13.2.22

Em resposta à senhora num recital que perguntou qual é o trabalho de um poeta

Este é um poema recente do poeta polaco Jacek Dehnel e aparece traduzido para inglês, no número 2/2022 de The New York Review of Books, por Ann Frenkel e Gwido Zlatkes. A minha versão em português é certamente imperfeita, por incompetência minha, mas tive uma grande vontade de vos deixar aqui este poema. 
 
 ***
 


 

O trabalho de um poeta é sentar-se de manhã a uma secretária

e peneirar as notícias que crepitam com a vida de outras pessoas.

 

O trabalho de um poeta é imaginar entrar nessas vidas

como vestir a roupa de outra pessoa.

As roupas apertam. As roupas são beliscadas por comida, são beliscadas por bebida, esperam eles.

 

O trabalho de um poeta é imaginar uma linha de controlo

com árvores de folha caduca ou coníferas relva pisada um rosto atrás de uma folha de bardana

alguns olhos algumas fendas no corpo da fronteira um poeta deve imaginar o som

de sapatos molhados e a sensação de meias molhadas, tanto no pé esquerdo como no pé direito gelados.

 

O trabalho de um poeta é examinar palavras e frases desconfiadamente e os poetas perguntam a si próprios

porque a quem mais podem perguntar o que significa o corpo de uma mulher com feições não eslavas

um poeta deve experimentar estas palavras e perguntar-se se o próprio corpo do poeta fosse encontrado

perto da linha de controlo se o relatório manuscrito descreveria as feições do poeta como eslavas ou não eslavas.

 

O trabalho de um poeta é experimentar estas palavras como o sapatinho na cansada Cinderela

sobre pessoas que o poeta ama e cujas feições são por vezes completamente eslavas

ou um pouco não-eslavas ou não-eslavas de todo; um poeta deve experimentar estas palavras

sobre a própria mãe do poeta que também tem certas feições um poeta deve experimentar estas palavras no seu cabelo

olhos nariz contra aquele corpo morto com o seu olhar morto experimentá-las contra o seu corpo vivo e olhar vivo

e isto faz com que o poeta fique frio à secretária.

 

O trabalho de um poeta é discernir nas palavras traços visíveis de um cadáver a ser arrastado da Polónia

para a Bielorrússia não apenas os contornos de um mapa mas também galhos partidos rasgadas

folhas de relva um rasto de caracol prateado junto a uma sola as suas vísceras manchadas

sobre uma folha castanha; um poeta deve visualizar um besouro que momentaneamente parou

nas suas seis pernas vendo um cadáver a ser arrastado da Polónia para a Bielorrússia e depois virado

de costas balançando ligeiramente; um poeta deve sentir e cheirar a casca húmida do prado a apodrecer

e o toque do metal porque

 

o trabalho de um poeta é ler que ao lado do corpo estavam três crianças entre os 7

e os 15 anos de idade bem como um homem e uma mulher mais velha e um poeta não pode parar

de ler mas deve continuar a tropeçar nestas linhas húmidas e lamacentas

e um poeta deve tentar ter entre 7 e 15 anos de idade e todas as idades intermédias

naquele lugar na floresta aquele lugar de escuridão aquele lugar de humidade aquele lugar

onde o cadáver foi arrastado um cadáver que é o cadáver da própria mãe do poeta

sobre quem é difícil dizer se as suas feições são eslavas ou não-eslavas um poeta deve tentar ter sete

anos de idade permanecendo ao lado do corpo da mãe como aparentava então um poeta deve tentar isto.

 

O trabalho de um poeta não pode parar aqui por isso um poeta lê que

foram forçados a caminhar a pé até à fronteira e depois a atravessar a fronteira polaco-

-bielorrussa sob a mira de uma arma que é o metal; um poeta deve pensar em como

um cadáver é arrastado é puxado pelas axilas ou pelos tornozelos é puxado

com luvas ou com as mãos nuas as mãos perdem a aderência juntamente com os sapatos molhados e enlameados

naquele lugar de escuridão na floresta; um poeta deve pensar se os sapatos as amoras silvestres

a bardana os olhos das crianças entre os 7 e 15 anos os olhos

do homem e da mulher mais velha estão no caminho se o coldre ou o walkie-talkie pressiona

nas costelas se se sente algum desconforto se as pinças do uniforme estão sujas ou desonradas.

 

Tudo isto é trabalho de um poeta e dura o dia todo e depois o poeta vai dormir e

sonha em escoltar crianças entre os 7 e 15 anos de idade na mira de uma arma e escoltar

um homem e uma mulher mais velha na ponta de uma arma e sonha em experimentar roupas contaminadas e

sonha em experimentar um uniforme e experimentar aquela coisa fria que nos aterroriza na cama

e sonha em regressar a casa depois de uma noite de trabalho num carro com um cão daqueles que abanam a cabeça

no tabliê e tirar o seu uniforme apertado comendo e bebendo e observando as crianças

que no sonho são os seus filhos são os filhos do uniforme e têm entre 7

e 15 anos de idade e ele observa a sua esposa com as suas feições eslavas pelas quais

o seu corpo pode ser arrastado e os tornozelos pelos quais o seu corpo pode ser arrastado com os sapatos a escorregar

e o poeta nunca acorda daquele frio que enlameia aqueles bosques.

 


(Poema do poeta polaco Jacek Dehnel, aparece traduzido para inglês, no número 2/2022 de The New York Review of Books, por Ann Frenkel e Gwido Zlatkes. A versão em português, a partir do inglês, é certamente imperfeita, por incompetência minha.).