Aqui fica, para registo, a minha intervenção, esta tarde, na audição parlamentar do Ministro da Educação, sobre o próximo ano letivo.
(O título é, como se percebe pela intervenção, "roubado". Não será difícil ao leitor deste blogue identificar o autor dessa palavra de ordem tão oportuna.)
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Senhor Ministro, temos procurado acompanhar esta situação que estamos a viver na educação, em grande parte socorrendo-nos dos testemunhos e das experiências daqueles que estão no terreno.
A Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, acaba de publicar um livro eletrónico, coordenado por José Matias Alves e Ilídia Cabral, que se chama “Covid 19 – Ensinar e Aprender no tempo do (pós) confinamento. O que aprendemos entre março e junho de 2020?”. Há aí vários elementos interessantes, eu não posso usar aqui todos, mas vou usar alguns.
Uma professora do ensino secundário, aproveitando uma expressão de outro autor, lança um alerta muito importante para o tempo que temos em mãos. A expressão é “contra o desperdício da experiência” e o alerta é: com aquilo que aprendemos, já não podemos ignorar a importância basilar do ensino presencial, mas temos também agora a obrigação de compreender que o regresso ao ensino presencial não deve ser um regresso à uniformização – nem à uniformização curricular, nem à pretensa homogeneidade das turmas, nem à uniformização dos tempos e dos espaços, nem à uniformização das equipas educativas.
Escreve essa professora: precisamos de dar mais protagonismo a modos de trabalho mais ativos (de professores e alunos), de incrementar a flexibilidade de espaços, de melhorar as possibilidades de reorganização dos tempos e de reorganizar o agrupamento dos atores (professores e alunos) – acrescentando “a importância de que o ensino e a aprendizagem respirem muito para além das tradicionais fronteiras da sala de aula”.
Talvez não pareça à primeira vista, mas, quer esta expressão “contra o desperdício da experiência”, quer este desafio de não voltarmos ao que era, como se não tivesse acontecido nada, são caminhos muito importantes para uma reflexão acerca daquilo que há agora a fazer. De facto, sem relação humana não há educação. O regresso ao ensino presencial é necessário, em termos de ensino, em termos de saúde (porque também é importante em termos de saúde física e de saúde mental este regresso ao presencial), e em termos de educação num sentido mais vasto: em termos de socialização, porque as pessoas não estão na escola só para aprender conteúdos ou só para aprender competências, estão também para aprender valores, princípios, formas de estar e de se relacionar. Em termos de direito à educação, sabemos todos hoje que a distância agravou as desigualdades – e nós temos que levar esse aviso a sério.
Temos, claro, que garantir elevados padrões de segurança no regresso ao ensino presencial. Isso é indispensável, mas nós também não podemos esquecer – lá está, não podemos desperdiçar a experiência – o que as escolas aprenderam neste tempo, não só quando tiveram que largar o presencial, mas também quando tiveram que regressar ao presencial. Sabemos que foi um regresso seguro, foi um regresso que funcionou bem, um regresso onde se aprendeu muito e com o qual ninguém foi prejudicado. E mesmo em termos internacionais, todos os países que regressaram ao ensino presencial puderam constatar que não houve nenhum descontrolo da situação sanitária por causa desse regresso.
Um outro elemento daquele livro eletrónico que mencionei é também sobre isto, e pode aí ler-se, noutro testemunho: “A solução é fechar as portas da escola? É isso que evita a propagação da pandemia? As crianças e jovens que vivem em condições degradadas e promíscuas correm muito mais riscos em casa e na sua comunidade quando não existem condições de higiene e de segurança. A escola, devidamente organizada e protegida, é o lugar mais seguro para a população escolar mais carenciada. (…) É preciso acolher as crianças onde corram menos riscos e onde se sintam mais confortáveis e mais seguras. Para uma grande parte dos alunos esse meio é a escola.”
E, portanto, nós temos aqui um grande desafio. É claro que temos de garantir as condições de segurança, mas temos de assumir as nossas responsabilidades, também as responsabilidades políticas. E assumir as responsabilidades políticas não é dizer “ficam todos fechados em casa, que é mais seguro, e não se faz nada”. Isso seria uma grande irresponsabilidade política. E nós temos que estar atentos às sereias da desgraça. Seria uma grande tolice se nós, como deputados, pensássemos que a imunidade parlamentar também é imunidade contra a infeção, mas andam próximos da mesma tolice aqueles que querem judicializar o regresso ao presencial, quase fazendo como se a questão do regresso ao presencial fosse uma questão de responsabilidade penal, onde se podem discutir responsabilidades materiais e responsabilidades morais.
Nós continuamos fiéis ao princípio de que a segurança é importante e tem de ser garantida, desde logo, levando em conta as orientações das autoridades de saúde. Mas, para que este regresso não seja apenas um regresso atrás, seja um regresso à frente, um regresso em que tiramos lições da experiência que tivemos, a minha pergunta, senhor ministro, é esta: que meios estão pensados para podermos fazer esse regresso ao futuro a partir daquilo que aprendemos?
Pergunto em termos, por exemplo, de pessoas: professores, tutorias, assistentes operacionais, assistentes técnicos, psicólogos. Em termos de meios que obriguem a essa recuperação do que foi este confinamento em termos de desigualdades. Mas também em termos de diversificação dos instrumentos.
Como já disse várias vezes, não sou nenhum fanático do digital, não sou nenhum fanático das tecnologias, porque nem sequer acho que sejam as tecnologias a dirigir a nossa vida – mas o que é que está a fazer para que existam as condições para que os meios tecnológicos, por um lado, e o apetrechamento pedagógico, por outro, sejam capazes de fazer deste regresso ao presencial um regresso com condições de segurança e também com as margens de opção necessárias para responder às eventualidades? Porque é claro que vai haver casos, é claro que vai haver situações em que tem de se responder com flexibilidade. Temos os meios, senhor ministro, e quais meios temos, para responder com sabedoria a esse regresso ao futuro, aprendendo com aquilo que se passou no passado recente?
Porfírio Silva, 21 de Julho de 2020