente não só no impacto que ainda hoje a frontaria transmite, mas também na invulgar espessura das paredes que não raramente atinge os sete palmos. Adivinha-se, portanto, com alguma facilidade o ambicioso projecto pensado para o palácio. A verdade porém é que a edificação se ficou pela fachada.
Mas, que motivos terão levado António de Vasconcelos Carvalho e Menezes, Fidalgo da Casa Real, a suspender a construção?
Não há também respostas para esta questão e as explicações misturam muitas vezes factos reais com outros que possuem já o estatuto de lendários.
Afastada está a hipótese das obras terem terminado por morte do fidalgo uma vez que este faleceu apenas em finais de 1799 numa altura em que a construção há muito estaria parada. Popularmente conta-se que o promotor da obra se teria desinteressado do projecto quando, culminando uma série de acidentes que se vinham registando na construção (e há, de facto, referências à morte de pelo menos um operário por queda “abaixo das obras”), é o próprio arquitecto que, durante uma visita, perde a vida na sequência também de uma queda. Não há, no entanto, qualquer prova histórica da ocorrência deste episódio.
Outra possibilidade muitas vezes apontada é a do projecto se ter revelado bastante dispendioso, abalando os recursos financeiros de António Carvalho e Menezes. É possível que esta hipótese tenha algum fundamento. Mas não explica tudo. Pensamos, de resto, que a explicação residirá provavelmente numa conjugação de vários factores onde se deverá ter também em linha de conta o facto do fidalgo não ter tido filhos legítimos “nem ilegítimos”, como salienta o seu testamento. Sem descendentes directos a quem deixar o seu sonhado palácio, ter-se-á desinteressado do projecto deixando a fachada ao seu irmão.
O facto de nenhum dos proprietários seguintes ter equacionado a hipótese de completar o palácio fez com que a ruína se tenha perpetuado no tempo como uma obra inacabada estando, de resto, na origem do nome pela qual é tradicionalmente conhecida: Casas das Obras ou Obras do Fidalgo – uma das mais imponentes e belas construções barrocas do país, mas também um dos seus monumentos mais inverosímeis e patéticos. O suficiente para há algumas décadas um milionário norte-americano ter querido comprar a fachada para a desmontar e erguer, posteriormente, numa sua propriedade na América.
(Excertos do texto, de Joel CLETO e Suzana FARO, "A Casa das Obras em Vila Boa de Quires: É só fachada", in O Comércio do Porto. Revista Domingo, 6 Junho 1999, p.21-22.)
(Republicação. Publiquei este texto aqui a 5 de Janeiro de 2009. Mas, vá lá saber-se por quê, tive ganas de o dizer de novo.)
a troika veio avaliar os seus pupilos e achou-os bem.
A troika acha que Portugal está a ser bem governado. É natural: Portugal está a ser governado com o programa da troika.
Como deixou claro o Presidente do PSD, no final de Janeiro (não passou ainda um mês), esse partido tem um "grau de identificação importante" com o programa acordado com a 'troika' e quer cumpri-lo porque acredita nele. Nas suas palavras: "(...) o programa eleitoral que nós apresentámos no ano passado e aquilo que é o nosso Programa do Governo não têm uma dissintonia muito grande com aquilo que veio a ser o memorando de entendimento celebrado entre Portugal, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional". Ainda segundo o presidente do PSD, "executar esse programa de entendimento não resulta assim de uma espécie de obrigação pesada que se cumpre apenas para se ter a noção de dever cumprido". Nada que espante na "avaliação da troika", portanto: a troika tem os seus entusiastas no governo, felizes e contentes por poderem seguir esta política.
O PSD, apoiado no CDS, no PCP e no BE, derrubou um governo (o segundo governo de Sócrates), que tinha uns meses de mandato, no calor de uma crise. Isso serviu para nos fazer entrar mais resolutamente na crise, criando à direita liberal uma oportunidade de aplicar o seu programa, apoiada na ideologia do troikismo. É isso que está a fazer. Evitam é de estar sempre a fazer de conta que se limitam a fazer o que tem de ser feito, que se sentem condenados a esta receita. Esta é a sua receita, o seu programa, a sua política. Foi para isto que mobilizaram a coligação negativa. Não venham é, intermitentemente, chorar lágrimas de crocodilo pelas consequências: eles sabem quais são as consequências e querem-nas como prova de vida do seu conceito.
28.2.12
Decreto.
O governo da troika manda acrescentar um dia ao mês de Fevereiro. Assim, amanhã será 29. Com o mesmo ordenado, vencimento, remuneração, subsídio, bolsa, ou coisa nenhuma. Ou 300 miseráveis euros, que há muito disso por aí. Este ano é por estarmos no bissexto; para o ano, é para aumentar a produtividade. Sim, para o ano fica assim: aproveita-se o balanço. A Europa que se agarre: não hão-de querer que comecemos a chegar, daqui a algum tempo, com atrasos de dias às reuniões imprescindíveis - históricas - onde se fazem revoluções duas ou três vezes por semestre. Mas isso é lá problema deles, decerto.
uma visão de Napoleão.
"Whose game was empires, and whose stakes were thrones;
Whose table, earth - whose dice were human bones."
Lord Byron, The Age of Bronze (III)
27.2.12
neste dia em 1933 nasceu Ruy Belo.
Quanto Morre um Homem
Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?
Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"
25.2.12
lições práticas sobre capitalismo.
Quando tiver um bocadinho veja este filme: Tucker: The Man and His Dream, de 1988, realizado por Francis Ford Coppola.
Há muito tempo que o capitalismo não é o mercado livre. Por que haveria de ser agora?
24.2.12
não, os políticos não são todos iguais.
Há políticos que continuam a chafurdar na mentira e na sugestão cobarde. Há. Mas não são todos assim. Alguns até apresentam as contas muito contadinhas. Entre os meios de comunicação social, para não variar, também há quem ajude à confusão, quase como uma vocação: a vocação de chafurdar. Não metamos tudo no mesmo saco: acima de tudo, ouçamos as partes e ajuizemos (ajuizar, não julgar, que isso é para outros).
Ora vem lá se isto não condiz com o que vos escrevo.
Não chamo a isto jornalismo de esgoto, para não insultar o esgoto.
A TVI colocou esta tarde no seu site um pequeno vídeo em que a atracção é a deputada Isabel Moreira a dizer que está drogada, com drogas lícitas. Divulga esse vídeo no Facebook com este comentário, assim em maiúsculas: VEJA AQUI O VÍDEO QUE ESTÁ A MARCAR A ACTUALIDADE. No site, coloca ao lado do vídeo o título "Deputada desmaiou no Parlamento", seguido de "Isabel Moreira confessa que teve quebra de tensão". Entretanto, já corre célere por aí "a deputada que disse que estava drogada". A TVI retirou completamente do contexto a curta intervenção onde a deputada anunciava uma declaração de voto, porque não era o trabalho parlamentar que interessa a tal estação "noticiosa". A estação "noticiosa", com este comportamento, quase nos levava a insultar os canos de esgoto.
neste dia em 1927 nasceu David Mourão-Ferreira.
A Secreta Viagem
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"
23.2.12
redondo vocábulo.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Foi aqui lembrado hoje de hora a hora.
Termino este dia de homenagem como o comecei. Com a minha preferida.
Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa.
Canção de Embalar.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti
ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô
Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar
ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô
Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô
Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer.
menino do bairro negro.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Se até da gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção.
vejam bem.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento do mar
E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de de febre a arder
Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
Vejam bem
daquele homem a fraca figura
desbravando os caminhos do pão
E se houver
uma praça de gente madura
ninguém vem levantá-lo do chão
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento do mar.
menina dos olhos tristes.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Menina dos olhos tristes
o que tanto a faz chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Senhora de olhos cansados
Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
do outro lado do mar
o soldadinho já volta
do outro lado do mar
o soldadinho já volta
está quase mesmo a chegar
Vem numa caixa de pinho
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar.
traz outro amigo também.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também
Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também.
os vampiros.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo asasas pela noite calada
Vêm em bandos com pés veludo
Chupar o sangue fresco da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
A toda a parte chegam os vampiros
Poisam nos prédios poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Mas nada os prende às vidas acabadas
São os mordomos do universo todo
Senhores à força mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada.
a formiga no carreiro.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
A formiga no carreiro
Vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
Ao pé dum septuagenário
Lerpou trepou às tábuas
Que flutuavam nas àguas
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro.
A formiga no carreiro
Vinha em sentido diferente
Caiu à rua
No meio de toda a gente
Buliu abriu as gâmbias
Para trepar às varandas
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro.
A formiga no carreiro
Andava à roda da vida
Caiu em cima
Duma espinhela caída
Furou furou à brava
Numa cova que ali estava
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro.
filhos da madrugada.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor nos ramos
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura da manhã clara
Lá do cimo de uma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira
Mensageira pomba chamada
Companheira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo de uma montanha
Onde o vento cortou amarras
Largaremos p'la noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca brisa moira encantada
Vira a proa da minha barca.
que amor não me engana.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura
Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor não se entrega
Na noite vazia?
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito
Muito à flor das àguas
Noite marinheira
Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junto de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irmã cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia
os eunucos.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Os eunucos devoram-se a si mesmos
Não mudam de uniforme, são venais
E quando os mais são feitos em torresmos
Defendem os tiranos contra os pais
Em tudo são verdugos mais ou menos
No jardim dos haréns os principais
E quando os mais são feitos em torresmos
Não matam os tiranos pedem mais
Suportam toda a dor na calmaria
Da olímpica visão dos samurais
Havia um dono a mais na satrapia
Mas foi lançado à cova dos chacais
Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam de saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Nao matam os tiranos pedem mais
no lago do breu.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
No lago do Breu,
Sem luzes no céu nem bom Deus
Que venha abrasar os ateus,
No lago do Breu.
No lago do Breu,
A noite não vem sem sinais
Que fazem tremer os mortais,
No lago do Breu.
Mas quem não for mau, não vá
Que o céu não se comprará
Não vejo a razão p'ra ser
Quem teme e não quer viver
Sem luzes no céu só mesmo como eu
No lago do Breu.
No lago do Breu,
Os dedos da noite vão juntos
Para amortalhar os defuntos,
No lago do Breu.
No lago do Breu,
A lua nasceu mas ninguém
Pergunta quem vai ou quem vem
No lago do Breu.
Mas quem não for mau, não vá
Que o céu não se comprará
Não vejo a razão p'ra ser
Quem teme e não quer viver
Sem luzes no céu só mesmo como eu,
No lago do Breu.
No lago do Breu,
Meninas perdidas eu sei,
Mas só nestas vidas me achei,
No lago do Breu.
redondo vocábulo.
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Mas não morreu.
Será aqui lembrado hoje de hora a hora.
Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa.
22.2.12
uma pergunta a António José Seguro.
Visto que o camarada secretário-geral do PS criticou Passos Coelho por não ter subscrito a carta de Cameron e outros aos presidentes do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, poderia fazer a fineza de explicar ao povo se, caso fosse hoje primeiro-ministro de Portugal, subscreveria essa carta?
É que receio, pela crítica dirigida a PPC, que AJS apoie o conteúdo da carta. E, nesse caso, ou eu não percebi a carta, ou AJS não percebeu a carta - ou eu não estou a perceber o secretário-geral do PS, tal como não estou a perceber outros amigos da esquerda e do socialismo em geral e de estar contra o excesso de liberalismo na Europa e isso.
uma Pompeia vegetal.
«Na China desenterrou-se uma Pompeia do mundo natural com 298 milhões de anos. As cinzas de uma erupção cobriram uma floresta de fetos arbóreos, que ficou preservada até agora. O retrato deste pântano tropical está descrito na revista Proceedings of the Natural Academy of Sciences desta semana e permite compreender melhor a evolução das florestas da Terra numa altura em que ainda não havia flores.» (no Público)
O artigo científico completo pode ser acedido livremente aqui. As imagens (reconstituições) vêm daí.
não foi nesta armadilha que caiu Cameron.
Muitas pessoas querem que alguém na União Europeia faça qualquer coisa para não continuar este disparate de deixar alastrar a crise e a pobreza, só porque há uns tantos que julgam que a crise e a pobreza são marcas de pecado, logo devem ser expiadas. E porque esses mesmos tantos esperam ganhar, algum dinheiro e eleições, com a crise e a pobreza dos outros.
Eu estou entre esses que querem que alguém faça alguma coisa para mudar o rumo.
O primeiro-ministro britânico, mais os primeiros-ministros da Holanda, Itália, Estónia, Letónia, Finlândia, Irlanda, República Checa, Eslováquia, Espanha, Suécia e Polónia, escreveram uma carta a Herman van Rompuy, Presidente do Conselho Europeu, e a Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, clamando por um plano para o crescimento. Está aqui a carta.
Entre as pessoas que, justamente, querem que se faça alguma coisa pelo crescimento, houve em alguns casos uma certa indignação por Passos Coelho não se ter associado à iniciativa.
Acho que há nessa indignação um bom ponto: quem não tenha percebido que a solução para a nossa crise não é possível sem uma solução para a crise europeia, não percebeu patavina deste mundo. O governo do passismo não quer perceber isso por uma razão muito simples: derrubou o governo de Sócrates fazendo de conta que isso não era verdade, fez uma campanha eleitoral demagógica fazendo de conta que não sabia disso. Custa-lhe, pois, agora, reconhecer o nó górdio da sua campanha de assalto ao pote, que foi uma campanha de ilusionista: esconder o jardim zoológico todo, entretendo o eleitorado a olhar para um unicórnio de papel.
Contudo, há dois aspectos a sublinhar quando olhamos para a carta de Cameron e associados.
Primeiro, embora seja interessante constatar que começa talvez a haver mais do que uma direita europeia quanto à forma de pegar a crise, deve notar-se que estão no grupo dos subscritores alguns dos Estados-Membros onde é mais forte o "castigacionismo", a inclinação para castigar "o Sul" pelos nossos pecados.
Segundo, poucos parecem ser os que se lembram de interpretar esta carta à luz dos princípios permanentes da diplomacia europeia dos britânicos. O Reino Unido tem várias tácticas diplomáticas permanentes na UE. Uma delas é que negoceia sempre até ao fim, obtendo o mais que pode da negociação, mesmo que acabe por ficar de fora do acordo final. Outra é que continua sempre a negociar, mesmo depois de ter ficado de fora da solução, para continuamente aproximar qualquer resultado das suas pretensões. Qualquer uma destas tácticas já tinha sido evidenciada na negociação deste tratado tipo-europeu-mas-entre-países-fora-das-instituições (o "compacto fiscal"). Esta carta, agora, exibe outra táctica: o RU nunca fica muito tempo fora de jogo, arranja sempre modo de voltar ao campo da derrota com metade da ex-equipa adversária integrada nas suas hostes, apresentando-se a jogo como campeã de um campeonato por si inventado.
É este último dispositivo que acaba de ser espoletado com esta carta: de repente até algumas almas da esquerda europeia viram os olhos esperançosos para a iniciativa de Cameron. Acompanhado como está, já o disse, por algumas das pátrias dos castigadores.
Os britânicos são uns ases. Confesso que tenho alguma saudade de lidar com a diplomacia deles. Mas sempre me vou divertindo a ver, ao longe, a máquina a funcionar.
trabalho.
O trabalho não devia ser uma mercadoria. O trabalho é gente, é um fluxo da vida de gente real e concreta. A economia do trabalho não devia esquecer isso.
Confesso que não sei como explicar isto melhor.
piegas, nuestros hermanos.
Espanha pede a Bruxelas para suavizar metas do défice.
Durão é o nosso Passos Coelho, que quer comer o veneno todo depressinha, para regularizar o tráfego intestinal.
repensando as artes do corpo.
«Há 13 anos criamos na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) um curso chamado Comunicação das Artes do Corpo. Até então, não se usava esse termo, hoje já tão disseminado.»
Continuar a ler Christine Greiner em MILPLANALTOS.
21.2.12
20.2.12
as vaias.
Não tenho simpatia por este governo. Cada vez tenho menos. Pelo conteúdo das políticas, mas também pela arrogância ideológica, tanto como pelo troca-tintismo (ora "a herança" do Memorando é tramada, ora o Memorando é a solução programaticamente coincidente com o programa do PSD).
Isso não me impede, contudo, de discordar que se normalize um dispositivo de cerco aos membros do governo, bem representado pela técnica de "apertar" e vaiar o PM para onde quer que ele vá.
Acho que todos sabemos distinguir uns apupos espontâneos contra um dirigente qualquer, provocados pelo natural descontentamento com a sua acção ou por alguns disparates recentes saídos de sua boca, de outra coisa bem diferente: "esperas" organizadas e destinadas a rodear de máxima tensão qualquer tentativa do PM para mostrar o nariz fora de portas. O PM deve ser confrontado, no sentido de as pessoas falarem com ele, o criticarem directamente, lhe darem exemplos concretos e vividos das consequências da sua política. Só que esse confronto directo, popular e genuíno, deixa de ser possível se for montado um dispositivo de acosso sistemático às suas deslocações.
Lembro que esta técnica de bloqueio cívico ao PM já foi seguida contra Sócrates. Está agora a ser ensaiada contra PPC. Fui contra, antes; sou contra, agora. Melhorar a qualidade da democracia e alargar o debate não podem tornar-se incompatíveis com a contestação. A anulação de uma das partes nunca é o caminho para a resolução dos problemas. A tentação de fazer com que a rua cale os governantes é uma tentação totalitária: como totalitária é a tentação de calar pelo ruído quem quer que seja. A rua também tem o seu papel numa democracia representativa, mas o seu papel tem de ser o de lugar onde as palavras se trocam com sentido. A rua, em democracia, não pode ser o lugar para tentar anular o outro. As vaias, se forem instaladas como método de perseguição, são um procedimento, no mínimo inútil; são, mais provavelmente, contraproducentes.
do argumento ontológico ao argumento das mãos sujas.
Ontem, a propósito de Borges, andei por aí a conversar sobre o seu "argumento ornitológico".
Uma das coisas que muitas vezes se dizem acerca desse curto e fascinante texto de Borges é que ele é uma versão do argumento ontológico como prova conceptual da existência de Deus. Opino contra essa leitura naquele meu post anterior. De qualquer modo, isso dá-me oportunidade de acrescentar duas coisas.
Primeiro, uma notícia: Nelson Gomes, Professor Titular da Universidade de Brasília, dá, em Lisboa, uma conferência intitulada "O Argumento Ontológico segundo Gödel". É no próximo dia 15 de Março. Mais informação aqui.
Segundo: uma interessante paródia ao argumento ontológico, na sua formulação inicial por Anselmo de Aosta, também conhecido por Santo Anselmo, veio de outro frade, seu contemporâneo (século XI), Gaunilo de Marmoutiers. Eis como António Zilhão resume essa "reductio ad absurdum" do argumento ontológico como prova da existência de Deus:
1. Perdida é a ilha paradisíaca mais perfeita e agradável que qualquer outra.
2. A ideia de ilha paradisíaca mais perfeita e agradável que qualquer outra existe na nossa consciência.
3. Se a ilha real a que esta ideia corresponde não existisse, teria de faltar um predicado à ideia, a saber, o predicado da existência, pelo que então essa ideia já não seria a ideia da ilha paradisíaca mais perfeita e agradável que qualquer outra, uma vez que seria possível pensar-se noutra ilha que tivesse exactamente as mesmas propriedades de Perdida e ainda a propriedade da existência.
4. Logo, se a ideia de ilha paradisíaca mais perfeita e agradável que qualquer outra existe, então o objecto que lhe corresponde tem também que existir pois, caso contrário, a ideia em causa deixa de ser a ideia que é, o que constitui uma contradição.
E comenta António Zilhão (na excelente Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos): «A reformulação do argumento de Anselmo por Gaunilo mostra-nos as conclusões inaceitáveis que se podem extrair de tal estrutura argumentativa mas não diagnostica o vício subjacente ao mesmo. Um primeiro diagnóstico da natureza deste vício foi efectuado por Hume e tornado célebre por Kant. Consiste na consideração de que o termo «existir» não é adequadamente utilizado no argumento, uma vez que ele é aqui tratado como se referisse um predicado quando a existência não é um predicado.»
Para terminar, dei um uso literário a esta questão das provas da existência de Deus num texto muito pior do que o "Argumentum Ornithologicum" de Borges, aqui: o argumento das mãos sujas.
a teoria da esmola.
Receber esmola não é um direito. A relação esmolar é uma relação arbitrária, sem critério público (embora possa ter um critério moral, mas a moral não é para impor universalmente), onde quem dá detém todo o poder sobre a relação, onde quem recebe só pode estar infinita e reverentemente grato a quem dá.
Dar esmola é gratuito, é uma graça, não tem lei. Isso, nos melhores casos, porque também há quem só dê a quem se dobre a certas conveniências ideológicas, a quem se incline ao credo e aos sinais da tribo, às vezes apenas a quem se incline à mão que dá. Mas nem vou por aí. Nos melhores casos, a relação esmolar é livre para o benfeitor - mas não para o recipiente. Aí está toda a diferença entre a relação esmolar e as relações que resultam dos direitos sociais numa comunidade política civilizada.
É, por isso, abominável que se escreva isto: «Há décadas que, por opções ideológicas e populismo eleitoral, os poderes públicos nacionalizam as esmolas. Metem-se entre pobres e benfeitores, tributando os segundos para ter o mérito de ajudar os primeiros.» Quando João César das Neves fala em "nacionalizar as esmolas", diz claramente ao que vem: o seu projecto é o de uma sociedade fundada na relação esmolar, no arbítrio do benfeitor, onde os direitos humanos deixaram de ser assunto para a comunidade e passaram a ser uma benção de pequenos deuses caseiros. Uma espécie de feudalismo em ponto pequeno, uma espécie de jardim infantil para os pobres e todos os que precisem da sua parte de solidariedade num dado momento. O seu projecto parece ser o de esquecer os direitos e trocá-los pela esmola liberal. Diz ele: «Agora os poderes públicos têm de encontrar o seu lugar subsidiário numa sociedade equilibrada.»
Quando a relação social no seio de uma comunidade política com regras públicas for subsidiária da esmola, estamos de novo na selva. Ou antes: estaremos ainda mais na selva.
em resumo...
... eu também acredito mais nos julgamentos da história do que na vozearia do presente.
19.2.12
Letter to the Queen.
"So in summary, Your Majesty, the failure to foresee the timing, extent and severity of the crisis and to head it off, while it had many causes, was principally a failure of the collective imagination of many bright people, both in this country and internationally, to understand the risks to the system as a whole."
Letter to the Queen of England, by the British Academy. July 2009
(colhido aqui)
ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM, Borges.
ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM
Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.
(Jorge Luís Borges, O Fazedor)
Isto é um argumento?
Se é um argumento, será sobre a existência de Deus?
(Umas horas passadas, deixo umas reflexões sobre este texto borgiano, com base numa nota que deixei noutro sítio.)
O argumento parece escrito a olhar para o argumento ontológico de Santo Anselmo para provar a existência de Deus. Digamos, em passo rápido, que o argumento ontológico tem basicamente a seguinte estrutura: concebemos Deus como a entidade mais perfeita; é mais perfeito existir do que não existir; portanto, essa entidade Deus tem a propriedade de existir; logo, Deus existe. O “argumento” de Borges copiaria o de Santo Anselmo (e outros) em pretender que Deus é necessário para garantir a existência de coisas que sabemos que têm de existir. Em Borges, um número definido de pássaros que estaria entre 2 e 9.
Isto não quer dizer que o “argumentum ornithologicum” seja uma variante do argumento de Santo Anselmo, nem para escorar o antigo argumento com uma variação confirmatória, nem para o apoucar com uma variação paródica. Embora não querendo negar que literatura e filosofia possam confluir, possam entrar nas mais criativas mestiçagens, não me parece que aqui seja verdadeiramente o caso. Ou talvez seja, mas numa forma fraca: Borges alimenta o seu texto de um argumento importante na história da filosofia. Mas, a meu ver, não está a produzir nenhuma variante da prova da existência de Deus que se diz ter começado com Santo Anselmo. Aliás, se o texto pretendesse ser tal coisa, mal iria se teimasse nele sem responder às críticas que o assolam (a principal sendo a que sustenta que a existência não é um predicado, mas uma condição para predicar, o que destrói a lógica do argumento original, apesar de repetido por filósofos como Descartes).
Entretanto, julgo que é errado tentar ler o texto de Borges como um argumento acerca da existência de Deus. Explico-me de seguida.
Desde logo, o argumento não parte de uma visão de um bando de pássaros. Começa, lembremos, assim: “Fecho os olhos e vejo”. Não começa “vejo e fecho os olhos”. Trata-se, pois, de imaginação. Não se trata de algo que aconteceu e eu não captei de maneira definida. Não está em causa, pois, a existência de pássaros em certa quantidade. Está em causa um conteúdo mental.
Não se tratará, contudo, de uma qualquer imaginação livre: trata-se de uma questão de número. Estamos, provavelmente, próximos de uma questão de filosofia da matemática, uma questão sobre a existência dos objectos matemáticos (e aparentados). Ora, cabe lembrar que os objectos matemáticos não nos deixam grande espaço para uma imaginação solta: os objectos matemáticos são regrados, de forma muito apertada, por todo um edifício conceptual que os coloca dentro de baias muito estritas. Há quem considere que o facto de os objectos matemáticos não serem livremente manipuláveis, e de podermos fazer descobertas matemáticas no universo definido pelas axiomas e teoremas já demonstrados, e de claramente estarem por descobrir as respostas a questões formuladas acerca do mundo dos objectos matemáticos, há quem considere, dizia eu, que isso mostra que existe uma realidade matemática, diferente da realidade física, mas mesmo assim com uma certa autonomia relativamente a nós (veja-se, por exemplo, a teoria dos três mundos, de Popper). Assim sendo, se alguma coisa está em causa no argumento, não são os pássaros: podiam ser bolinhos de bacalhau; o que interessa é o número, que me parece representar aqui um certo tipo de objecto conceptual (regrado). O número podia ser de pássaros ou de bolinhos de bacalhau.
Se levarmos o “argumentum ornithologicum” para este lado, sem Deus não existiriam questões capazes de ter respostas que nós não conhecemos. Consideremos a “conjectura de Goldbach”, segundo a qual todo o número par maior do que 2 é a soma de dois números primos. Não se sabe se isso é assim, nunca se conseguiu demonstrar que a conjectura esteja certa ou errada. Mas a conjectura está certa ou errada, embora nós não o saibamos (pelo menos por enquanto). Se levarmos o “argumentum ornithologicum” a sério, como argumento, Borges estaria a defender que não há questões em aberto, como esta que acabei de mencionar como exemplo. Acho difícil de defender que Borges estivesse a querer dizer isso.
Um dos nós do “argumento” reza assim: “Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível”. Isto parece querer dizer que está a discutir (a negar) a existência de um número menor que dez e maior que um, que não é nenhum dos números de 2 a 9. Suponho que aqui está a chave do texto: isto parece um argumento porque faz uma confusão entre “ser” e “saber”. Seria muito simples dizer: “Vi um número entre dez e um, mas não sei se é nove, oito, sete, seis, cinco, etc.”. Aqui entronca a minha proposta de interpretação do texto de Borges: é um texto acerca de como pode ser complicado confundir questões de existência com questões de conhecimento. É um aviso contra a mistura de ontologia com epistemologia.
Acho que um texto sobre a sinuosa confusão entre ontologia e epistemologia faria todo o sentido no quadro dos impulsos fundamentais presentes na obra do grande Borges.
18.2.12
Um divertimento político-filosófico, diz ele.
Lançamento do livro "Podemos matar um sinal de trânsito?", de Porfírio Silva (Esfera do Caos Editores), Livraria Bulhosa de Entrecampos, 9 de Fevereiro de 2012. Apresentação pelo Professor Viriato Soromenho Marques (excertos).
17.2.12
as próximas eleições gregas.
Um dos aspectos notáveis do interesse blogosférico pelo momento que a Grécia atravessa tem a ver com as previsões acerca dos resultados das próximas eleições. Já aqui veio alguém, em caixa de comentários, comprazer-se porque os partidos anti-troika devem vir a representar uma fatia importante do próximo parlamento grego. Outros estão excitados porque os socialistas, que pegaram numa crise extraordinária e irresponsavelmente agravada pela direita, sairão provavelmente em frangalhos das próximas legislativas. Há, portanto, muita gente a esfregar as mãos de contentamento com os resultados esperados das próximas eleições.
Será que ninguém pensa quão pornográfica é essa excitação? Qualquer que seja o resultado das próximas eleições gregas, ele será o resultado de um país despedaçado pela acção dos seus "amigos" e "aliados". Qualquer que seja o resultado das próximas eleições gregas, tal como a Grécia de hoje, trata-se de um produto de uma guerra conduzida por meios não tradicionais. Uma guerra de egoísmos e esquecimentos, alguns dos quais já foram lembrados pelo presidente da república helénica. As eleições serão um artefacto da estupidez da Europa, principalmente da Europa rica que gosta de quem lhes compre os seus produtos, mas não se importa de esmagar uma democracia.
(Esquecida, essa Europa rica, do mal que a História testemunha que já nos causou a nós todos. Esquecida, essa Europa rica, alemã neste caso, de como outros europeus foram pacientes e simpáticos durante décadas com as dívidas que eles tinham para pagar na sequência da guerra. Aliás, parece que à Grécia a Alemanha nunca pagou, mesmo).
O regozijo de alguns com o previsível resultado de umas eleições que serão produto de uma agressão externa, de uma verdadeira guerra civil europeia, é pornográfico. É que essas eleições serão tudo menos livres. Essas eleições, provavelmente, vão ensinar-nos muito mais do que estamos à espera - mas que se tenha chegado a elas, nestas condições, é, em si mesmo, um facto preocupante. Que se regozijem os que esperam que essas eleições de guerra confortem os seus aliados espirituais, diz muito do estado a que chegou a política neste continente.
Eu, por mim, numa coisa estou com os mais conservadores entre nós: não desejo que queimemos as nossas cidades para que alguém ganhe eleições com isso. Mas há muito por aí quem afague as suas impotências revolucionárias com o calor das fogueiras gregas - cujos frutos esperam se colham maduros nas urnas. Em cinzas, como convém às urnas.
C.A.M. ON.
Inauguraram ontem - e abrem ao público hoje - três exposições três no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian: de Beatriz Milhazes, Quatro estações; de Rosângela Rennó, Frutos estranhos; do colectivo de artistas A kills B (fundado em 2007 po Hugo Canoilas e João Ferro Martins), A mata B.
Deixo um piscar de olhos de Rosângela Rennó:
Deus lhe perdoe.
Diz o novo cardeal da Igreja Católica, Manuel Monteiro de Castro: «A mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos.»
O senhor cardeal deve imaginar que todos os homens são imbecis. Só isso pode justificar que reserve às mulheres o principal quinhão na educação dos filhos. Mas o senhor cardeal não devia julgar todos os homens por si próprio: acredito que ele ache que os seus filhos só podem ser educados por uma mulher, nunca por ele. Não deve é pensar que todos somos como ele.
Vade retro, Satanás, que andas a baralhar os neurónios destes príncipes da Igreja.
impedimentos.
Se é verdade o que se diz "por aí", o PR mentiu, ou mandou mentir, quando deu a desculpa de um "impedimento" para não ir ontem à António Arroio. O homem que temos no topo do Estado, além de estar fechado na sua pequenez, seria, então, também um mentiroso. Um pequeno mentiroso, aliás. Temos de rever a teoria política, para encaixar "isto" na razão de Estado. De outro modo, é demasiado deprimente. Mesmo para mim, que nunca gostei dele, este filme é demasiado mau. Safa!
direito de defesa.
Suspeito de triplo homicídio em Beja morreu enforcado com lençóis na prisão.
O lugar supostamente mais vigiado do mundo, estar dentro de uma cela, não é suficientemente vigiado: um homem chega a uma cela e nessa mesma noite consegue matar-se sem que nada nem ninguém se lhe oponha. Já alguém da polícia tinha alertado para essa possibilidade, mas não foi precisa mais de uma noite para cansar a vigilância e afrouxar o cuidado. Talvez alguns pensem que um homicida não merece tais cuidados.
Estes casos mostram sempre os limites da nossa sofisticação. Já tinha sido aflorado, a propósito deste mesmo homem, o problema da sua defesa. Não quero ajuizar das razões da advogada que pediu dispensa do papel de defensora, papel para o qual tinha sido nomeada oficiosamente. Não quero ajuizar por não conhecer (nem pretender conhecer) as razões verdadeiras do pedido de dispensa. Não posso, contudo, impedir-me de comentar, genericamente, a questão da defesa de qualquer pessoa, por mais hediondo que seja o crime que tenha cometido.
Já descontando o facto de que a defesa não tem necessariamente de arguir a inocência, para algumas pessoas parece difícil de entender que qualquer pessoa merece defesa. Defender é fazer valer o ponto de vista do arguido; é mostrar que o mundo não tem só um lado, apesar de ser redondo; é explicitar, num contexto argumentativo, a palavra de uma das partes; é iluminar aqueles recantos do mundo que mais ninguém visitou e têm por vezes tudo a ver com a desordem desencadeada; é manter a rugosidade da realidade, mesmo quando a violência é tanta que só vemos uma planície de maldade; é manter a pessoa como pessoa, não a reduzir à bestialidade, mesmo quando tenha cometido actos bestiais. E, claro, é fazer valer a possibilidade de que as coisas não tenham sido o que parecem ser, mesmo em caso de confissão, mesmo em caso de flagrante delito. Por isso, todos merecem ser defendidos. Defender o que parece, aos olhos do povo, indefensável - é prestar serviço à justiça. Mas é um grau de sofisticação das nossas instituições que talvez nem todos os seus servidores compreendam facilmente. Que talvez nem todos os seus servidores suportem.
Neste caso, já nada disto conta, claro.
16.2.12
o que as pobres máquinas vêem.
Um vídeo e um título roubados a João Pinto e Castro.
Mas por uma boa razão: acrescento abaixo um comentário, citando um interessante filósofo.
Comenário:
N.R. Hanson, no clássico Patterns of Discovery (1965): «Seeing is an experience. A retinal reaction is only a physical state — a photochemical excitation. Physiologists have not always appreciated the differences between experiences and physical states. People, not their eyes, see. Cameras, and eye-balls, are blind.»
Já tinha falado disto em tempos.
o P.R. está escondido em parte incerta?
Presidente cancela visita a escola de Lisboa e dá desculpa esfarrapada para não comparecer.
Decretaram o recolher obrigatório para o Palácio de Belém e não avisaram ninguém?!
Ou simplesmente Cavaco Silva está em período de reflexão sobre os seus últimos actos e palavras?
Um mistério... ou nem tanto.
Adenda, pescada na rede.
A 17 de Janeiro de 2011, Cavaco Silva declarou: "Considero importante que crianças, jovens, pais e professores venham para a rua para defender a sua escola. É um sinal de vitalidade da nossa sociedade civil". (notícia aqui: Cavaco Silva incentiva alunos do privado a manifestarem-se)
Agora parece ter mudado de opinião. Pode ser do vento. Faz um vento dos diabos nesta terra. E as florinhas de bom tempo têm dificuldade em manter-se direitas quando o vento sopra. Talvez especialmente quando se sentem mal pagas.
15.2.12
caro deputado demo-cristão João Almeida...
... tenho aqui mais uns exemplares para o seu alfobre de ideias brilhantes acerca do emagrecimento da função pública (o mesmo de onde saiu esta: CDS aconselha funcionários públicos insatisfeitos a rescindir).
Se vale tudo a empurrar funcionários públicos pela porta fora, no espírito "quem não aguenta a porrada, rescinde", há outras modalidades que podiam ser tentadas. Por exemplo: obrigar os funcionários a almoçar em pelota na cantina do serviço todos os sábados (pressupondo que passarão a trabalhar ao sábado); instituir o princípio de que a assistência a reuniões implica permanecer com uma pedra de 50 quilos equilibrada na cabeça durante qualquer intervenção de pessoa com grau hierárquico superior; proibir o acesso a pisos superiores por elevador, ou mesmo por escada, devendo usar-se a parede exterior do edifício para o efeito (sendo necessário usar cordas para apoiar a escalada, as mesmas devem ser fornecidos pelo próprio alpinista). Se estas medidas de incentivo à rescisão não forem suficientemente persuasivas, pode tentar-se a via de pagar o vencimento mensal em géneros (em milho ou cevada, por exemplo).
Creio, senhor deputado, que estas sugestões vêm perfeitamente na linha da sua intervenção acerca dos benefícios da migração interna dos funcionários públicos. São, além do mais, perfeitamente conformes ao cuidado que a democracia cristã sempre coloca na protecção da família.
no reino da Dinamarca.
No passado fim-de-semana, na Dinamarca, organizações dos parceiros sociais, relevantes para uns 250.000 trabalhadores em cerca de 6.000 empresas industriais, chegaram a acordo para um novo acordo colectivo para 2012 e 2013. Está em causa um aumento modesto do salário mínimo (1,27% em 2012 e 1,26% em 2013), que poderá traduzir-se numa queda efectiva dos salários reais em mais de um ponto percentual. A contrapartida foi um acesso acrescido dos trabalhadores a formação profissional. Normalmente, o acordo na indústria influencia os subsequentes acordos noutros sectores. Contudo, o sector público continua sem acordo.
Porque será que os trabalhadores aceitaram este acordo? (Na Dinamarca, a taxa de sindicalização ronda os 70%).
Pressionados pela perda de competitividade do país (nomeadamente face à Alemanha), talvez tenham alguma esperança nos planos do governo para consolidar as finanças públicas até 2013 (a partir de um défice actual de 4%). Espantados? É que desse plano consta de forma proeminente o projecto de um acordo tripartido para aumentar o emprego. O Governo quer que o país alcance um aumento líquido da oferta de emprego em cerca de 20.000 trabalhadores até 2020, o que, calcula-se, daria às finanças públicas uma entrada suplementar de 500 milhões de euros anualmente - dinheiro esse que permitiria sustentar no tempo fortes políticas activas de emprego.
Os empregadores não queriam começar as conversações para este grande acordo antes de concluírem o acordo colectivo bipartido, que agora se alcançou.
Há acordos que valem a pena, não há?
aquele querido tabu.
"Tabu", de Miguel Gomes, é considerado o filme sensação no Festival de Berlim.
"Aquele Querido Mês de Agosto", filme anterior do mesmo realizador, é daquelas obras cujo fascínio sobre mim nunca consegui explicar bem. É tanta coisa que lá vem dentro, embrulhada numa aparência de facilidade e de "corriqueiro", misturando ironia e ternura, daquelas pedras rolando pela encosta que podem escorrer para a tragédia ou para a salvação cósmica - que não sabemos por onde começar a pensar tal objecto. "Aquele Querido Mês de Agosto", sendo um filme para sentir - um filme que nos puxa para o seu universo e nos mistura nele - é também um filme que obriga a pensar: quanto mais não seja, obriga a pensar se queremos "fazer uma teoria" do que vemos.
Tudo isto me deixa em pulgas para ver "Tabu". Não por ele ter ou deixar de ter o Urso de Ouro no Festival de Berlim (seria bom que tivesse, mas se calhar não é fácil), mas porque tenho ganas de ver mais filmes de quem fez "Aquele Querido Mês de Agosto". E, claro, se o realizador for reconhecido a outro nível, se calhar tenho mais possibilidades de voltar a ver no futuro filmes "daqueles".
14.2.12
Socialistas enviam "troika alternativa" à Grécia.
O Grupo dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu vai enviar uma "Troika alternativa" à Grécia, para incentivar um caminho de crescimento e emprego, em vez de austeridade, porque esta via não trará os benefícios apregoados pela "troika oficial". A portuguesa Elisa Ferreira integrará a missão.
Mais aqui.
All Watched Over By Machines Of Loving Grace.
All Watched Over By Machines Of Loving Grace
de Richard Brautigan (c. 1967)
I like to think (and
the sooner the better!)
of a cybernetic meadow
where mammals and computers
live together in mutually
programming harmony
like pure water
touching clear sky.
I like to think
(right now, please!)
of a cybernetic forest
filled with pines and electronics
where deer stroll peacefully
past computers
as if they were flowers
with spinning blossoms.
I like to think
(it has to be!)
of a cybernetic ecology
where we are free of our labors
and joined back to nature,
returned to our mammal
brothers and sisters,
and all watched over
by machines of loving grace.
(Vídeo: Richard Brautigan lendo o seu poema. Tirado da série documental de Adam Curtis, com o mesmo título.)
nem as linhas de torres nos safam.
O sujeito da frase, ou oração ou declaração ou o que seja, não temos de ser nós. Podem ser os nossos por nós. Ou os outros por nós. Mas o céu acabará por nos cair nas cabeças se não o segurarmos. Nem que seja com as cabeças, com as inteligências, ou com as mãos. A inteligência das mãos.
by Jasper Johns
13.2.12
figuras políticas com crédito.
Queremos figuras políticas com crédito, pela sua inteligência, pela sua verticalidade, pela capacidade de pensar de forma independente, por terem princípios, por serem bem formadas e terem educação, por terem competência técnica em algum domínio relevante.
Queremos, não queremos?
E, para quê?
Para, na primeira oportunidade, gastarem o crédito a proteger o chefe, sentando-se em cimas das granadas. Ou, mais grave, abafando o escrutínio.
Se os políticos com crédito só servem para gastar o crédito na primeira oportunidade, estamos tramados.
Como é o caso neste caso: Assolução Esteves.
12.2.12
milagreiros.
Arménio Carlos reclama maior manifestação em 30 anos.
Andam demasiados líderes de alguma coisa a tentar atirar para debaixo do tapete o passado recente das suas organizações. Arménio Carlos chega e reclama logo, sem qualquer suporte, que presidiu ao maior estouro cósmico desde a invenção do isqueiro. Haja paciência, que precisamos da CGTP com os parafusos todos no sítio (e os pés na terra, evidentemente).
11.2.12
culto da personalidade.
Queremos consultar alguma coisa na página do Ministério das Finanças. No nosso browser digitamos www.min-financas.pt.
Precisamos de alguma informação sobre educação que supomos esteja disponível na página web do respectivo ministério. Digitamos www.min-edu.pt.
No primeiro caso vamos dar ao Ministério das Finanças em linha, no segundo caso vamos dar ao virtual Ministério da Educação, certo?
Não!
Em qualquer caso vamos dar ao Portal do Governo (www.portugal.gov.pt), onde somos acolhidos com a foto de Passos Coelho em tamanho comício ou missa de beatificação. O Estado é o PM!
Isto não é um absurdo; isto é, isso sim, um inaceitável culto da personalidade. Tenho o direito de aceder à informação e aos serviços em linha dos ministérios sem ter primeiro de deparar com (para depois contornar) um cartaz de publicidade a um homem, seja ele o PM ou o menino Jesus.
Big brother is watching you... ou, pelo menos, somos todos nós obrigados a contemplar o "grande chefe"... Que absurdo.
(Fui alertado para isto lendo Luís Miguel Ferreira no FB)
10.2.12
a entrevista de Seguro.
Só hoje pude ver a entrevista que António José Seguro concedeu a noite passada à RTP. A importância do PS para a vida política nacional sugere que ela seja aqui comentada.
O pior da entrevista foi mesmo a entrevistadora. Sandra Sousa mostrou-se demasiado interessada em si própria e nas suas próprias opiniões: falou demais, interrompeu demais, parecia pouco interessada em ouvir AJS (o que o entrevistado dizia parecia não ter qualquer efeito no percurso da entrevistadora), exibiu (implicitamente) conceitos estranhos acerca do funcionamento de uma democracia (parece julgar que a oposição só serve para dizer ámen ao governo). Adiante.
Para o seu estilo e propósito, AJS saiu-se bem. Beneficiou da notícia do dia com a conversa privada entre o ministro Gaspar e o ministro Schäubel, usando-a para mostrar que o governo tem duas caras em matérias fundamentais para a navegação corrente deste barco. Exibiu a sua pose de líder responsável da oposição, manteve a sua estudada serenidade (mesmo face à excitação da entrevistadora), assinalou algumas das incongruências mais gritantes da governação actual, deu alguns exemplos do que considera ser a sua via doce para alternativa, aplicou sem falhas a técnica de comunicação que consiste em martelar poucas teclas para essas se ouvirem bem. Esteve muito bem na frente europeia, explorando a carta de Durão Barroso a PPC, e a falta de resposta do PM, para mostrar como este governo descura questões essenciais (neste caso, o desemprego juvenil); mostrando iniciativa, ao mencionar os contactos com o presidente do Parlamento Europeu e outros líderes socialistas (tanto ao defender uma plataforma europeia de resposta à crise, como ao exibir a sua familiaridade com camaradas tão ilustres, técnica velha mas sempre útil). Nesta fase do campeonato, em que o governo é recente e o SG do PS tem apenas meses, esta pose serve perfeitamente a afirmação do líder do PS: convém que os foguetes não estalem quando ainda estão próximos da mão. Explica-se, por aí, que nenhum tema tenha sido adequadamente aprofundado, ficando o chavão do "crescimento e emprego" um tanto vago, a precisar de mais sumo. Mas o sumo pode sempre ser acrescentado no que segue.
Contudo, a entrevista confirma, mais do que revela, certas dificuldades da linha política de AJS. O actual SG do PS continua a ter um problema com a história recente do seu partido, parecendo que a mera menção do nome de José Sócrates lhe causa aftas na boca. Isso é injusto com o anterior ciclo político, facilita a tarefa ideológica do governo em exercício e aliena uma parte do PS e do seu eleitorado, tendo ainda a desvantagem de nos trazer à memória o cinismo passado de AJS face à liderança de Sócrates. Mas, enfim, isso são contas partidárias que não interessam a toda a gente.
Mais grave é que AJS continua a justificar-se um tanto ligeiramente com o Memorando de Entendimento. O SG do PS parece nem sempre distinguir bem o que resulta do Memorando e o que resulta do excesso de zelo deste governo, fazendo, por essa via, um enorme favor político a PPC. Além disso, AJS parece esquecido de que o Memorando já não é o que era, já foi na prática revisto por este governo (leia-se este texto para perceber um aspecto desta minha afirmação). Alimentar a confusão entre o que este governo faz e o que estava originalmente no Memorando, fazendo disso a trave mestra da sua justificação como oposição, é grave. E fundamentalmente errado.
Por outro lado, no tocante ao pluralismo dentro das suas próprias hostes, AJS alia uma retórica de abertura com perturbantes imprecisões. Mostrou isso quando aceitou sem pestanejar o "argumento" da jornalista sobre a incoerência de pedir a fiscalização da constitucionalidade do Orçamento de Estado e o ter votado favoravelmente, quando o pedido de fiscalização não é sobre o OE, mas sobre algumas das suas normas (poucas, embora importantes). Um líder de um colectivo não serve apenas para defender o seu ponto de vista, deve servir também para defender a saúde do colectivo - e, num partido político democrático, o pluralismo (não apenas a pluralidade) é um traço essencial dessa saúde.
Em resumo: esta parece ter sido a entrevista que AJS queria dar. Esteve bem por aí. Mas ela revela algumas das debilidades actuais do PS, partido onde, receio, esteja a fermentar uma divisão interna que em nada serve os interesses do país, um país que não pode ser abandonado a estes governantes ideológicos e radicais - pelo que importa que o PS não se desgaste no que não interessa e se foque no país, com todas as suas forças e não apenas com os fiéis de quem dirige.
a história, simplesmente.
Às vezes temos, simplesmente, de repetir, o que os outros dizem.
A Moody's, fundada em 1909, não viu chegar a crise bolsista de 1929. Admoestada pelo Tesouro americano por essa falta de atenção, decidiu mostrar serviço e deu nota negativa à Grécia, em 1931. A moeda nacional (dracma) desfez-se, os capitais fugiram, as taxas de juros subiram em flecha, o povo, com a corda na garganta, saiu à rua, o Governo de Elefthérios Venizelos (nada a ver com o Venizelos, atual ministro das Finanças) caiu, a República, também, o país tornou-se ingovernável e, em 1936, o general Metaxas fechou o Parlamento e declarou um Estado fascista. Perante a sua linda obra, a Moody's declarou, nesse ano, que ia deixar de dar nota às dívidas públicas. Mais tarde voltou a dar, mas eu hoje só vim aqui para dizer que nem sempre as tragédias se repetem em farsa, como dizia o outro. Às vezes, repetem-se simplesmente.
Aqui.
desgraças anunciadas.
Reformas Ortográficas, claro.
Teixeira de Pascoaes, in A Águia, citado por Francisco Álvaro Gomes, O Acordo Ortográfico, Porto, Edições Flumen e Porto Editora, 2008, p. 10:
Na palavra lagryma, (…) a forma da y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.
Fernando Pessoa, Descobrimento, in Livro do Desassossego:
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Daqui.
9.2.12
meandros da incerteza.
«No filme, de Manoel de Oliveira, "O Princípio da Incerteza" (2002), há uma cena de casamento. Um casamento católico. Naturalmente, na cena há um actor que representa o papel de um padre, o oficiante nessa cerimónia, e outros que representam os noivos, outros ainda a assistência. Ninguém fica mais ou menos casado por ter participado como actor nessa cena. Contudo, um dos actores que representam essa cena é um padre. Mais precisamente, quem faz de padre nessa cena é realmente um padre, na vida real, fora do filme. Essa pessoa, que aí faz de padre, poderia casar aquelas pessoas noutras circunstâncias - mas do que se representa num filme não decorrem consequências desse tipo.» Concorda-se, não é? Mas a análise deste caso mostra que ele entra em conflito com certas teorias acerca da acção social.
Clint à presidência. Ou não?
No intervalo da Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, passou um anúncio da Chrysler, com Clint Eastwood a dar a cara e a voz. Um belo filme de publicidade. Um belo filme, ponto. Um belo texto. Positivo. É sobre estar a meio do jogo. E, diz ele, também a América está entre a primeira e a segunda metade do jogo. Isto foi lido como propaganda à reeleição de Obama. (Transcrevo o texto abaixo.) Para lá das minhas simpatias ou antipatias, é um episódio que mostra bem a insuportável mistura entre política e dinheiro, entre Estado e empresas, nos States. Uma pena. Talvez quisesse dizer, antes, uma vergonha. Não por ser a favor de Obama: estas são as jogadas que se fazem com aquelas regras. Uma pena - por ir tão funda a mistura entre dinheiro e opinião numa comunidade política. É uma espécie de corrupção. Não digo corrupção no sentido de meter dinheiro ao bolso; digo-o no sentido de estarmos no mercado. No mercado do voto. De estarmos, os eleitores-cidadãos, no mercado do voto.
Texto do anúncio:
It’s halftime. Both teams are in their locker room discussing what they can do to win this game in the second half.
It’s halftime in America, too. People are out of work and they’re hurting. And they’re all wondering what they’re going to do to make a comeback. And we’re all scared, because this isn’t a game.
The people of Detroit know a little something about this. They almost lost everything. But we all pulled together, now Motor City is fighting again.
I’ve seen a lot of tough eras, a lot of downturns in my life. And, times when we didn’t understand each other. It seems like we’ve lost our heart at times. When the fog of division, discord, and blame made it hard to see what lies ahead.
But after those trials, we all rallied around what was right, and acted as one. Because that’s what we do. We find a way through tough times, and if we can’t find a way, then we’ll make one.
All that matters now is what’s ahead. How do we come from behind? How do we come together? And, how do we win?
Detroit’s showing us it can be done. And, what’s true about them is true about all of us.
This country can’t be knocked out with one punch. We get right back up again and when we do the world is going to hear the roar of our engines. Yeah, it’s halftime America. And, our second half is about to begin.