28.10.20

Rui Rio e o neo-passismo com falinhas mansas

 

O posicionamento do PSD no debate orçamental, quer no parlamento, quer através das declarações de Rui Rio sobre a proposta do governo para 2021, tem vindo a mostrar nos últimos dias um sintoma de um problema: o PSD sofre hoje de fadiga da responsabilidade.
 
É claro que deve ser reconhecido que o PSD, na primeira fase da pandemia, procurou colocar o interesse nacional acima do imediato interesse partidário. Mas cansou-se, durou pouco. 
 
Rui Rio costuma dizer que só anuncia como vota o orçamento depois de conhecer a proposta – e pretende assim passar uma mensagem de responsabilidade, de que não decide matérias de interesse nacional só por tática partidária. Muito bem. Mas há, agora, uma decisão de votar contra esta proposta de Orçamento de Estado que foi anunciada ao seu grupo parlamentar com uma justificação, digamos, curiosa: face ao OE com que temos de enfrentar a maior crise das nossas vidas, o PSD vai votar contra… por quê? Por causa de uma frase do primeiro-ministro! E sobre essa frase o seu líder parlamentar, deputado Adão Silva, insiste (no Expresso da semana passada): o voto do PSD poderia ser reequacionado se António Costa pedisse desculpa dessa frase.
 
Terrível frase há de ser essa, para ditar o voto contra do PSD. Vamos lembrá-la: “No dia em que a sua subsistência depender do PSD, este governo acabou”. Mas, afinal, qual é a mensagem política de tal frase de António Costa?
 
A mensagem é muito clara e é esta (como, aliás, resulta do contexto, da entrevista em que a frase foi dita): há uma particular responsabilidade da esquerda na aprovação deste orçamento, porque quem trouxe o país até aqui, quem virou a página da austeridade e mostrou que há um caminho melhor e que dá melhores resultados, quem se meteu a esta obra tem a responsabilidade de não desistir a meio, tem a responsabilidade de agir contra o desperdício da experiência, tem a responsabilidade de não abandonar o barco quando a tempestade é tamanha e os portugueses enfrentam o mostrengo no cabo das tormentas que ainda há de ser o cabo da boa esperança. Cabo das tormentas que ainda há de ser o cabo da boa esperança se soubermos navegar e não houver marinheiros a saltar borda fora com medo da vastidão da tarefa.
 
É esta mensagem, sobre a responsabilidade da esquerda em dar continuidade ao trabalho que temos vindo a fazer em conjunto, que arrepia a sensibilidade do PSD? Mas foi isto mesmo que disse, na semana passada, em plenário da Assembleia da República, o deputado Duarte Pacheco, falando em nome do PSD, acusando o BE de ter estado sossegado enquanto corria bem e agora querer saltar do barco quando a crise aperta. O escândalo que o PSD finge é, pois, apenas isso mesmo: fingimento. O PSD tem, precisamente, a mesma motivação que verbaliza em acusação ao BE. É assim que, afinal, em poucos meses – apesar de terem sido meses tão longos – o PSD se cansa de pôr o interesse nacional acima do cálculo partidário. O PSD – e o BE, aparentemente – têm medo da companhia de quem tem de governar no momento em que é preciso enfrentar a maior crise das nossas vidas – não percebendo que os políticos não servem para nada se viram a cara nos momentos mais difíceis. 
 
A fadiga da responsabilidade que assola o PSD traz consigo um elemento preocupante: o brutal regresso ao passado que o discurso do seu líder desvela nos últimos dias. É que, na sua justificação do voto contra o OE, perante o seu partido, onde certamente se sente mais confortável e à vontade para abrir o coração, Rui Rio mostrou uma cedência em toda a linha ao velho discurso e à velha estratégia de Passos Coelho. Voltou à teoria de que “vivemos acima das nossas possibilidades” (mas quem? os que vivem com o salário mínimo?!). Voltou a defender a estratégia passista de dar prioridade à redução do défice à bruta. Voltou à teoria de que as receitas são incertas e, portanto, certamente acrescentará que temos de voltar aos cortes. Voltou a acusar-nos de “dar tudo a todos”. 
 
Rui Rio, para acalmar o seu partido, deu a mão ao fantasma do passismo, latente entre os seus companheiros. Esse é um sinal da sua fraqueza interna, a qual deriva de Rui Rio continuar a ser um corpo estranho ao seu partido, como se nota quando o seu grupo parlamentar tem liberdade de voto em matérias fundamentais. Vimos isso mesmo, recentemente, mais uma vez, na votação sobre o referendo à eutanásia, onde apenas meia dúzia de deputados do PSD votaram com o líder.
 
Rui Rio não encontrou melhor, para acalmar os seus, do que ressuscitar a austeridade como linha política. Mas o que é extraordinário é que Rui Rio conseguiu ressuscitar toda a doutrina austeritária de Passos Coelho e Paulo Portas e, mesmo assim, há partidos que se chamam de esquerda e que ainda não perceberam o perigo que isso representa para o país. E, aparentemente, não se importam de repetir os erros do passado.
 
No discurso em que anunciou o voto contra o OE 2021, Rui Rio disse: “(…) relativamente a determinadas medidas do Orçamento, nós íamos estar todos de acordo. De certeza que somos todos a favor do aumento das pensões, de mais creches gratuitas, de menos IVA nos ginásios, de passes sociais mais baratos, de novas prestações sociais, do aumento do subsídio mínimo de desemprego, da criação do subsídio de penosidade, de redução do IVA da eletricidade, do aumento dos salários mais baixos da função pública. Estamos todos de acordo com cada uma destas medidas individualmente, não podemos estar de acordo com tudo isto ao mesmo tempo. (…) Porque isto dá o défice para lá do que deve ir e porque isto inviabiliza determinadas medidas necessárias para preparar o nosso futuro coletivo.”
 
Quer dizer: volta a tese de que há uma oposição entre progresso económico, por um lado, e, por outro lado, direitos sociais e redução das desigualdades. Essa tese foi a base da estratégia errada da Troika – e foi corrigindo essa visão que conseguimos voltar a um caminho de progresso social e económico. 
 
Afinal, há um fenómeno relevante no debate na generalidade da proposta de Orçamento de Estado para 2021: a liderança de Rui Rio baqueou, cedeu ao impulso passista que continua larvar no PSD. Os neoliberais do PSD passaram para a cabeça do pelotão, deixando os tímidos laivos de social-democracia para trás. Este debate marcou a renúncia de Rio a qualquer ideia de regresso à social-democracia. (Embora, claro, nunca nada seja definitivo com Rui Rio, porque pode sempre inventar qualquer outra curva na estrada…) Talvez por isso o primeiro-ministro, na sua intervenção de abertura do debate, tenha sempre falado de PPD-PSD: para fazer pensar nos vários partidos que vivem dentro daquele partido.
 
Mais estranho do que isto, só o descuido de alguma esquerda com estes sinais preocupantes.
 
 
Porfírio Silva, 28 de Outubro de 2020 
 
 
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15.10.20

Obrigatoriedade da aplicação Covid?

Dediquei, anteriormente, algum tempo a analisar a questão das aplicações de rastreio de contactos em tempos de Covid: vários textos neste blogue, alguns capítulos no meu livro Emergência e Democracia - Ciência, política e sociedade em dias críticos
 
Está, agora, no debate público, por iniciativa do Governo, uma nova questão: deve introduzir-se um elemento de obrigatoriedade no uso da aplicação pública portuguesa, a Stayaway Covid?

Um elemento fundamental deste debate diz respeito à forma como tal obrigatoriedade  pode - ou não -  ser implementada sem ferir os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que são constitucionalmente protegidas por serem fundamentais ao Estado de Direito democrático. Sendo esta a dimensão que mais está, hoje, presente no debate público, não vou agora alongar-me sobre as fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade de tal passo. Opto, nesta circunstância, por suscitar duas outras questões, importantes para gerir democraticamente uma pandemia que afecta a nossa vida em comum.

Em primeiro lugar, importa evitar a ideia de que pode existir uma varinha mágica tecnológica para enfrentar a pandemia. O fascínio pela tecnologia, que se torna uma doença social quando favorece o enfraquecimento do laço social, afogando a comunidade sob o peso do individualismo, abre caminho à ilusão de que um smartphone com uma app pode fazer milagres para enfrentar uma ameaça disseminada na comunidade. Não pode. O essencial da resposta à pandemia diz respeito a um pacote de comportamentos, ao nível micro das relações de uns com outros, onde o que nos salva é o cuidado concreto com os seres humanos cuja vida se faz em interacção connosco. E mutuamente, claro, porque a dinâmica da reciprocidade é básica aqui. A aplicação Covid pode ajudar: é mais uma ferramenta que complementa o rastreio (manual) tradicional. Pode ajudar, sendo uma entre várias ferramentas. Torná-la, em algum modo, obrigatória, cria a ilusão de ser uma super-ferramenta, cria a ilusão de uma varinha mágica universal - que não é nem mágica nem universal. E, por isso, é um erro grave na estratégia de construir uma resposta democrática à pandemia. Até porque só uma resposta democrática pode ser sustentada. 
 
Em segundo lugar, a explosão de conflitualidade social, distribuída em inúmeros pequenos focos, em cada bairro deste país, que resultaria de um controlo efectivo do uso da app por parte dos agentes da autoridade, é um caminho que temos absolutamente de evitar. Mesmo que cada agente das forças de segurança só viesse a intervir quando munido de um mandato judicial para cada acto de inspecção de um telemóvel, e descontando o delírio de verificar em cada caso se aquela máquina pode ou não correr a aplicação (para determinar se multa ou não multa), toda a operação de controlo de uma máquina que se tornou parte da organização pessoal da vida de cada um (como se tornou o telemóvel para muita gente), por um polícia ou guarda, redundaria numa cadeia infindável de conflitos potencialmente explosivos. Se, antes, fomos capazes de fazer uma aplicação moderada do estado de emergência, mesmo sob a pressão presidencial para um estado de excepção inédito, temos, agora, de evitar qualquer sinal de que vamos viver em ambiente de quase-emergência não declarada. Até porque, quanto mais difícil é a situação, mais precisamos de confiança popular nas autoridades (a todos os níveis) - mesmo para que todos os escalões de responsabilidade possam exercer em pleno as suas funções e cumprir as missões necessárias para vencermos este desafio.
 
Finalmente, nada disto tem a ver com alguma desinformação que por aí anda acerca do funcionamento da Stayaway Covid. Por exemplo, quando alguns continuam a falar como se esta aplicação fizesse geolocalização, coisa que não faz. Laboramos, aqui, em assunto demasiado sério para tolerarmos ligeirezas. 

 
 Porfírio Silva,15 de Outubro de 2020
 
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