27.9.21

Autárquicas 2021: lições e ilusões

 

Depois de uma noite eleitoral mais longa do que aquilo a que temos estado habituados nos últimos anos, proponho-me deixar aqui alguns elementos de leitura das eleições autárquicas de ontem, em seis apontamentos, com os quais tento olhar tanto para a direita como para a esquerda.


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1. Lisboa enche o olho – e isso não é estranho: também nós gostávamos de ter ganho Lisboa. Não obstante, as eleições autárquicas são 308 eleições. E é indiscutível que, hoje, o PS continua, de longe, a ser o maior partido autárquico: a presidir a muito mais câmaras e a muito mais freguesias do que qualquer outro partido. O PS continua a liderar cerca de mais 40 câmaras do que o PSD. Nas autárquicas de 2017, o PS teve um resultado histórico, sem precedentes – sendo, por isso, praticamente certo que teria de perder algumas posições desta vez. No entanto, face às 159 câmaras que ganhou em 2017 (161, contando com as coligações), o balanço de perdas e ganhos de ontem significa que perdemos umas 10 câmaras, em todo o país (das quais, 5 nos Açores, por arrastamento da dinâmica da recente mudança governativa regional). Dos mais de 2050 mandatos que estavam em jogo nas câmaras, o PS perdeu um pouco mais de 60. Não há como fazer com que isto deixe de ser uma grande vitória nacional dos autarcas do PS.

 

2. Aquilo que a direita tradicional (PSD e CDS) ganhou foi, praticamente apenas, o efeito das coligações: aproveitaram melhor os votos que já tinham, não avançaram praticamente nada de substantivo. Em Lisboa, a diferença entre Medina e Moedas não chega a 1% dos votos. Como de costume, a Direita é, na aritmética eleitoral, mais pragmática – e a Esquerda perde sempre com isso, porque tem excessivos pruridos. Mesmo assim, o PSD procura colocar todos os ganhos no seu cesto, mesmo quando isso é abusivo – por exemplo, Coimbra não é uma vitória da direita tradicional, mas antes um “(quase) todos contra o PS”, abrangendo um daqueles fenómenos de “independentes” que Rui Rio parece abominar quando não lhe dá jeito. (As aspas em “independentes” seriam de Rio.)

 

3. A ilusão de que ganhar a Câmara de Lisboa é ganhar o governo do país é uma ilusão com antecedentes – mas é uma ilusão. Caso de escola: Jorge Sampaio ganhou Lisboa em 1989, com 49% dos votos e uma maioria absoluta de vereadores para a Coligação Por Lisboa. Cavaco Silva era primeiro-ministro e primeiro-ministro continuou durante mais 6 anos. Carlos Moedas tem 34% dos votos e fica em minoria na Câmara. Pode ser útil à Direita alimentar a ilusão, mas a realidade não autoriza excessiva extrapolação.

 

4. Rui Rio e a actual direcção nacional do PSD estão aliviados com os resultados. É compreensível: não foram apeados de supetão. Acaba por ser interessante para o país, na medida em que permite que Rui Rio complete o ciclo legislativo e leve o seu projecto às próximas legislativas, travando, talvez, o excessivo entusiasmo de alguns sectores mais radicais do PSD. Sublinhe-se, a propósito, que há muitos PSDs no PSD: seria muito pior para o país que a vitória PSD da noite fosse alguém com o posicionamento da candidata extremista da Amadora, em vez de ser alguém com o perfil do candidato de Lisboa, que não parece ter tendência para imitar o protofascista de serviço. Na perspectiva da saúde da democracia, faz muita diferença – desde que o próprio PSD o entenda (designadamente, na relação com o partido do dito protofascista).

 

5. O antigo presidente da IL, num debate na Rádio Observador, dizia esta manhã que as ideias liberais ajudaram o PSD a ganhar Lisboa, porque Moedas é um liberal – acrescentando que o PSD tem de encontrar o seu Moedas a nível nacional. O problema (para a Direita) é que, do ponto de vista eleitoral, essa descoberta não leva longe: Moedas repete Passos Coelho em 2015, Moedas tem 7 em 17 vereadores em Lisboa. Dá para governar, graças às especificidades da nossa lei autárquica. A nível nacional, já percebemos como isso funciona desde 2015: a Direita coligada ficou à frente, mas quem teve maioria foi a Esquerda e foi a Esquerda que governou.

 

6. Outra lição para o futuro: aqueles que, à esquerda do PS, e designadamente em Lisboa, disseram que o perigo era uma maioria absoluta do PS, mostraram, outra vez, que escolher mal os alvos é politicamente perigoso – ou, até, irresponsável.

 
 
 
Porfírio Silva, 27 de Setembro de 2021
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10.9.21

Jorge Sampaio, o anti-herói

Não é possível, assim de repente, ainda no dia da sua morte, falar de todas as qualidades características de Jorge Sampaio. Até porque irrita a eterna repetição de chavões despropositados, como chamar hesitante a um homem que fez toda a vida aquilo que Sampaio fez, e por isso não seria suportável querer aqui fazer uma contabilidade, fazer a contabilidade daquele Homem, daquele Cidadão.
 
Contudo, não posso deixar de lhe fazer uma qualificação. Num mundo onde tantos acham que são os heróis disto e daquilo, Jorge Sampaio foi o anti-herói. Fez tanta coisa que outros não souberam fazer e esteve sempre na vida como se essas suas responsabilidades fossem normais - mesmo quando sofria com o peso da responsabilidade de fazer o que devia ser feito. O que outros fazem com o cheiro da glória, Jorge Sampaio fazia porque entendia que lhe cabia fazer. É por ser o anti-herói que Jorge Sampaio é tão profundamente humano, atento aos humanos. Atento à humanidade como povo do planeta Terra - sempre atento, interessado e conhecedor das realidades do mundo, desde a geoestratégia ao sofrimento dos que não podem ficar na sua terra - e atento à humanidade da pessoa mais humilde que estava a seu lado. 
 
O pequeno episódio que aqui conto é apenas um exemplo do que digo.
 
Jorge Sampaio avançou, com extrema lucidez e coragem política, para uma candidatura à Câmara de Lisboa que, sob a sua liderança, juntava socialistas e comunistas. Nesse ano de 1989, cai o Muro de Berlim, um dos momentos mais marcantes da evolução a Leste que tinha sido espoletada pela liderança de Gorbatchev na União Soviética. Nada havia de contraditório aí: o nosso apego ao socialismo democrático não estava em causa, a nossa pertença à esquerda não merecia dúvidas, a Coligação Por Lisboa não diluía a identidade de cada um e não era trocada por nenhum silêncio ou qualquer ambiguidade. No entanto, a direita (PSD) entendeu que podia tentar atrapalhar a candidatura de Jorge Sampaio com um debate parlamentar sobre a Europa de Leste, tentando estilhaçar as autárquicas com um desentendimento entre PS e PCP sobre o Leste. 
 
O debate fez-se, mas saiu-lhes o tiro pela culatra. Até o Ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, se recusou a dar para aquela cena triste: fez um discurso enorme, 100 páginas dactilografadas, mas que era mais um relatório diplomático do que uma peça de combate político. A bancada do PSD, onde pontificava Pacheco Pereira, mobilizou-se: a imprensa da época diz que todos os vice-presidentes do grupo parlamentar fizeram pedidos de esclarecimento a Jorge Sampaio, que, sendo secretário-geral do partido, fez a intervenção de fundo pelo PS. Adriano Moreira, então líder do CDS, fez um discurso de grande seriedade, ignorando qualquer matéria que pudesse ir no sentido pretendido pelo PSD (manipular para política interna e disputa autárquica um assunto da maior importância para a humanidade) e, no fim, foi cumprimentar Jorge Sampaio pela sua prestação. O PCP defendeu-se como podia, estando, na altura, em fase de reconhecer que nem tudo tinha corrido bem no "socialismo real". Jorge Sampaio, pelo seu lado, fez um discurso onde não fugiu a questão nenhuma, desassombrado, não esquecendo nenhum dos valores do socialismo democrático, ao mesmo tempo que reconhecia o tipo de diálogo que era preciso ter com os comunistas. Foi uma grande tarde parlamentar. O Diário de Lisboa relatou uma frase de Jorge Sampaio, numa resposta, onde fazia um retrato claríssimo da pequenez do PSD naquele debate: "Para os senhores deputados da Maioria, a cimeira Bush-Gorbatchov, a cimeira da Nato, há dois dias, e a cimeira da Comunidade, daqui a quatro, não interessam para este debate: o que vos interessa é medir o Terreiro do Paço e a Rua da Betesga". 
 
Na altura, eu era um rapaz, ainda militante da Juventude Socialista, e era (pro bono) um dos assessores do secretário-geral Jorge Sampaio para as questões internacionais, cabendo-me, precisamente, o dossier das relações Leste-Oeste. Estivemos, por isso, em condições de ajudar a construir uma posição de acolhimento favorável dos socialistas portugueses às reformas democráticas da perestroika, quando a desconfiança herdada da guerra fria ainda era predominante. O Secretário Internacional do PS era o Nuno Brederode Santos, que tinha assumido essa responsabilidade quando Jorge Sampaio teve de as deixar para assumir a liderança. Coube, portanto, a Brederode e a mim preparar o rascunho daquele discurso, discurso finalmente proferido no debate que teve lugar a 5 de Dezembro de 1989.
 
Assisti ao debate parlamentar nas galerias do público e, no fim, o deputado Jorge Sampaio, líder do PS, saiu do hemiciclo e foi ter comigo à galeria do público para me agradecer a colaboração e para me oferecer o original da sua intervenção, onde ele tinha riscado, corrigido, acrescentado, sobre o papel que o Nuno e eu tínhamos preparado. Não tem importância nenhuma, mas tem: Jorge Sampaio tinha um verdadeiro respeito por todas as pessoas, designadamente por aquelas que trabalhavam com ele, e olhava para as pessoas como pessoas, nunca como peões de um jogo. Muitos cidadãos deste país puderam testemunhar isso. Eu testemunho-o aqui, com o pequeno episódio relatado: no mesmo acto, grande visão política, um olhar atento e lúcido sobre o mundo na sua globalidade, coragem e desassombro para afirmar valores e ideias e, ao mesmo tempo, nunca esquecer as pessoas concretas que encontrava na sua vida. Por mais insignificantes que fossem no grande jogo, que era a minha posição.
 
Se não fosse a colaboração com Jorge Sampaio, nunca por mérito próprio teria tido oportunidade de me sentar à mesa com Willy Brandt, Jacques Delors ou Go Brundtland, mas tenho muito mais prazer em continuar a ter comigo o original daquele discurso de Jorge Sampaio, com anotações da sua mão, que, hoje pela primeira vez, deixo ver em público (clicando aqui). (A versão limpa desse texto aparece em A Festa de um Sonho, dado à estampa pela Editorial Inquérito em 1991.)
 
 O que Jorge Sampaio me inspira: não vou parar na tristeza, vou alimentar-me no exemplo. O exemplo do cidadão, anti-herói, respeitador de cada pessoa.
 
(Segue-se imagem da primeira página do manuscrito do discurso referido no texto.) 


 
 Porfírio Silva, 10 de Setembro de 2021
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