1. Em maio de 2020, quando foi possível debater explicitamente as eleições presidenciais nos órgãos do meu partido, apresentei o meu ponto de vista, com dois alertas (como foi noticiado, com razoável rigor, por exemplo aqui).
Primeiro, o apoio, declarado ou implícito, do PS a Marcelo
Rebelo de Sousa introduziria desequilíbrios no regime democrático, porque, ao
criar a expectativa de uma votação esmagadora (com o apoio de todos os partidos
que alguma vez governaram Portugal em democracia constitucional), abriria um
novo espaço à direita extrema, oferecendo-lhe o bónus de ser a principal
novidade das presidenciais e, consequentemente, o palco da campanha, sendo
desse palco que vivem os movimentos contra o sistema democrático. Com a agravante
de que o palco à extrema-direita perturba a capacidade do PSD para ser uma
alternativa decente de governo.
Segundo, alertei para o perigo de, naquele cenário de união
de facto com MRS, virmos a ter na área socialista somente uma candidatura
populista, sem histórico de um programa de esquerda articulado e coerente, mas
vocal na crítica à política e nos ataques ao PS.
2. Infelizmente, creio hoje que os factos mostram que tinha
razão.
A reeleição de MRS é um resultado que, em si mesmo, nem
coloca em perigo nem enfraquece a democracia. Pode vir a ser um risco para a
governação socialista, e é provável que isso aconteça no segundo mandato, mas
isso é diferente de afectar a democracia. Aliás, MRS não descurou o ataque
político ao candidato extremista, em nome de uma direita democrática que não se
inibe de invocar o Papa Francisco ou Sá Carneiro.
Entretanto, a expectativa de uma fácil
reeleição abriu o palco ao candidato extremista. Um candidato com capacidade
para representar toda a diversidade do espaço do PS teria criado uma verdadeira
disputa pelo resultado e teria a vantagem de reduzir a margem de espectáculo
para AV, estreitado a sua margem de progressão eleitoral.
Obviamente, a
candidatura de uma militante socialista não foi capaz de preencher esse papel,
na medida em que resvalou permanentemente para o discurso de uma candidatura
contra o PS, insistiu nos temas do populismo justiceiro que sabe serem inaceitáveis
para muitos democratas e, finalmente, decidiu misturar a candidatura com a vida
interna dos socialistas (pecado mortal de qualquer candidato, qualquer que seja
o partido que implique). Tentei alertar para esse perigo, em Carta aberta a Ana Gomes, mas de nada serviu. O resultado está à vista, mesmo quando os candidatos
não assumem a responsabilidade pelos seus maus resultados e tentam sacudi-los
para os ombros de outrem.
3. Não votei MRS (não me basta achar que um candidato é
decente para lhe dar o meu voto, até porque espero que a maioria dos candidatos
sejam decentes), mas entendo que muitos socialistas tenham votado na reeleição.
Gostando mais ou menos do estilo às vezes excessivamente dominado pela
necessidade de ser popular, ou até discordando de algumas das suas posições
políticas, uma esmagadora maioria dos portugueses valoriza positivamente a
descrispação e a normalização da vida política nacional que MRS operou desde o
início do seu primeiro mandato. Basta lembrar que o antecessor foi Anibal
Cavaco Silva… para dar logo alguma tolerância a MRS.
Aliás, o PS, ao definir a sua posição face às presidenciais,
não podia ignorar que uma maioria do seu eleitorado estava inclinado para votar
no PR em exercício: os partidos não podem pensar que podem definir as suas
posições ignorando as posições de partida do seu eleitorado. De qualquer modo,
o PS tem de fazer, agora, o trabalho de curar as feridas abertas entre os seus
militantes e entre os seus eleitores por esta campanha e eleição presidencial.
4. O resultado, alto, excessivamente alto, da extrema-direita,
é uma preocupação para todos os democratas. É um problema que está alojado no
campo da direita, mas, sendo um factor de contaminação da direita, sendo uma
dinâmica que põe em causa a autonomia estratégica da direita democrática,
afecta todo o sistema político. Um país democrático precisa de uma direita democrática
– e, neste momento, não vejo nenhum partido de direita a assumir um claro
combate às teses iníquas do partido fascistóide. Isso é um problema de todos os
democratas. Rui Rio não percebe isso e fez uma declaração na noite eleitoral onde
o principal destaque foi o seu empenho em sublinhar os sucessos do candidato protofascista.
5. A esquerda que não votou MRS dividiu-se, mas não foi isso
que a fez perder eleitoralmente. A ideia de que seria preferível uma candidatura
única da esquerda é o regresso à ilusão de uma esquerda unitária, ilusão essa que
só se pode alimentar de um completo desconhecimento da sociedade portuguesa e
de um grande desapreço pela diversidade ideológica e política da esquerda. A fixação
na mítica unidade por obrigação persegue a esquerda há décadas e ainda não foi compreendida
na sua negatividade intrínseca. Não precisamos de bloco homogéneo contra bloco homogéneo,
precisamos de pluralismo, precisamos de diversidade e, acresce, precisamos de
capacidade para o compromisso. A pluralidade é complexa e os simplistas querem
ter pouco trabalho com a deliberação democrática. Essa mitologia tem de ser desconstruída,
para podermos, à esquerda, fazer o que é necessário sem um pesado nevoeiro de
ilusões.
6. A esquerda de que precisamos é uma esquerda plural que
assuma as suas responsabilidades. Na transição de legislaturas, a solução
política que a direita baptizou de “geringonça” desconcentrou-se. Depois de uma
legislatura em que um governo minoritário do PS e uma maioria parlamentar plural
de esquerda conseguiram desmontar o rumo austeritário e imprimir um rumo de
progresso social e económico, e de umas eleições legislativas em que o país
renovou a confiança nessa fórmula, com reforço do PS, a cidadania assistiu a
uma série de desentendimentos, sobre cuja repartição de responsabilidades não
vou aqui insistir, mas que transmitiram ao país a mensagem de que a cooperação
estruturada à esquerda estava desordenada. Sem voltar aqui à distribuição de culpas,
é evidente que o voto contra do BE no OE 2021 sinalizou uma emergência política:
a insensibilidade de uma parte da esquerda às nossas responsabilidades comuns em
respondermos conjuntamente ao país. Sem ser cada um por si. Sem ser o salve-se
quem puder. Sem a perigosa ilusão de passar as culpas. Especialmente quando
enfrentamos a crise maior das nossas vidas, provocada pela pandemia.
7. Para assumir as suas responsabilidades, a Esquerda Plural
(o PS, o BE, o PCP, o PEV) tem de voltar a sentar-se à mesa e assinar um
compromisso político conjunto, com um horizonte pelo menos até ao fim da
corrente legislatura, onde fique traçado o essencial do rumo e do método para
darmos ao país a estabilidade política positiva que é necessária para fazermos
frente à pandemia – e para vencermos a pandemia dentro da pandemia que é o aumento
das desigualdades sociais. Se não reunirmos as ferramentas para podermos fazer
o que o país necessita, e se deixarmos a direita tomar conta do país neste
contexto, o nosso povo sofrerá de novo o peso das políticas anti-sociais da
anterior crise. A Esquerda Plural não pode desperdiçar energias e deve concentrar-se,
focar-se no essencial – o que passa por um compromisso claro acerca,
precisamente, do que é essencial e prioritário.
8. Entretanto, o PS só pode fazer a sua parte neste processo
se mantiver a sua identidade e preservar a sua autonomia estratégica. Tenho a noção das diferenças entre o PS e o
BE, e das diferenças entre o PS e o PCP. Não acho sequer que possa ser útil para
o Bloco que o PS queira parecer ter as mesmas políticas que o Bloco. Ou que
seja útil para o PCP que o PS queira parecer ter as mesmas políticas que os comunistas.
Ou que seja útil para a democracia que o PS queira parecer igual a outros
partidos, de esquerda ou de direita. O PS só pôde cumprir as suas
responsabilidades históricas, desde a clandestinidade, passando pelo período revolucionário,
até hoje, porque os socialistas souberam preservar a autonomia estratégica do nosso
partido, o partido do socialismo democrático. Preservar a nossa autonomia
estratégica é agir de forma a podermos continuar a seguir os nossos critérios
nas nossas opções políticas, o que depende de entendermos a nossa identidade
histórica e nunca esquecermos o que os portugueses esperam de nós. Só faremos a
nossa parte na Esquerda Plural se assumirmos as nossas próprias propostas e o
nosso próprio perfil – e, a partir daí, sermos a peça fundamental de uma governação
progressista agregadora e mobilizadora.
9. Cabe ao PS entender a dinâmica do uno e do múltiplo e dar
um contributo decisivo para definir e concretizar um rumo partilhado pela
Esquerda Plural, com os olhos postos no país, especialmente nos mais
carenciados e desprotegidos e nos que contribuem, com o seu trabalho, para o desenvolvimento
e a coesão entre portugueses. Isso é essencial, também, para travar a caminhada
da extrema-direita.
(Imagem: Cartaz Liberdade @ João Gonçalves)
Porfírio Silva, 25 de Janeiro de 2021