3.3.22

A Ucrânia e nós

 
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 Se, é verdade, nada do que se passa no mundo nos é estranho, não podemos ficar indiferentes à guerra e à paz, o elemento do que há de mais estreme na vida que nos é comum como seres humanos. É, pois, um dever falar do que se passa na Ucrânia, o que aqui farei em algumas notas mais ou menos soltas.

1. Sem rebuços: condenamos o governo russo de Putin pela invasão da Ucrânia, pelo desrespeito pela legalidade internacional (por muito frágil ou desequilibrada que ela seja), pelo espoletar de mais uma guerra (com o cortejo de sofrimento que ela encarna para tantas pessoas), por trazer mais umas décadas de guerra fria à vida futura da Europa. Condenamos a visão imperialista de Putin, a deturpação histórica que a justifica ideologicamente, a falta de vergonha com que afirma direitos especiais sobre países que considera no seu “quintal” geoestratégico. Nisto, não duvidamos um momento; não aceitamos o truque de invocar outras paragens e outros momentos históricos para desculpar ou disfarçar o que está em causa agora e num terreno concreto, com gente concreta dentro (e fora, agora mais espalhada pelo mundo, expulsa pela guerra). Condenamos, sem hesitação, a invasão russa da Ucrânia; não lhe encontramos desculpas; não temos nenhum motivo, racional ou emocional, para tentar esconder o sol com a peneira e poupar nas palavras desta condenação.

 

2. Não tenho nenhuma simpatia pelo governo da Rússia, liderado por um ditador reacionário que amalgama uma certa história da União Soviética na sua visão neoczarista do mundo, que despreza os direitos humanos básicos do seu próprio povo, que trabalha incessantemente para desestabilizar as democracias ocidentais, nomeadamente por via do apoio material aos partidos protofascistas que por aí andam.

 

3. Face a esta situação, de guerra efetiva e de abertura de um novo período de guerra fria, temos de ser claros em todos os nossos valores, e não apenas em alguns. E, desde logo, temos de ser capazes de os reafirmar publicamente.

 

4. A única maneira de construir uma saída para esta crise é encontrar um quadro que dê garantias de segurança razoáveis a todas as partes, incluindo à Rússia. A Ucrânia tem direito à sua soberania, às suas fronteiras, à sua integridade – e a Rússia tem direito a não ter a sua capital a dois minutos de distância de mísseis balísticos de potências que não considera amigas, tal como as minorias russas têm direito a não serem alvo de discriminação sistemática nos países onde foram implantadas pela história. Ninguém pode obrigar a OTAN a formalizar uma renúncia a abrir as portas a novos membros, mas tem de ser encontrada uma solução que considere a segurança de cada país da região como um problema coletivo de todos e não um problema que cada um tenta resolver à sua maneira. Só há segurança de cada país se houver segurança coletiva, segurança do conjunto, segurança de todos. A segurança coletiva é condição sine qua non para a paz. Ninguém espere ter paz duradoura se a Rússia se sentir permanentemente ameaçada – e, nesse ponto, Putin tem, claramente, o apoio do povo russo.

 

5. A Europa, e a União Europeia, tem de encontrar a sua voz própria neste mundo. Mais uma vez, os Estados Unidos não são substantivamente afetados por esta guerra e quem paga a fatura é a Europa. É na Europa que se farão sentir nos próximos anos os impactos económicos mais nítidos desta guerra, é a Europa que vai suportar o peso civilizacional de uma nova época de guerra fria, é na Europa que mais mudanças políticas bruscas vão afetar equilíbrios de décadas (como representa bem o novo rearmamento da Alemanha, com ressonâncias históricas terríveis). Temos de estar mais cientes do que nunca dos nossos valores fundamentais: na cena política da Ucrânia quase não há forças de esquerda, a escolha é praticamente entre mais à direita e menos à direita, mas isso não nos pode conduzir à paranoia de considerar que são todos nazis e precisamos de saber respeitar esse quadro político, sem sermos, contudo, ingénuos; mas, ao mesmo tempo, precisamos de ter bem claro que não há adesões instantâneas à União Europeia, que há critérios a cumprir para fazer parte da Europa que existe, seja no que toca à solidez das instituições e a um efetivo Estado de direito, quer no que toca às “liberdades económicas” – e que, obviamente, nenhum país pode tentar passar ao lado dessas exigências se quiser ser membro da União. E os líderes europeus não estão autorizados a entregar no altar da demagogia qualquer cedência nesses princípios.

 

6. Este momento, pela sua gravidade, não deveria autorizar nenhum facilitismo, nenhuma cedência ao monocromatismo, nenhuma beliscadura no respeito pela autonomia cívica dos nossos cidadãos e da sua inteligência. Nunca atacar a liberdade em nome da liberdade. As discriminações contra cidadãos russos são inadmissíveis, ainda para mais quando se discrimina só por serem cidadãos russos, sem qualquer culpa concreta formada e comprovada. Despedir um artista porque, supostamente, é amigo de Putin? Impedir equipas russas de entrar em competições desportivas? Estamos a tornar esta triste realidade numa guerra de massa contra todas as pessoas com nacionalidade russa? Proibir órgãos de comunicação russos porque são veículos de propaganda? Mas quais órgãos de informação é que, numa situação destas, podemos ter a certeza de que são absolutamente isentos de enviesamento? Mas, então, já não acreditamos na inteligência dos nossos cidadãos para avaliarem a informação que recebem, precisamos de proibir que nos cheguem os sinais dos órgãos de comunicação do invasor? É preciso, se somos democratas, termos mais confiança na democracia e recorrermos menos a medidas de repressão das ideias – mesmo que as ideias sejam más, porque a liberdade implica isso mesmo: a liberdade de se defenderem ideias horríveis e ser no campo do escrutínio livre que elas têm de ser derrotadas, não no campo das medidas restritivas mais ou menos administrativas e mal escrutinadas política e juridicamente falando. Cuidado com a ligeireza com que nos afundamos na guerra fria.

 

7. Há, também no campo da política interna, consequências desastrosas desta situação. O PCP, um partido que continua a fazer falta à democracia portuguesa, continua a exibir uma das suas mais graves incapacidades políticas, que é precisamente uma política internacional cega pelo manto omnipotente do seu antiamericanismo primário. Claro que os EUA fizeram muitos disparates em política internacional ao longo de toda a sua história, desde o Chile ao Iraque, passando por muitíssimos outros cenários de banditismo internacional. Mas os EUA mudaram, apesar de tudo. E as culpas passadas dos EUA não deveriam ser a única linha de raciocínio político do PCP. Infelizmente, nada podemos fazer para salvar o PCP dos seus fantasmas. E nem é certo que o próprio PCP possa.

 
 
 
Porfírio Silva, 3 de Março de 2022
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