30.6.20

A escola pública e o resto




Da minha intervenção, esta tarde, na audição parlamentar do Ministro da Educação, que se pode ver no vídeo acima, quero destacar duas ideias.

"A epidemia não é um episódio breve. Nós estamos numa situação muito difícil e que está para durar. Nós temos que manter as atitudes corretas, certas, apropriadas, uns face aos outros, para que isto não acabe num clima de crítica generalizada de todos contra todos. O primeiro elemento de uma atitude positiva é valorizarmos aquilo que é feito, sem deixarmos, obviamente, também, de identificar aquilo que é preciso fazer melhor ou que é preciso corrigir."

"Nós sabemos que a universalização progressiva da escola digital não vai acontecer no primeiro dia. Nós sabemos bem que não há [agora] mercado mundial para um milhão e quatrocentos mil computadores."

Porfírio Silva, 30 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

27.6.20

A extraordinária resposta da escola pública foi o resultado de uma parceria



À pergunta "O Ministério geriu bem o ano letivo?", na rubrica SIM/NÃO do Expresso de hoje, eu respondi "sim", David Justino respondeu "não". Deixo o meu texto. O título é o destaque do Expresso.



Com menos de 100 casos conhecidos de infeção por covid-19, contra o parecer dos sábios, o Governo decidiu interromper as atividades escolares presenciais. De um dia para o outro, em coesão com as escolas, mobilizou modalidades alternativas de aprendizagem; forneceu orientações e recursos para a sua concretização, mais decisivos para os mais vulneráveis; pôs a funcionar a rede de escolas de acolhimento de filhos de trabalhadores essenciais e a rede de fornecimento de refeições escolares; repatriou centenas de docentes. Garantiu processos indispensáveis à continuidade da operação recorrendo ao digital: inscrição online nos exames, concurso de professores online, portal de matrículas online, ferramenta eletrónica E72 garantindo a resposta da administração até 72 horas.

O regresso parcial à escola presencial requereu a higie­nização de espaços, o fornecimento e distribuição de quantidades astronómicas de materiais e equipamentos de proteção, a montagem de novas rotinas escolares com garantia de segurança. Sem deixar cair o acesso ao ensino superior. Apenas exemplos da resistência ao canto de sereias várias para abortar o ano letivo: como isso teria sido trágico para os mais frágeis!

A extraordinária resposta da escola pública foi o resultado de uma parceria entre os profissionais da educação, as escolas e o Governo, em partilha de sobrecarga com as famílias. Mas não se resolvem défices de décadas em semanas, nem no meio de uma pandemia. A imensa tarefa de responder ao agravamento das desigualdades, devolvendo crianças e jovens ao espaço de crescimento que a escola é, exige o uso de ferramentas construídas nos últimos anos, precisamente reforçando essa parceria multinível com mais autonomia das escolas e dos professores: perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória, valorizando todas as dimensões educativas; aprendizagens essenciais, para pôr as aprendizagens à frente do cumprimento de programas irrealistas; autonomia e flexibilidade curricular, permitindo construir respostas à medida de cada contexto e alunos concretos; tutorias, para dar resposta a necessidades educativas diferenciadas, em proximidade com pequenos grupos de alunos.

Há tentativas de esquecer tudo isto. Vêm, por vezes, dos mesmos que se têm oposto à devolução aos professores das ferramentas para concretizarem, em cada escola, o direito constitucional à igualdade de acesso e de sucesso educativo.

Porfírio Silva, 27 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

24.6.20

Fazer do próximo ano letivo mais uma jornada de educação para todos




Para registo, aqui fica a minha intervenção esta tarde no Parlamento.

***


É oportuno o debate que o Bloco de Esquerda nos propõe hoje, quando o Ministério da Educação está a auscultar os parceiros educativos para afinar o plano de abertura do próximo ano letivo.

A verdade é que enfrentamos o próximo ano letivo com os olhos postos na missão da escola pública, para evitar que as desigualdades de condição social e de contexto familiar se reproduzam e perpetuem. O grande desafio é fazer do próximo ano letivo mais uma jornada de educação para todos.

É com os olhos postos nesse objetivo que temos de visar o pleno regresso ao ensino presencial – e daqui saudamos o Governo por ter assumido claramente essa missão. Os alunos e os professores não podem permanecer separados para sempre, embora isso tenha sido necessário durante um tempo.

Os meios digitais, o estudo em casa, as formas alternativas de comunicação, foram importantes e evitaram um isolamento maior, que teria sido ainda mais grave. Mas não substituem a interação humana.

É importante reforçar o digital ao serviço das aprendizagens, não só fora da escola, mas também dentro da escola. E temos os instrumentos para isso.

Não são só os equipamentos. É a conectividade móvel, é a capacitação, para alunos, docentes, formadores e técnicos. É a aposta em novos recursos educativos digitais de qualidade. É a tarifa social de acesso a serviços de Internet. É a inclusão digital de adultos. É, em suma, um vasto programa de democratização do digital.

Mas o digital é uma ferramenta, não é um substituto do presencial. Sempre soubemos disso e sempre o dissemos.

Porque importa fazer do próximo ano letivo uma jornada de educação para todos, saudamos o Governo por ter já fixado claramente o objetivo de investir desde o início do ano letivo na recuperação das aprendizagens. E temos as ferramentas para isso.

Com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória; com as Aprendizagens Essenciais, graças às quais não vamos obrigar os professores a pôr o cumprimento de programas demasiado extensos e rígidos à frente das aprendizagens dos alunos; com a autonomia e flexibilidade curricular, com os planos de inovação pedagógica, com as tutorias, temos as ferramentas para fazer o que é preciso: a margem de manobra que os professores e os técnicos precisam para dar as respostas adequadas aos contextos distintos, aos seus alunos concretos, às necessidades educativas diferenciadas.

E temos os meios do orçamento em vigor, e temos os meios do plano de estabilização, e temos os meios do plano de ação da transição para o digital. Não existe só o orçamento suplementar, nunca existiu só o orçamento suplementar.

Ninguém pode saber como será o mundo daqui a três meses. E teremos sempre de respeitar as orientações das autoridades sanitárias.

Mas sabemos que a escola pública respondeu prontamente, mantendo o acolhimento dos filhos de profissionais essenciais, mantendo a oferta de refeições escolares, criando rapidamente formas alternativas de aprendizagem. E sabemos que essa solidez de resposta assentou numa grande parceria, envolvendo os profissionais da educação, as escolas, e o próprio Governo. E sabemos que, nessa parceria, foi essencial que as soluções locais tivessem assentado na capacidade dos profissionais em cada escola para adequar as respostas à sua realidade concreta.

Por isso lhe pergunto, Senhora Deputada [Joana Mortágua], em relação ao projeto de lei que apresentam, e que é o contributo do Bloco de Esquerda para este debate, se será adequado prescrever agora uma redução universal do número de alunos por turma, sem sabermos qual será a situação sanitária daqui a três meses, sem sabermos se os condicionalismos se manterão estáveis durante o ano letivo, se serão iguais em todas as escolas e em todos os momentos, se as condições impostas pela D.G.S. se manterão, portanto sem podermos antecipar de forma tão genérica as necessidades reais de reorganização dos grupos de alunos.

Senhora Deputada, quando neva em Trás-os-Montes não se encerram escolas no Algarve. Por isso lhe pergunto se não será melhor deixar às escolas as condições para responderem especificamente à sua situação concreta, que poderá ser muito diferente de escola para escola e variar de uma semana para a outra, em vez de antecipar já um padrão nacional?



Porfírio Silva, 24 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

23.6.20

Ideologia e apps Covid: centralizado e descentralizado




Durante as semanas, meses, desta crise pandémica, tenho escrito algumas vezes sobre as aplicações para telefone que estão a ser estudadas para ajudar na identificação de contactos potencialmente perigosos em termos de infeção Covid. Aparentemente, as dificuldades que fomos inventariando eram, efetivamente, dificuldades sérias – a julgar pelo tempo que passa sem que as tais aplicações apareçam. Enquanto aguardamos para ver se podem ser cumpridas as promessas de ter aplicações que sejam simultaneamente úteis e respeitadoras dos padrões de privacidade legalmente protegidos, cabe refletir sobre as ressonâncias ideológicas de um aspeto central do debate entre diferentes abordagens para operacionalizar essas ferramentas. Refiro-me ao verdadeiro combate comunicacional entre sistemas centralizados e sistemas descentralizados de rastreamento de contactos potencialmente perigosos.

O debate entre centralizado e descentralizado, que ressurge em inúmeras questões e domínios, ganhou claramente tons ideológicos. Não preciso dizer qual das duas vias aparece, espontaneamente, como o lado mais democrático e mais promissor – enquanto a outra via é sempre suspeita de antiquada, ineficaz e menos democrática. Vale a pena pensar sobre isso. Depois de considerações mais genéricas, vamos voltar a questão das apps-Covid, precisamente comparando as abordagens centralizadas e descentralizadas.

O suspeito que se tornou habitual

Na mentalidade que se tornou dominante, o Estado é o primeiro suspeito de todas as malfeitorias. Também agora, na pandemia, o Estado é, para alguns, o primeiro suspeito de fazer isto e aquilo para se aproveitar da situação - e não para combater a ameaça sanitária. Qualquer erro de procedimento, e erros existem sempre, é apontado como ameaça à cidadania. A mera recolha de informação atempada por todo o país sobre fatores relevantes na gestão sanitária é um exercício complexo, que pode ter desencontros ou atrasos. Poucos dão mostras de entender isso. Os serviços públicos não são máquinas: quem os faz funcionar são pessoas como as demais, que sofrem as perturbações do quotidiano profissional que experienciam outros grupos profissionais em consequência da pandemia, que também têm em casa as modificações da vida que tocaram a tantos outros. E que acarretaram, muitas vezes, um grande acréscimo de trabalho nesta conjuntura. Mesmo sendo isto verdade, há quem critique levianamente o seu desempenho, ignorando os condicionalismos e a pressão.

Qual a razão para esse esquecimento, para a facilidade deste criticismo? É “o Estado”, convém criticar. As nossas sociedades foram sendo empapadas, ao longo de décadas, com esta ideologia larvar de desconfiança do Estado. E isso não aconteceu por acaso, nem ingenuamente. A propaganda contra os poderes públicos serviu interesses muito concretos, designadamente interesses económicos que quiserem alargar os seus mercados invadindo áreas de provisão que nunca deviam ter deixado de ser responsabilidade pública. Até por uma questão de soberania, até para manter níveis adequados de segurança da nossa vida em comum, para que infraestruturas essenciais ao funcionamento do país não sejam alienadas a favor daquele que pague mais num determinado momento.

Concordo: importa não baixar a guarda na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos face aos poderes, designadamente face aos poderes do Estado. Mesmo em estado de emergência, os poderes de exceção têm de ser exercidos dentro das definições legais e nos limites do necessário. Contudo, se quisermos sair da redoma dessa ideologia larvar de desconfiança dos poderes públicos, teremos oportunidade de compreender que há outros perigos que, no país concreto que somos, são mais reais e mais prementes. No atual estado de coisas, de emergência, ou de calamidade, ou de alarme, conforme as diferentes classificações legais, mas que é, na essência, um estado de susto, o principal perigo à sociabilidade e às liberdades vem da guerra de todos contra todos (para imitar um pouco Hobbes e não ser nada original).

O medo é o catalisador poderoso a ter em conta. O efeito poderoso do medo.

Nas circunstâncias concretas que vivemos, o comportamento dos indivíduos, deste e daquele cidadão concreto genericamente civilizado, torna-se o principal perigo que corremos quando as pessoas chegam a estar dominadas pelo medo, mais do que pela razão. Pessoas que querem controlar outras pessoas por sua própria conta e risco, pessoas que atacam outras pessoas por acharem que elas estão a criar situações de risco, são a principal ameaça que pode advir da saturação desta situação. O medo inflama a irracionalidade, o pânico espoleta a perseguição de uns contra outros. É esse o principal risco que corremos em situações que não sabemos como controlar de forma metódica e organizada.
Contra isso é preciso, até prova em contrário, confiar nas autoridades e na organização social. Fugir da ação assustada. É tempo de perceber o perigo que corremos se nos deixarmos intoxicar pelos que acham sempre que, mesmo numa democracia consolidada, o Estado é o inimigo. E nem é preciso começar a falar em como os radicais do individualismo têm grandes responsabilidades nesta matéria. E em ser necessário este aviso.
A ideologia larvar de desconfiança dos poderes públicos tem o potencial para impregnar muitos debates sem sequer nos apercebermos disso à primeira vista. Vejamos, então, a questão das apps-Covid.

Apps Covid, centralizado e descentralizado

Embora já o tenhamos feito em textos anteriores, recapitulemos rapidamente o esquema básico de funcionamento dos sistemas de rastreio de contactos suportados em tecnologia Bluetooth instalada em smartphones.

Cada utilizador transporta um smartphone equipado com Bluetooth com uma app instalada. Cada app é regularmente carregada com uma lista de identificadores efémeros (uma “matrícula” que muda periodicamente, por exemplo a cada minuto, ou a cada cinco minutos), que serão emitidos numa determinada ordem. Em cada época, um determinado identificador efémero é emitido frequentemente. Ao mesmo tempo, a app regista os identificadores efémeros emitidos por outras apps que estejam nas proximidades. A esses identificadores fica associada uma informação temporal da sua emissão ou receção. Assim, cada app tem duas listas de identificadores efémeros: uma dos emitidos, outra dos recebidos. Os identificadores efémeros estão ligados a pseudónimos, que têm por trás indivíduos de carne e osso – desejavelmente não identificados.

É na operação deste esquema básico que encontramos as principais diferenças entre os sistemas centralizados e os sistemas descentralizados.

Como são gerados os identificadores efémeros que as apps emitem? Nos sistemas centralizados, a lista de identificadores efémeros é gerada pelo servidor central e disponibilizada a cada app. Nos sistemas descentralizados, os identificadores a emitir são gerados por cada app em cada smartphone.

O que é que cada utilizador comunica quando sabe que está infetado? Quando um utilizador é diagnosticado positivo para Covid, recebe da autoridade de saúde um código que lhe permite reportar ao servidor central certa informação que permite a outros utilizadores saberem que estiveram na proximidade de alguém que tinha potencial para estar a contagiar. Nos sistemas centralizados, a app comunica ao servidor central a lista dos identificadores que recebeu de outras apps. Nos sistemas descentralizados, a app comunica ao servidor central a lista dos identificadores que emitiu.

Como é que cada utilizador verifica se há indicações de que possa estar em risco de ter sido infetado? Trata-se de saber se a troca de identificadores efémeros regista um cruzamento de proximidade com uma pessoa que veio a estar infetada dentro do período em que esse risco existe. Nos sistemas centralizados, essa informação é processada pelo servidor central: o servidor central conhece os pseudónimos dos utilizadores (quando o utilizador procede à sua autenticação para aceder ao servidor central) e conhece a que pseudónimos correspondem os identificadores efémeros (lembrar que foi o servidor central a fornecer os identificadores efémeros), o que lhe permite determinar e informar o utilizador se esteve num contacto de risco (o utilizador está em risco se emitiu identificadores que foram recebidos por um utilizador diagnosticado para Covid). Nos sistemas descentralizados, cada app interroga o servidor central para comparar a lista de identificadores que registou passando na proximidade de outras apps com a lista de identificadores que foram reportados como emitidos por uma app de um utilizador positivo: se houver intersecção, o utilizador esteve em risco.

Uma vez que a probabilidade de infeção depende de fatores como a proximidade a que as pessoas se cruzaram ou a duração da permanência nessa proximidade, é preciso calcular, uma vez identificada uma aproximação, se terá ou não havido oportunidade de infeção. Nos sistemas centralizados, é o servidor central que determina o estatuto de risco. No sistema descentralizado, é a app de cada utilizador que faz esse cálculo.

Nos sistemas centralizados, os pseudónimos únicos são fornecidos pelo servidor central; nos sistemas descentralizados, os pseudónimos são criados e armazenados no telefone do utilizador.

Perante esta comparação, podemos constatar duas coisas.

Primeiro, que o sistema centralizado tem uma característica claramente mais protetora da pessoa infetada do que aquilo que se passa num sistema descentralizado: no sistema centralizado, a pessoa diagnosticada não transmite ao servidor central os identificadores que emitiu, apenas os que recebeu. No sistema descentralizado, a pessoa diagnosticada positiva para Covid transmite ao servidor central o seu próprio rasto de identificadores emitidos. (Sim, os sistemas descentralizados também têm servidor central, mas com funções diferentes daquelas que lhe são reservadas pelos sistemas centralizados.) Assim, o sistema descentralizado requer, ao infetado, uma transmissão dos seus próprios dados, algo a que é poupado no caso de estar a usar um sistema centralizado (onde só comunica os identificadores efémeros que recebeu).

Segundo, a seriação da severidade dos riscos que pode correr a privacidade dos indivíduos, riscos que têm de ser contrariados, varia segundo a categoria de sistemas usados, levando a que priorizem questões muito diferentes. Na abordagem descentralizada assume-se que o principal risco deriva do potencial ataque ao servidor central. Uma vez que o servidor central terá mecanismos de proteção sofisticados, supõe-se que um potencial ataque virá de um “inimigo” da mesma potência: um servidor malicioso ou um adversário de nível estatal (ou a negligência, ou malevolência, dos próprios administradores do servidor). É para prevenir esse tipo de risco que se reduz tanto quanto possível o papel do servidor central. Diferentemente, a abordagem centralizada assume que o maior risco para os utilizadores está nos ataques potenciais originados em outros utilizadores. Por isso, a ênfase é colocada na proteção dos utilizadores contra outros utilizadores mal-intencionados que tentam inferir quem está infetado, por exemplo tentando captar a informação diretamente dos telefones na proximidade e cruzando informação de contexto, de modo a permitir uma completa identificação do indivíduo.

O que é preciso reconhecer é que os sistemas de rastreio de contactos, mesmo “descentralizados”, comportam riscos – porque estão sujeitos a ataques à privacidade oriundos dos nossos pares, de outras pessoas com recursos tecnológicos mais modestos do que uma potência estatal. Que, em clima de “pandemia de medo”, podem ser a ameaça mais tangível. Esses ataques de pequena escala, em vez de visarem toda a base de dados com que funciona um servidor central, podem visar apenas o vizinho do andar de baixo – e qualquer um de nós pode ser o vizinho do andar de baixo. É possível seguir-me na rua, monitorizar o funcionamento da minha app no meu telemóvel e ganhar acesso a informação que permite, depois, interpretar a minha situação de saúde. Qualquer pessoa pode, simplesmente, ser “obrigada” (pelo patrão, pelo vizinho) a deixar verificar o estado da app no seu telefone. E será sempre mais fácil atacar um telefone específico do que um servidor central bem protegido.

O texto “Proximity Tracing Approaches - Comparative Impact Analysis” (ver referência no fim) lista várias ameaças à privacidade que resultam, em sistemas descentralizados, da ação de cidadãos (não autoridades) que tratam de recolher localmente, e depois, cruzar informação, tirando proveito da proximidade espacial aos utilizadores de apps. Demos um exemplo de vulnerabilidade própria da abordagem descentralizada: como os pseudónimos são gerados localmente, no telefone de cada utilizador, é possível (por acesso físico ao telemóvel ou recorrendo a malware) aceder-lhes e relacioná-los com os identificadores efémeros emitidos, possibilitando uma análise de trajetos seguidos (designadamente por infetados.)

Enfim, a mensagem é esta: não tomemos por garantido, mesmo em sistemas de base tecnológica, que os riscos derivados do “distante Estado central” sejam, necessariamente, mais graves do que a guerra privada movida pelos pares movidos pelo medo.

- - -
Textos que vale a pena ler sobre esta questão:
Antoine Boutet, Nataliia Bielova, Claude Castelluccia, Mathieu Cunche, Cédric Lauradoux, et al., “Proximity Tracing Approaches - Comparative Impact Analysis”. [Research Report] INRIA Grenoble-Rhone-Alpes. 2020 (https://hal.inria.fr/hal-02570676v2)
Serge Vaudenay, “Centralize dor Decentralized? The Contact Tracing Dilemma”, 6 de maio de 2020, EPFL, Lausanne, Suíça (https://eprint.iacr.org/2020/531)
Stephanie Rosselo, Pierre Dewitte, “Anonymization by decentralization? The case of Covid-19 contact tracing apps”, europeanlawblog, 25/05/2020 (https://europeanlawblog.eu/2020/05/25/anonymization-by-decentralization-the-case-of-covid-19-contact-tracing-apps/ )




Porfírio Silva, 23 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

21.6.20

Matem os filósofos primeiro




Crise e descontinuidade

À falta de melhor, em tempos de aperto, volta sempre a frase encantatória “a crise é oportunidade”. Sim, há sempre quem pense que um grande abalo vai fornecer o impulso que tem faltado para mudar o mundo: se nós não somos capazes da grande viragem, se a grande viragem não se faz sozinha, então, que ela seja forçada pela terra que treme, pelo mar invasor… enfim, por uma pandemia. Infelizmente, o mote “a crise é oportunidade” denota uma vaga esperança de que o cataclismo oriente a mudança na direção por nós desejada. Como se a natureza pudesse dar respostas aos problemas das sociedades humanas tecidas de instituições. Ora, se a crise pode agudizar a compreensão de que há mudanças por fazer, ela não esclarece o que fazer, nem como fazer. Ainda por cima, a crise desperta muitas conversões ideológicas oportunistas (por exemplo, do individualismo extremo à defesa dos serviços públicos), mas, como mostram as crises passadas, essas iluminações desvanecem-se com o tempo. Pouco tempo.

A ideia da crise como oportunidade é a face visível de uma aspiração a que sucumbimos frequentemente: acreditamos em promessas de absoluta descontinuidade no mundo social. Ainda pode acontecer que esta pandemia marque uma poderosa descontinuidade, mas é mais provável que isso aconteça se tivermos uma segunda fase muito pior do que a primeira e daí resultar um grau muito mais profundo de destruição social. Nesse caso, a descontinuidade não nos levará para um grau superior de civilização. Antes pelo contrário. Já quanto à possibilidade de passarmos da injustiça e da desigualdade à justiça e à igualdade, de um salto, parece-me improvável. Nem é nesse projeto que vale a pena investir: a justiça e a igualdade não são naturais, são construções humanas muito frágeis, que precisam de ser tecidas continuamente. Não resultam de uma lança de Zeus. Parece-me mais útil trilhar caminhos de mudança gradual e sustentada. Para isso, em vez de impulso, precisamos de determinação e laços sociais suficientemente fortes para fazermos um caminho longo, incerto e espinhoso, para a mudança social. Receio, contudo, que tenhamos, coletivamente, reflexão insuficiente para fazer esse caminho. Mais uma vez desta vez. Se calhar começaram por matar os filósofos logo no início da pandemia…

Filosóficos dislates

Em Portugal, a reflexão filosófica sobre a pandemia e a sociedade não tem chegado de forma audível ao espaço público. Alguns pronunciamentos têm aparecido, por vezes com teses assustadoras. Por exemplo, aproveitando o carácter global da pandemia para insistir na crítica à globalização, como se fosse uma saída insistir no fechamento – ou como se fosse possível responder humanamente a esta crise de outra forma que não com uma resposta global. Como é possível, quando estamos todos a sofrer os efeitos do fechamento (em casa, ou, em casos específicos, numa localidade) sonhar com o fechamento dos países, ou das regiões do mundo, como curativo para a sociedade mundial?

O facto de ter sido um dos primeiros palcos da pandemia no mundo ocidental deu a Itália o insondável privilégio de ter acolhido algum debate filosófico público especificamente focado no significado da situação sanitária e das formas de lidar com ela. Nesse quadro, a par de contribuições interessantes, surgiram dislates de primeira ordem. Giorgio Agamben, logo a 26 de fevereiro, publicou um texto intitulado “a invenção de uma pandemia”, onde apresentava a tese de que as medidas de emergência tomadas pelas autoridades eram “frenéticas, irracionais e completamente injustificadas” face a uma “alegada pandemia de coronavírus”. Repetia a tese de que se tratava de uma doença similar à normal gripe. O texto (que se pode encontrar aqui: L’invenzione di un’epidemia), concluía com mais uma instância da teoria da conspiração: “Assim, num círculo vicioso perverso, a restrição da liberdade imposta pelos governos é aceite em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos mesmos governos que agora intervêm para a satisfazer.”

O filósofo Jen-Luc Nancy respondeu a esse texto num tom jocoso (Eccezione virale), mas lembrando um episódio capaz de alertar para o perigo de levar as nossas teorias demasiado a sério contra a dura realidade. Uns 30 anos antes, Nancy foi aconselhado pelos médicos a fazer um transplante de coração e Agamben (são amigos) disse-lhe que ele não devia dar ouvidos aos médicos. Nancy comenta assim: “Se eu tivesse seguido o seu conselho, provavelmente teria morrido em pouco tempo.”

Giorgio Agamben, naquele texto infeliz, estava a seguir uma velha prática: procurava mostrar que as suas teorias sobre o estado de exceção permanente estavam certas e explicavam o que se estava a passar. Veja-se esta sua frase: “Primeiro que tudo, há uma tendência crescente para utilizar o estado de exceção como paradigma normal do governo.” Ou esta: “Dir-se-ia que, uma vez esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para as alargar para além de todos os limites.”

Quase um mês depois, Agamben publicou um “esclarecimento” da sua posição, sem, verdadeiramente, perceber nada do que estava errado com o seu pronunciamento inicial, tentando reduzir tudo à distorção e falsificação de outrem…

Compreender um mundo multinível

Creio que esta crise renovou as oportunidades para nos confrontarmos com o fraco entendimento que temos das sociedades humanas. Por exemplo, há milhões e milhões de pessoas que vivem em países governados por personagens completamente incapazes de raciocinar sobre o impacto da pandemia na vida e no futuro dos seus concidadãos. E, em muitos casos, esses personagens foram escolhidos no seio de sistemas classificados como democráticos. Como é isso possível? Ainda por exemplo, a esmagadora maioria das pessoas que enfrentam esta pandemia continuam assustadas com um facto básico: aquilo que era “verdade” nos primeiros dias da crise deixou de ser verdade – e deixou de ser verdade várias vezes, porque a revisão do “melhor conhecimento disponível” continua. E continuará. Convivemos mal, a esmagadora maioria de nós, com a incerteza acerca do que realmente se passa no mundo que nos afeta.

Entretanto, as receitas para responder à situação continuam confusas. Há uma razão para isso: temos ideias simplistas acerca do funcionamento de sociedades complexas, como a nossa. Há os individualistas, que acreditam que a autodeterminação do indivíduo, a sua liberdade como absoluto, é o que conta. Entre esses contam-se os que pretendem que todas as medidas de combate à pandemia são inadmissíveis por limitarem as liberdades individuais. Só não explicam que liberdade tem um morto – ou mesmo um internado numa unidade de cuidados intensivos. Há os coletivistas, ou centralistas, que ainda acreditam que podemos funcionar eficazmente como rebanho, desde que exista um bom pastor. Entre esses contam-se os que desejam regras gerais obrigatórias para regular todas as circunstâncias da nossa vida em tempo de pandemia, sem margem de interpretação local ou pessoal, porque entendem que só isso garante a boa ordem da resposta. E há as diversas espécies de grupalistas, que entendem que nos desembaraçamos melhor se cada grupo fizer o seu caminho sem interferir com os outros. Entre esses contam-se os que sonharam com regimes específicos de resposta à pandemia aplicáveis por decisão local ao seu município ou região.

Creio que estão errados: os individualistas, os coletivistas, os grupalistas. Creio que precisamos de respostas multinível, onde combinamos diferentes níveis de responsabilidade partilhada. Precisamos de coordenação a nível mundial para certas metas, como descobrir medicamentos e vacinas. E precisamos, a nível nacional, de aplicar respostas multinível.

Demos um pequeno exemplo, mas muito prático, dessas respostas multinível. Como organizar os restaurantes em tempos de pandemia? Não podemos ter uma resposta puramente individualista, cada um faz como entender na sua ida ao restaurante. Como em geral é o caso, não faz sentido que cada um possa simplesmente ter o comportamento que bem entender… quando o seu comportamento afeta os demais. Um individualista na pandemia tem de ter um restaurante só para si.

Tão-pouco podemos ter uma resposta puramente centralista, porque é impossível especificar completamente (por exemplo, em legislação) todos os aspetos de funcionamento de um restaurante. O responsável pela operação do restaurante vai sempre ter uma larga margem de apreciação na aplicação das regras: como é que vai estar certo de que as pessoas a uma mesa são todas da mesma família? E se coabitarem, mesmo sem serem da mesma família? E como se justifica essa coabitação? Vai exigir cartões de cidadão ou declarações da junta de freguesia para atestar tudo o que precisaria de saber para conhecer exaustivamente a situação?

Gerir a convivência num restaurante aberto ao público nos dias de hoje é um exercício multinível: as autoridades estabelecem algumas regras, mas têm de cuidar que elas sejam aplicáveis e verificáveis sem excessiva burocracia; os indivíduos que vão ao restaurante serão responsáveis por grande parte da aplicação das regras, no sentido em que podem contrariá-las ou respeitá-las com base numa compreensão própria do objetivo sanitário; os gestores de cada espaço têm responsabilidades próprias, designadamente na higienização e na segurança da operação, e fazem a intermediação entre as regras gerais de comportamento e a prática efetiva dos clientes. Por outro lado, as respostas grupalistas (por exemplo, regras diferenciadas de autarquia para autarquia) seriam incapazes de manter o país como um território aberto onde todos podemos circular e fruir dos serviços na convicção de disporem basicamente do mesmo grau de segurança.

Este exemplo, nos seus traços gerais, poderia aplicar-se a muitas situações relevantes nos tempos que correm. Uma partilha de poderes e responsabilidades, articulados entre si, cientes da respetiva interdependência, atuando a diferentes níveis de generalidade e concretude, terá de fazer parte da resposta de uma sociedade de pessoas livres a um desafio que não se vencerá sem um grau elevado de coesão.

E não se enganem: a demanda por "mais autoridade" não faz milagres face a situações de gestão multinível. Talvez na China, não aqui.



Porfírio Silva, 21 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

20.6.20

Tem a filosofia alguma coisa a ver com a pandemia? Utilitarismo e imunidade de rebanho



As conceções filosóficas sobre a política e a moral podem influenciar as concretas orientações das políticas públicas. Não se pense que isto diz respeito apenas à influência das ideias explicitamente políticas, no sentido mais imediato do termo, sobre as escolhas governamentais: parece evidente que o presidente chinês, o presidente americano e o presidente francês respondem à pandemia com base em conceções diferentes da ação política e que isso dita decisões distintas entre si. Mas há mais: conceções mais latas sobre a vida em sociedade, conceções de natureza filosófica raramente explicitadas no debate político corrente, podem influenciar a orientação geral das escolhas de políticas públicas. Será particularmente importante considerar esta influência em grandes encruzilhadas da vida coletiva, como é a presente pandemia.

Neste texto vamos considerar o que pode ter sido a influência do paradigma utilitarista nas decisões tomadas por alguns países europeus quanto à estratégia para enfrentar a pandemia de Covid-19. Primeiro, investimos alguns parágrafos a introduzir algumas noções básicas sobre utilitarismo. Assim preparados, trataremos da nossa questão concreta.

-1-

O filósofo Pedro Galvão assinala três traços essenciais do utilitarismo. Primeiro, o utilitarista adota um consequencialismo: para avaliar o que é ou não melhor (comparando, digamos, atos ou práticas), devemos considerar apenas as respetivas consequências. Segundo, para o utilitarista, o único valor a promover é o bem-estar. Terceiro, o utilitarista considera que a avaliação das consequências de um ato ou prática se realiza de forma agregada, considerando a totalidade das consequências verificadas para todos os indivíduos abrangidos no raciocínio, sendo insensível à distribuição do bem-estar. Vamos observar um pouco mais de perto cada um destes traços do utilitarismo.

Comecemos pelo último dos traços mencionados, o cálculo agregado das consequências. Para o utilitarismo, o que importa considerar é o somatório do bem-estar (positivo ou negativo) que determinado estado do mundo provoca em cada indivíduo de um dado coletivo que seja o nosso universo em consideração. Se seguirmos um determinado curso de ação e medirmos numa escala o valor daquilo que consideramos o bem-estar dos indivíduos, calculamos que esse curso de ação vai provocar um certo aumento do bem-estar de um certo número de indivíduos e uma diminuição do bem-estar de outros indivíduos. Para saber qual o estado do mundo que devemos querer atingir, temos de somar a intensidade do aumento de bem-estar em cada um dos indivíduos que beneficiarão desse efeito e a intensidade de diminuição do bem-estar em cada dos indivíduos que sentirão um efeito adverso. Depois, devemos optar por seguir o rumo que nos leve ao maior aumento agregado de bem-estar. Este traço do utilitarismo é, à primeira vista, interessante – especialmente do ponto de vista das políticas públicas: privilegia a avaliação do impacto das opções tomadas no bem-estar agregado de todos os indivíduos, contrariando qualquer orientação geral das políticas públicas para satisfazer apenas certos grupos, contrariando políticas públicas orientadas por preconceitos infundados ou avessas a uma avaliação das suas consequências (exageradamente ideológicas, diria).

Quanto ao consequencialismo, o primeiro dos traços elencados acima, consistente em avaliar uma linha de ação apenas pelas consequências que ela arrasta quanto ao estado do mundo. Uma forma de entender o que está em causa no consequencialismo do utilitarismo é comparar este com o deontologismo. Numa perspetiva de deontologia, há restrições gerais aos nossos atos, independentemente de qualquer cálculo das suas consequências: matar ou torturar outra pessoa é inadmissível, mesmo que isso pudesse evitar outro mal (não posso torturar uma pessoa com a justificação de que isso vai evitar que várias outras pessoas sejam torturadas). Não posso fazer cálculos sobre o prazer que promovo ou a dor que evito com a tortura desta pessoa: simplesmente não posso torturar. Como não posso matar uma pessoa para salvar cinco pessoas doentes com transplante dos órgãos do sacrificado. A deontologia também prevê obrigações especiais, que, em vez de dizerem respeito aos efeitos agregados no coletivo dos indivíduos, dizem respeito, de forma diferenciada, a certos indivíduos com quem temos certas relações: por exemplo, a obrigação dos pais cuidarem dos seus filhos (e não, indiferentemente, de quaisquer filhos). Uma perspetiva deontológica também contempla prerrogativas: não somos obrigados a tudo o que pudesse ser benéfico para os outros, porque há limites aos que temos de sofrer para obter boas consequências gerais.

As dificuldades resultantes desta comparação entre consequencialismo e deontologismo podem encontrar resposta numa variante de consequencialismo: o consequencialismo das regras. Não devemos racionar perante cada decisão particular que leve a um determinado ato, devemos raciocinar face a conjuntos de regras, as quais depois orientam os atos particulares. São esses códigos morais, como um todo, que devem ser avaliados pelas suas consequências. Compatibiliza-se, assim, um certo consequencialismo com um certo deontologismo. Resta saber se o impulso inicial do utilitarismo ainda de salva nesta versão.

Claro que, para entender para onde vai exatamente um utilitarista, importa conhecer a sua conceção de bem-estar – uma vez que o traço essencial desse paradigma que falta considerar é, precisamente, que, para o utilitarista, o único valor a promover é o bem-estar. Diga-se, de imediato, que é errado pretender que o utilitarista só considera a promoção dos ganhos materiais Os utilitaristas clássicos eram hedonistas: o que queremos é ter experiências de prazer e evitar experiências de dor. Autores como Robert Nozick mostraram uma enorme fragilidade deste hedonismo: quereríamos estar ligados a uma máquina de realidade virtual para ter constantes experiências prazerosas, embora totalmente irrelevantes para o mundo real? Outros utilitaristas sofisticaram mais a conceção de bem-estar, como satisfação de preferências, cabendo muitas coisas nas preferências dos indivíduos, incluindo a virtude e o conhecimento. Cruzando aqui dois tópicos, o que teríamos se a maioria dos indivíduos numa sociedade tivesse preferências com consequências terríveis, por exemplo, a preferência por exterminar uma minoria? Quando os utilitaristas começam a modificar a matriz básica do paradigma para bloquear esses caminhos, na realidade o próprio paradigma utilitarista começa a desvanecer-se. Já para não mencionar quão irrealista seria pretender que somos em geral capazes de estabelecer uma lista de preferências e ordenar bem essas preferências (é altamente improvável que cada um de nós seja capaz de fazer uma lista de todas as coisas a que podemos atribuir valor, dar a cada uma e a todas essas coisas um valor numa lista ordenada, quantificando as relações de preferência entre todas essas coisas – e seria altamente improvável, também, que todo esse exercício fosse estável).

Dado este enquadramento, podemos explicar-nos quanto ao que isto tem a ver com as estratégias de combate à pandemia.

-2- 

Vamos, agora, explorar o que consideramos a principal dificuldade da abordagem utilitarista aplicada ao mundo das decisões reais em contextos complexos. É o problema do cálculo das consequências. Se o utilitarismo decide em função das consequências futuras das linhas de ação disponíveis, como se calculam essas consequências? Essa dificuldade é central para apreciar a importância desta questão no atual contexto pandémico. Diferentes países seguiram diferentes estratégias de resposta à pandemia. Como é que podemos calcular, no momento da decisão, as consequências futuras, para o conjunto dos indivíduos a considerar, em termos de prazer e de dor? Esta questão é interessante na apreciação do utilitarismo, porque os utilitaristas clássicos viam mais a questão do ponto de vista das políticas públicas do que do ponto de vista das práticas morais dos indivíduos. Tratar-se-ia de ponderar os efeitos das políticas no coletivo dos indivíduos, considerando todos os indivíduos em vez de privilegiar este ou aquele grupo, esta ou aquela preferência.

Em texto anterior, intitulado “Epistemologia do social em tempos de Covid-19”, discutimos a estratégia inicial do Reino Unido face à pandemia. Essa estratégia, embora tivesse uma sobreposição parcial com a estratégia de outros países europeus (Portugal incluído), continha um elemento distintivo: orientava-se para conseguir atingir a imunidade de rebanho (ou imunidade de grupo). Como? Deixando que o vírus se espalhasse na população. Enquanto vários países (entre os quais Portugal) partiram para estratégias fortes de contenção do coronavírus, incluindo encerramento de escolas e proibição de ajuntamentos, o Reino Unido começou por evitar quaisquer medidas desse género. Só no dia 12 de março, quando Portugal já estava a caminho de tentar fechar a maioria da população em casa, ainda antes de ter sequer uma vítima mortal, é que o Reino Unido aconselhou as pessoas a ficarem em casa se tivessem tosse. O objetivo dessa estratégia era que os recuperados ganhassem imunidade e passassem a funcionar como barreira à posterior contaminação. Entretanto, o sistema de saúde trataria de se concentrar em cuidar dos mais vulneráveis. O ponto estava em que, com a imunidade de grupo, a imunidade de uns protege outros de serem atingidos, ao diminuir as vias de transmissão.

A estratégia da imunidade de grupo, que foi seguida inicialmente também por outros países, acabou por ser abandonada, porque os sacrifícios que ela consentiria (em vidas humanas e doença) eram insuportáveis, não se aceitando que fossem justificados por uma imunidade de grupo que até poderia não acontecer (por exemplo, porque se concluiu não ser certo que um recuperado estava livre de voltar a ser infetado).

Ora, e este é o ponto da questão que aqui propomos, há quem tenha indicado que a estratégia dos países que começaram por tentar a via da imunidade de grupo foi uma estratégia inspirada numa visão utilitarista das políticas públicas, no sentido descrito acima. Põe-se assim a questão: alguns sofreriam a doença, poderiam até morrer, o que seria negativo para o seu bem-estar, mas muitos mais beneficiariam da proteção fornecida pela imunidade de rebanho. Somando as perdas para alguns e os ganhos para muitos mais, valeria a pena seguir esse caminho.

Gerard Delanty, da School of Law, Politics and Sociology da Universidade de Sussex, no Reino Unido, propõe esta leitura. E faz mais: mostra como este cenário real indica fragilidades fundamentais para a aplicação do utilitarismo. O ponto que, para nós, é determinante no seu argumento é o seguinte: para conhecer as consequências dessa estratégia – para conhecer as consequências de qualquer estratégia e comparar essas consequências – era preciso ter um conhecimento do vírus e da dinâmica da pandemia que não estava (e não está) disponível. Muitas vezes é impossível ter, a tempo, o conhecimento necessário para tomar decisões inspiradas pela estratégia do utilitarismo (calcular pelas consequências). Foi o caso. Não perceber isso, e ter um quadro filosófico utilitarista, ditou o fracasso da estratégia inicial do Reino Unido e o seu abandono.

Já agora: continuamos basicamente a enfrentar a mesma incerteza. Ainda há muita coisa que não sabemos acerca do vírus e a dinâmica da pandemia. Portanto, ainda não é possível saber se, afinal, a imunidade de rebanho não teria, mesmo, sido a melhor estratégia. Podemos vir, mais à frente, a concluir isso – a concluir que as estratégias de confinamento são erradas a longo prazo. De qualquer modo, mesmo isso não afeta a nossa conclusão principal: o consequencialismo, típico do utilitarismo, falha completamente em situações de grande incerteza, de conhecimento incompleto.

Outra questão seria saber se estamos, geralmente, em modo de incerteza. Na complexidade do mundo real em que vivemos, é razoável estimar que estaremos, sempre que se trate de decidir que caminho tomar em grandes encruzilhadas, em modo de incerteza. E, aí, o utilitarismo falha como orientação. Porque a incerteza séria atrapalha decisivamente o cálculo das consequências.


(Referências. A menção a Pedro Galvão remete para o seu capítulo “Utilitarismo” na obra coletiva, organizada por João Cardoso Rosas, “Manual de Filosofia Política”, Almedina, Coimbra, 2013, 2ª edição, revista e aumentada. A menção a Gerard Delanty remete para o seu texto “Six political philosophies in search of a virus: Critical perspectives on the coronavirus pandemic”, na London School of Economics Europe in Question Series, Paper nº 156, de Maio 2020.)





Porfírio Silva, 20 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

16.6.20

Não deixar o medo vencer a política



A Presidente do Grupo Parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, fez várias afirmações importantes na cerimónia comemorativa do 25 de Abril, este ano outra vez na Assembleia da República. Quero daí aqui destacar um pequeno excerto: “Sentir medo é próprio de ser humano. Mesmo os que resistiram durante a ditadura não deixaram de ter medo, mas souberam não o deixar vencer. Também hoje é nossa responsabilidade não decidirmos condicionados pelo medo, e impedir a exploração do medo como arma política.” Este pronunciamento é decisivamente importante para a democracia. Explico-me.

O medo é uma ameaça política. Por uma razão muito forte: porque o medo é a negação da política democrática. A política democrática conta com a diversidade e com a pluralidade como elementos daquela sageza colectiva necessária para criar um espaço público suficientemente flexível e aberto para acolher gente diferente e escolhas diferentes. E pretende fazer isso sem deixar de respeitar as escolhas maioritárias, assumindo que as escolhas maioritárias têm, elas próprias, de ser respeitadoras da diversidade. O medo vai contra isso.

O medo é, fora dos tempos de guerra, a mais temível arma utilizável contra a liberdade individual. E não há verdadeiramente liberdades colectivas sem liberdades individuais. O medo cria a massa em transe, cria quase instantaneamente a pretensão de unanimidade e gera a reacção aplanadora contra quem sai do carreiro, assumido como um perigo (ou até um inimigo). O medo só vê um caminho e rejeita qualquer hesitação quanto a ele. E pode fazê-lo violentamente, porque diminui o campo do raciocínio.

Nada disto é apenas teórico, nada disto é apenas acerca dos outros. Lembrem-se, embora isso tenha sido afastado rapidamente, de que no princípio do confinamento se registaram casos de várias pessoas que, das janelas dos edifícios, apupavam outras pessoas que viam na rua – sem saber se essas pessoas tinham, ou não, algum dos variados bons motivos para andar na rua, mesmo que fossem perfeitamente respeitadores das normas em vigor. Lembrem-se que há quem continue a exigir que seja publicamente divulgado onde estão as pessoas infectadas com Covid, aparentemente porque acham que deve caber à população adoptar os comportamentos apropriados a evitar o risco – caminho directo para fenómenos de estigmatização activa.

É esta dinâmica que favorece que os regimes autoritários usem o medo como arma política. O medo baixa as defesas democráticas, isola as vozes contra a corrente. É, por isso, decisivo que demos uma resposta democrática a cada situação, por mais difícil que ela seja, para retirarmos combustível ao medo. Cortar o oxigénio ao medo passa, muito, pelas opções políticas que fazemos. Escolher as políticas que exercitem a democracia e que não se acomodem à excepção.

Ainda estamos no momento da dor: a pandemia ainda dói forte. Creio que este é, ainda, o momento de prolongar um grau importante de convergência entre diferentes forças políticas quanto à frente sanitária e quanto à resposta imediata à crise social e económica. Parece-me que seria ajustado que o plano de estabilização e o orçamento suplementar seguissem, ainda, esse guião. Mas, olhando para a frente, sair do medo como sombra sobre a política democrática é sair da excepção, sair do medo é exercitar as alternativas, praticar o pluralismo. Sejamos concretos: o que queremos dizer com isto?

Por um lado, a excessiva radicalização do debate público está a favorecer uma perigosa extrema-direita que temos por cá. Alguma esquerda da esquerda, que já confessou ter um programa eleitoral social-democrata, mas não se conforma com esse estatuto pós-revolucionário, alimenta um tom que vem engrossando face à movimentação protofascista. Pensam poder vencer nesse campo – mas não podem, porque os admiradores de Salazar e quejandos são, hoje, muito mais profissionais no uso de toda a parafernália tradicional da violência e da subversão da ordem democrática, acrescendo um uso intenso das novas armas da era digital. Podíamos discorrer mais sobre os inconvenientes da radicalização excessiva do debate político, em geral, mas, no dia de hoje, bastará dizer que ele é o alimento principal dos protofascistas caseiros.

Por outro lado, devemos assumir que a democracia precisa de maioria e de oposições. Não acredito nas virtudes de um esquema em que quase todas as forças políticas assumem responsabilidades ao mesmo tempo, numa grande nebulosa indefinida. Acredito, por isso, que os socialistas não devem deixar de investir na maioria parlamentar, em larga medida informal, que deu estabilidade à anterior legislatura. Avalio que a maioria parlamentar que fez da legislatura anterior uma etapa política bem-sucedida não foi uma vida fácil para nenhum dos partidos que a compunham. Contudo, deu frutos. Creio que pode dar mais – e que é necessário que os dê.

Sejamos claros: nada tenho contra as maiorias absolutas de um só partido, podem ser tão democráticas como maiorias mais diversificadas e serão necessárias em certos momentos. Não obstante, não creio que dêem bom resultado estratégias políticas orientadas discretamente por esse fito. Se se entende que a situação do país exige um governo de maioria absoluta, isso deve ser claramente explicado à cidadania e claramente pedido ao eleitorado que vote em conformidade. Creio que o PS sabe bem que a sugestão da maioria absoluta nas anteriores eleições não lhe deu vantagem de espécie alguma. E estou convicto de que o país pode passar por esta crise dolorosíssima que apenas estamos a começar a viver sem precisar de uma maioria absoluta. Não devemos, portanto, embarcar nessa ilusão. Seria, aliás, absurdo que alguém se agarrasse a sondagens realizadas durante os dias do ambiente de estado de excepção para cimentar tal aspiração, porque isso seria não perceber a volatilidade dos estados de alma destes períodos.

O que precisamos mesmo, porque a crise é e será duríssima para os portugueses, é de garantir que as condições políticas não faltam para darmos a resposta de que o país precisa. Navegar à vista, à espera de que corra bem, é algo que não podemos arriscar face à imensidão da tarefa e do enorme sofrimento que esta crise tem o potencial para causar aos portugueses. Não faz sentido tentar absorver o PSD para uma maioria de circunstância, porque cabe a esse partido tratar de construir-se como alternativa. Não faz sentido ficar nas mãos de partidos que ainda discutem se têm ideologia ou não têm ideologia, porque nem sabemos o que isso quer dizer.

O mais razoável é tentar repetir nesta legislatura uma maioria plural das esquerdas portuguesas, que deu excelentes resultados na anterior legislatura (apesar de algumas insuficiências), a partir das bases já lançadas pelo governo do PS: não queremos o regresso da austeridade, porque ele não resolve os problemas dos portugueses e de Portugal; queremos proteger o emprego, proteger os rendimentos, relançar a economia para darmos a volta a este cabo das tormentas. Será fácil? Nunca. Será politicamente simples, dada a tentação permanente de explorar as dificuldades da crise contra o governo do momento? Não será. Temos, precisamente porque não será fácil, a obrigação de tentar dar a maior solidez possível a uma legislatura onde temos pela frente desafios inesperados, a somar aos com que já contávamos.

É nossa responsabilidade não deixar que o medo vença a política democrática. O melhor caminho para vencer a crise é assumir sem reservas que o melhor sistema para decidir bem e concretizar bem é o sistema da pluralidade e do equilíbrio de poderes entre instituições, sistema dentro do qual devemos procurar, em cada momento, soluções de estabilidade que permitam respostas efectivas aos desafios existentes.


(Ilustração de Derek Brahney, modificada)


Porfírio Silva, 16 de Junho de 2020

Print Friendly and PDF

10.6.20

À crise, uma resposta democrática, não tecnocrática



A democracia nunca esteve suspensa, nem durante o estado de emergência. Deve-se isso, antes de mais, a um Governo que nunca pediu a declaração do estado de exceção e que, não o tendo obstaculizado, aceitou o encargo constitucional de executar o que estava declarado, fazendo dele o uso mais minimalista que se podia. Aliás, estes tempos de exceção, durante e até depois do estado de emergência, foram tempos de um especial esforço de concertação entre órgãos de soberania, entre instituições do Estado e parceiros sociais, envolvendo outras forças relevantes na orientação de grupos importantes da população. Concertação informal, mas concertação. O emblema mais claro desse esforço foi a análise periódica da situação epidemiológica com as autoridades de saúde e os cientistas que as aconselham, num periódico briefing nas instalações do Infarmed, onde, sem nenhuma obrigação formal, se notou um esforço bastante alargado dos dirigentes políticos em evitar passar mensagens desorientadoras à população.

Entretanto, o progressivo alívio das restrições impostas durante uma fase mais crítica da pandemia está a ser acompanhado, e bem, de um alívio do esforço de convergência política. A pluralidade da opinião política deve ser capaz de gerar melhores decisões do que o “consenso”. Embora a capacidade dos principais agentes políticos para baixar o nível de conflitualidade patente tenha sido relevante para uma gestão equilibrada dos primeiros meses desta saga (até porque temos, em modo corrente, um grau excessivo e demasiado permanente de cultivo da divergência), considero desejável que o debate plural das opções constitua a forma normal de apurar a qualidade da decisão. A pluralidade democrática não serve apenas para dar seguimento às nossas liberdades: deve ser, ainda, um bom método de preparação das decisões da comunidade – e, também, um bom meio de propiciar a sua implementação adequada.

Contudo, não nos enganemos. A crise económica e social provocada pela pandemia, mesmo que esta não volte a agravar-se no plano estritamente sanitário, propicia um novo aumento das tensões sociais e, consequentemente, das dificuldades em gerar convergências sustentáveis no plano político acerca dos caminhos apropriados para responder ao aumento das desigualdades sociais. Seria importante que o país fosse capaz de responder com mais inteligência coletiva do que na anterior crise, financeira e das dívidas soberanas, onde uma parte das forças políticas portuguesas trataram de aproveitar as dificuldades para aplicar um programa ideologicamente radical, propagando a necessidade do empobrecimento como saída da crise e defendendo a perda de direitos como estado permanente – tudo resumido no refrão “ir além da troika”.

Uma resposta coletiva mais inteligente passa pelas orientações políticas – recusar a estratégia deliberada de corte de rendimentos das pessoas, de aumento brutal de impostos sobre aqueles que nunca lhes podem fugir, e de destruição dos serviços públicos como expedientes para cortar despesa; apostar no investimento, público e privado, para encarar a economia para além do equilíbrio das finanças públicas (que também não é de desprezar).

Contudo, uma resposta coletiva inteligente também passa pelo reforço da democracia. Designadamente, a resposta à pandemia e à crise social e económica precisa de mais negociação, não menos. Precisa, por exemplo, de um esforço adicional de empregadores e trabalhadores para definir respostas apropriadas ao desafio. Um exemplo evidente: o teletrabalho, que alguns descobrem agora como salvação de tudo e mais alguma coisa.

Os compradores de utopias (ou distopias) baratas e sem certificado de conformidade estão excessivamente excitados com as vantagens do teletrabalho. Mas fazem-no alimentando muitos equívocos. O encerramento do trabalhador em casa, enclausurado num isolamento que nem a uma peça de uma máquina se deseja; a desagregação do coletivo a favor de um espalhamento da força de trabalho por um território indefinido e mal mapeado; a fragilização dos separadores entre vida pessoal, familiar e profissional, a favor de um estado de “sempre em pé” onde qualquer hora do dia ou da noite é boa para solicitar trabalho; as novas barreiras ao exercício concreto dos direitos, numa espécie de universalização do estatuto do freelancer (como já existe na compra e venda de trabalho online) – são riscos que não podem ser ignorados. Não é por acaso que, em lado nenhum do mundo, o teletrabalho se tornou a forma dominante de organização do trabalho.

Ao mesmo tempo, os que querem parar o vento com as mãos nuas fazem parceiros perfeitos dos entusiastas fáceis da mudança radical. Equívoco muito comum por estes dias é a ideia de que devemos optar entre trabalho presencial e teletrabalho. Sim ou não, tudo ou nada, uma forma ou outra. Ou trabalhas nas instalações da empresa ou trabalhas em casa. É, aliás, em larga medida, o equívoco dos que falam do ensino à distância como se ele devesse ser um outro mundo novo para a educação – como se o ensino à distância não tivesse que ser, apenas, uma das múltiplas formas de aprender e ensinar, um recurso, uma possibilidade, mas nunca modalidade exclusiva, nunca única, nunca em tempo algum para substituir a presença, o contacto, a interação, a emoção ao vivo e a cores. Porque essas são dimensões insubstituíveis do aprender e do ensinar. É igualmente bizarro que se pense na generalização do teletrabalho puro, sempre à distância.

Para enfrentar esses problemas temos de negociar. E negociar coletivamente. A negociação coletiva, que tem vindo a ser revalorizada nos últimos anos, é essencial que nesta conjuntura volte a estar na linha da frente. Voltando ao exemplo do teletrabalho: isolar o trabalhador face ao empregador sempre foi a técnica para enfraquecer a parte já de si mais fraca – e isso não pode acontecer na evolução do teletrabalho. Como era, até agora, largamente minoritário, a negociação das condições do teletrabalho era individualizada, mas, se é para ganhar maior expressão, deve ser objeto de negociação coletiva. Para proteção do trabalhador, mas também para ter lógica do ponto de vista do empregador: se, numa organização, a dado momento puderem estar em teletrabalho 15%, ou 20% ou 25% dos trabalhadores, essa realidade tem de ser gerida do ponto de vista da organização do conjunto, não faria sentido que se deixasse cair numa manta de retalhos pensada apenas caso a caso a forma de trabalhar nessas circunstâncias.

Defendo que esse impulso negocial tem de ser dado, porque o teletrabalho parcial (alguns dias na semana, alguns dias no mês, podendo ser mais em certos períodos do ano e menos noutros, combinando com trabalho presencial) pode ser muito favorável aos trabalhadores, poupando tempo em deslocações (tantas vezes esgotantes) e permitindo formas de organização do quotidiano propiciadoras da melhor conciliação entre vida pessoa, familiar e profissional. Como muitos de nós já fazemos, sem invocarmos o teletrabalho…

Estes são, de qualquer modo, apenas exemplos de como a resposta à crise, adaptando as nossas formas de organização, não deverá ser apenas uma resposta tecnocrática. Tem de ser uma resposta democrática. Uma resposta que revalorize a concertação, a negociação, o agir coletivo, o foco no bem comum e no reforço dos instrumentos que servem todos. Uma resposta democrática não seria aquela que tendesse a concentrar poderes, a estreitar ou a desvalorizar a representação – terá de ser uma resposta de ainda maior aposta na participação e na representação plural.

O termo “governança” não é muito bem acolhido na nossa comunidade de língua e de política, porque nunca conseguiu traduzir a ideia de que a democracia (representativa, participativa e deliberativa) pode ser valorizada, em vez de relativizada ou condicionada, por processos vários de formar decisão que vão além dos mecanismos explícitos e formais. É pena, porque a ideia de “governança” devia ser capaz de expressar a ideia de um ambiente de condições fluídas de democratização da decisão em planos que ultrapassam a teoria da democracia na sua dimensão institucional. Por exemplo, não deve ser possível legislar sobre as formas de construir coletivos decisionais onde “a voz do chefe” não seja um incentivo aos bajuladores e aos que vão sempre na onda do momento, nem deve ser possível legislar a favor da capacidade construtiva da crítica e da discordância no seio de coletivos de decisão plurais – mas, embora isso não se legisle, essas são, creio, dimensões importantes para alimentarmos as virtudes democráticas no seio das nossas instituições.

Reforçar a nossa resposta à crise passa por reforçar a democracia. E isso quer dizer tanta coisa! Quer dizer, certamente, que não faremos hoje como se fez na crise anterior, onde se procurou usar o cutelo das dificuldades económicas para cortar nos direitos e na participação. Até na União Europeia se usou a crise para substituir a igualdade entre Estados-Membros por uma hierarquia entre devedores e credores. Deverá querer dizer que precisamos sempre de mais democracia e nunca menos – e que isso importa nos dias difíceis que vivemos e vamos continuar a viver. O que os socialistas têm proposto, no Governo e no Parlamento, tem sido sinal de uma forte consciência da necessidade de continuar a luta por uma sociedade decente – mesmo nesta crise. Confio que nunca perderemos a noção de que isso passa, essencialmente, também pela exigência democrática que tem sido o nosso timbre.




Porfírio Silva, 10 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

4.6.20

Sociedades heterogéneas e sistema político





-1-

A incerteza é um vetor básico da vida em sociedades complexas. Murray Gell–Mann, Prémio Nobel da Física em 1969 pelo seu trabalho em física das partículas elementares e que veio a dedicar esforço de investigação aos sistemas complexos, terá dito uma vez: “imaginem como a física seria difícil se os eletrões pudessem pensar”. Os que consideram a sociedade com olho fisicalista distraem-se, frequentemente, de que temos, individualmente, um “motor interno” que nos distingue de outras “peças do mundo” no que toca ao prosseguimento do comportamento.

A complexidade do real, e a importância da incerteza, tornam-se mais nítidas em situações de crise como a que vivemos atualmente: uma crise onde se combina a incerteza acerca do mundo natural com a incerteza acerca do mundo social.

A incerteza acerca do mundo natural respeita ao vírus e à dinâmica da pandemia, dificultando uma compreensão mais clara acerca dos comportamentos adequados e das contramedidas possíveis (por exemplo, como obter uma vacina).

A incerteza acerca do mundo social respeita, por exemplo, a dificuldade de sabermos como estão a passar as pessoas que, pela sua condição, são menos visíveis no radar da nossa atenção: por exemplo, porque as nossas sociedades prestam insuficiente atenção aos velhos ou porque os pobres são geralmente desprezados no espaço público, servindo frequentemente mais de arma de arremesso político e sendo menos convocados a serem agentes de libertação da condição que, sendo a sua, é também a vergonha da nossa civilização. Quando, após a interrupção da escola presencial e a passagem à educação à distância, em cada escola se nota que alguns alunos “desaparecem”, deixam de estar contactáveis, aumenta a incerteza (nossa) na relação com eles e, pior ainda, terá aumentado a incerteza deles na relação com o mundo (com um estreitamento de oportunidades, esse certo, mas com uma dimensão preocupantemente incerta, porque não sabem até onde podem ser deixados cair).

Outro aspeto relevante da incerteza social é a dinâmica do medo. O medo é uma ferramenta ancestral no nosso equipamento animal, útil para darmos atenção aos perigos e não entrarmos demasiado distraidamente na toca do urso – ferramenta essa que tem sobrevivido à evolução natural. Só que, como muitas das nossas habilidades que subsistem de tempos muito recuados, nem sempre está adequado às circunstâncias do presente. O medo como caminho para a organização, é útil. O medo como estímulo ao salve-se quem puder pode ser o caminho da desgraça coletiva.

Consideremos um caso prático. Duzentas ou trezentas pessoas estão numa sala a assistir a um espetáculo de teatro ou cinema. O dono do estabelecimento apercebe-se de que deflagrou um incêndio. O que terá de fazer não é, certamente, gritar “incêndio, salvem-se”, mas encontrar uma forma de levar as pessoas a saírem o mais ordeiramente possível, porque a pressa e a precipitação conduzirão ao desastre, enquanto a calma e a ordem permitirão a resolução mais saudável para todos. Sabemos que há muitos casos onde a desgraça provém mais da confusão das massas do que das circunstâncias objetivas (esmagamentos em estádios, por exemplo). A pandemia, a uma escala global, tem paralelos com esta situação. Preservar a nossa vida e saúde, bem como a vida e saúde dos nossos, é sem dúvida prioritário. Mas só o conseguiremos fazer se preservarmos uma certa organização. Eu diria que se trata de dar bom uso à organização social e às instituições. A confiança nas autoridades e a preservação das instituições não é uma questão política qualquer: é a primeira medida de saúde pública, porque se a autoridade democrática quebrar e perder a confiança dos cidadãos passará a ser impossível organizar a resistência ao vírus. No cenário da sala de cinema, poderá haver sempre um espetador assustado que grita “incêndio, fujam”, achando-se esperto porque percebeu a situação, e assim espoletando a tragédia. Mas nenhum de nós deve querer ser esse tresloucado.

Estamos a propor a passividade dos cidadãos face às autoridades? De modo nenhum. Mas há, em geral em sociedades organizadas e especialmente em situações onde o medo é um fator importante, uma distribuição de papéis onde os responsáveis políticos têm um papel especialmente relevante. Trata-se de olhar para o futuro. Vou fazer um pequeno desvio conceptual para introduzir noções que me permitam depois precisar o que quero dizer com isto.

-2-

As nossas sociedades são heterogéneas de muitas maneiras. Até por serem sociedades mestiçadas, onde se cruzam pessoas de todo o mundo, de diferentes tradições, com diferentes valores. E, hoje, é impossível ter sociedades democráticas e abertas que não respeitem essa heterogeneidade. Contudo, a heterogeneidade social não é apenas um traço de diversidade cultural: alguma dessa heterogeneidade radica na desigualdade das condições de vida e de sobrevivência económica. Essa heterogeneidade tem consequências poderosas. Demos um exemplo.

Seja um banco de pesca costeira com uma pequena operação tradicional de um número reduzido de pescadores locais em pequenas embarcações. Os sistemas de recursos renováveis têm problemas de sustentabilidade: a taxa média de extração não deve exceder a taxa média de reposição do recurso. Em alguns casos, os investimentos efetuados na manutenção e reparação podem melhorar a sustentabilidade. Este tipo de recursos tem atributos subtrativos: os peixes capturados por um barco deixam de estar disponíveis para outros barcos. Muitas pessoas a explorar o recurso e utilização excessiva são riscos crónicos neste tipo de sistemas de recursos, bem como o risco de comportamentos oportunistas (extração orientada apenas para as vantagens imediatas de alguns, com desprezo pelo equilíbrio do uso coletivo). Nesta situação, algum tipo de coordenação entre os pescadores pode potenciar a utilização do recurso com respeito pela sustentabilidade do banco de pesca. Há muitos exemplos deste tipo de situação: propriedade comunal em prados e florestas de alta montanha; sistemas de irrigação em regiões semiáridas com extrema variação de precipitação de ano para ano, …

Toda esta categoria de situações apresenta uma característica fundamental: o uso sustentável do recurso assenta numa apropriada gestão do tempo – e numa expectativa temporal. Os apropriadores tradicionais do recurso (pescadores, agricultores, …) tencionam permanecer naquele local e pretendem manter aquele recurso como elemento importante dos seus meios de vida – e, além disso, têm a expectativa de que as gerações seguintes possam continuar a fazê-lo.

Há outra característica relevante destas situações: apesar de os apropriadores do recurso serem interdependentes (se um grupo de pescadores pesca em excesso, esse comportamento afeta os demais) é impossível (ou extremamente difícil) excluir outros apropriadores de terem acesso ao recurso. Quer dizer que podem entrar na exploração do recurso outros apropriadores com outros comportamentos: pescadores que trabalham para empresas maiores, operando com arrastões, que vêm de longe em vez de viverem nas aldeias próximas, que podem pescar ali ou em vários outros bancos alternativos, não encaram aquele recurso da mesma maneira – e não é fácil impedir que pesquem ali. Terão um efeito disruptivo, porque o horizonte temporal com que encaram o recurso é de muito mais curto prazo.

Estes dois grupos de pessoas estão em situações muito diferentes: os pescadores locais operam num horizonte temporal muito alargado (porque disso depende a preservação dos seus meios de sobrevivência) e os pescadores dos arrastões operam num horizonte temporal muito curto, porque têm outras oportunidades de continuar a sua atividade piscatória fora daquele local e independentemente da preservação daquele recurso.

Esta forte desigualdade na forma de avaliar a situação resulta de viverem em diferentes escalas temporais quanto aos seus meios de sobrevivência. Esta condição introduz um vetor de heterogeneidade no comportamento dos dois grupos de agentes na arena social. De seguida, vou introduzir, de forma breve e simplificada, uma maneira de olhar para este problema.

-3-

Elinor Ostrom, que foi Prémio Nobel da Economia em 2009, propôs que podemos pensar este tipo de situações recorrendo à noção de taxas de desconto (no seu livro, de 1990, intitulado Governing the commons. The evolution of institutions for collective action).

Apresentemos rapidamente o conceito, começando pelas suas aplicações financeiras.

A taxa de desconto é o inverso da taxa de juro. As taxas de juro permitem-nos calcular valores futuros: se tenho 200 euros hoje, quanto terei daqui a cinco anos se os empresto a alguém que me pagará juros a uma dada taxa? As taxas de desconto permitem calcular valores presentes: se quero ter 200 euros daqui a cinco anos, como resultado de os emprestar a alguém a uma dada taxa de juro, quanto preciso de mobilizar hoje para alcançar esse resultado? Por exemplo, se conseguir uma taxa de juro anual de 5%, durante cinco anos, e quiser ter 200 euros ao fim desse período, devo investir agora 149, 24 euros. Esse é o valor presente de 200 euros daqui a cinco anos a uma taxa de desconto de 5%.

Note-se esta relação fundamental: quando a taxa de desconto sobe, os valores presentes descem; quando a taxa de desconto desce, os valores presentes sobem. Quer dizer: preciso de aplicar agora 149,24 euros a uma taxa de 5% para ter 200 euros daqui a cinco anos, mas se a taxa for mais alta  precisarei agora de menos dinheiro para ter os 200 euros no mesmo tempo. Os pescadores locais têm uma taxa de desconto baixa, o seu horizonte temporal é longo, o valor atual do banco de pesca é alto – não o podem delapidar. Os pescadores dos arrastões têm um horizonte temporal curto para aquele banco de pesca, a sua taxa de desconto é alta, não pensam sofrer por exaurirem aquele banco de pesca. A taxa de desconto está relacionada com a existência, ou não, de usos alternativos para o investimento que se pode fazer num dado ativo num dado momento.

Os diferentes horizontes temporais com que trabalham diferentes pessoas influenciam aquilo que lhes parece proveitoso ou danoso e, por essa via, influenciam o respetivo comportamento. Mesmo sem este raciocínio um pouco formalizado, importa o seguinte: trabalhar com um horizonte temporal mais a curto prazo ou a mais longo prazo pode influenciar decisivamente o comportamento das pessoas – e, por essa via, podemos influenciar a sustentabilidade de um sistema coletivo. (Fizemos a demonstração desta ideia, com agentes artificiais, robôs, no artigo Institutional Robotics. Institutions for Social Robots. International Journal of Social Robotics, Volume 7 (5), pp. 825-840.)

Um especto interessante deste tipo de análise é o seguinte: alterar as taxas de desconto pode alterar toda a lógica da situação social. Se os limites de um recurso natural comum (um banco de pesca, por exemplo, ou um sistema de irrigação), ou a especificação das pessoas autorizadas a utilizá-lo, não estiverem claramente definidos, os apropriadores locais correm o risco de que as pessoas de fora tomem benfeitorias indevidas dos seus esforços para preservar o recurso. Os utilizadores locais podem, por exemplo, coordenar padrões (reduzir a apropriação e o abastecimento) para se manterem a níveis sustentáveis de exploração e para evitar a destruição do recurso. Este esforço dos apropriadores locais é um passo significativo devido às suas expectativas a longo prazo sobre o recurso: as suas taxas de desconto são baixas. Se estranhos, sem ligações duradouras à comunidade local, agirem de forma destrutiva (apropriação rápida), os apropriadores locais podem abandonar o seu compromisso com o comportamento prudente e começar a extrair o mais rápido que puderem. O horizonte temporal mudou, as expectativas a longo prazo desapareceram, e o consumo imediato torna-se a única alternativa que parece razoável. Esta situação empurra as taxas de desconto dos utilizadores para 100%. Para usar uma linguagem da Teoria dos Jogos, a estratégia dominante de todos os participantes é agora a de utilizar o recurso intensamente. Tudo, agora, se resolve numa só jogada imediatista.

O que é que isto tem a ver com a situação que vivemos hoje?

-4-

A heterogeneidade na sociedade implica coexistência de pessoas e grupos com expectativas diferenciadas e com horizontes temporais distintos para a consecução de certas metas. As condições sociais básicas, diferentes de pessoa para pessoa ou de grupo para grupo, afetam a pressa com que diferentes indivíduos enfrentam as situações. O medo, sendo uma condição comum aos humanos, também é modalizado pelas condições objetivas de vida. Para o dizer de forma brutal: os pobres não têm direito a ter medo. Mesmo que achem que é mais seguro ficar em casa, provavelmente têm de sair para ir trabalhar. O medo não é apenas um dado biológico incrustado nas camadas mais primitivas do nosso cérebro; o medo, até que ponto lhe obedecemos ou somos obrigados a desrespeitar os seus conselhos, é socialmente modificado. A fome também é biológica, sendo social a maneira como conseguimos, ou não, aplacá-la. Pude perceber, mas tive dificuldade em processar, o apelo, permanentemente difundido durante a fase mais apertada do confinamento, que dizia “fique em casa” – sabendo que milhões de pessoas tinham de continuar a sair de casa para trabalhar e para permitir que o país não fosse interrompido.

Essa heterogeneidade não se gere espontaneamente. É preciso organização. Instituições. Política. É preciso um rumo. O primeiro-ministro resumiu, há poucos dias, no parlamento, um aspeto essencial dessa gestão desta crise com uma única frase: “Num primeiro momento era preciso controlar a epidemia sem matar a economia, tal como agora é fundamental relançar a economia sem deixar descontrolar a pandemia.” Para fazer isso é precisa uma visão de conjunto do rumo do país. O que quer isso dizer? Quer dizer que a comunidade tem de conseguir um comportamento global que não violente nenhum dos grupos que a ela pertencem. Consoante a sua condição de vida, diferentes pessoas e grupos operam com horizontes temporais distintos, traduzindo-se isso em preferências diferentes quanto ao equilíbrio entre segurança sanitária e segurança económica. As instituições políticas, e aqueles que desempenham funções nesse quadro, têm de fazer a conjugação possível entre essas díspares preferências enraizadas em diferentes realidades de vida.

Não estamos todos no mesmo pé quanto à forma como a pandemia e a crise económica nos atingem – mas não podemos prescindir da responsabilidade coletiva de igualizar aquilo que é brutalmente desigual se nada fizermos como comunidade política. Para isso serve a ação política: para darmos coesão a uma comunidade onde a heterogeneidade face às condições básicas de vida implica que o sofrimento seja muito mal distribuído, hoje como ontem. Para voltar ao exemplo do banco de pesca: não podemos deixar que os apropriadores estranhos à comunidade local destruam o seu equilíbrio de vida e depois, simplesmente, fujam para outro lado qualquer, como predadores. É isso que devem fazer as instituições políticas de uma sociedade decente. Porque isso não acontece espontaneamente, como os ideólogos de um certo liberalismo económico acreditam em modo metafísico e apesar de desmentidos pela realidade. Não podemos ficar, simplesmente, a olhar.




Porfírio Silva, 4 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF

2.6.20

Melhorar a democracia depois da pandemia



1. Bem sei que estão todos virados para as coisas concretas. A crise resultante da pandemia deixou muito sofrimento, acentuado ou criado de novo, patente ou latente, à mostra ou escondido, urgente ou em processamento, vivido no plano pessoal ou no plano colectivo, agravado pelas desigualdades anteriores – e todos queremos soluções, acções concretas.

Contudo, a meu ver, a sustentabilidade das respostas concretas tem de assentar na sustentabilidade do processo político. A crise não vai ser ultrapassada em meia dúzia de meses e, por isso, precisamos de uma capacidade duradoura para encetar um caminho e não nos perdermos a meio. Essa duração e persistência tem de ser dada pela sustentabilidade do processo político.

2. Como já repetimos até à náusea – e é verdade –, a democracia não está suspensa. Quer dizer que não renunciamos ao debate, ao contraditório, à mútua análise crítica. A divergência é o melhor caminho para a convergência. Por isso não gosto de colocar como objectivo o consenso, gosto de pensar que a unidade substantiva é a agregação inteligente das diferenças. Nunca o unanimismo, nunca a anulação das diferenças de valores, sempre a disposição para construir as sobreposições capazes de aumentar a coesão da sociedade na resposta aos desafios. Isso implica não darmos igual valor a cada vírgula das nossas propostas e estarmos abertos tanto para não renunciar ao que entendemos essencial como para prescindir do que pode ser feito como outros propõem e não como nós idealizámos inicialmente.

Nada disto é muito novo em relação ao que tenho dito nos últimos anos, mesmo nos tempos mais altos da “Geringonça”: sou a favor de um compromisso político claro à esquerda e, ao mesmo tempo, sou a favor de convergências mais amplas do que as maiorias parlamentares do momento para todas as questões decisivas que se jogam no plano das gerações e não no plano das legislaturas. Para que isto se possa praticar, a democracia pluralista tem de ser competitiva – tem de haver programas políticos diferentes que ofereçam opções, escolhas, à cidadania. Mas o pluralismo não precisa de uma competição exacerbada, nem de uma competição permanente, e pode florescer perfeitamente com uma combinação de convergência e divergência. Pode haver oposição eficaz que não está sempre contra tudo e que não rejeita dar o seu acordo a muita coisa; pode haver governos e maiorias parlamentares que se afirmam por acolher propostas vindas de outras forças políticas.

3. Contudo, pelo que ficou dito até aqui, pode parecer que a sustentabilidade do processo político é coisa que se decide dentro de uma arena especificamente política, entre partidos políticos e estritamente no seio das instituições políticas da República. Não é essa a mensagem que pretendo passar. Pelo contrário, pretendo sublinhar que o debate das questões da coisa pública deve incluir amplamente outros intervenientes e outros contribuintes. O debate político deve ser mais inclusivo, trazendo abordagens que costumam ver-se, e ser vistas, como existências fora da política. Ou, pelo menos, fora da política partidária e da política das instituições especificamente desenhadas para o efeito.

Durante a fase mais aguda da pandemia, a democracia portuguesa dotou-se, de forma quase informal, de um mecanismo de concertação inusual para os usos correntes no nosso tempo: os briefings da saúde (no Infarmed). Aí, autoridades de saúde e cientistas que as aconselham partilham informação e análise com dirigentes das mais altas instituições do Estado, das forças políticas e de variadas forças sociais. Fora da praça pública, sem votações, com uma quase-argumentação das diferenças que nunca chega a formalizar-se como debate, sem forçar ninguém a coisa nenhuma, essas reuniões facilitaram uma compreensão partilhada da situação, bem como uma acomodação suave, quase implícita, das linhas de decisão em preparação. Num contexto de grande incerteza, esse mecanismo assumiu a decisão política como um processo que não pode isolar-se de outras dinâmicas sociais, nem pode prescindir do conhecimento disponível em cada momento. Creio que seria útil que colectivamente aprendêssemos com essa experiência – e que fossemos capazes de prolongar os seus aspectos positivos. Não queremos continuar em emergência, mas queremos não desaprender o que se mostrou útil.

Infelizmente, há, da parte de muitos agentes políticos (mesmo que não se assumam formalmente como tal), uma grande pressa em retornar a formas duras de competição política. Cansados da convergência, aceleram a divergência. Sintomática é a reacção apressada de alguns ao conhecimento de que o Primeiro-Ministro tem um conselheiro especial para ajudar a montar uma estratégia para recuperar a economia. O problema é que ele não é ministro, parece que não é remunerado, trabalhou nos petróleos, parece que – grande escândalo – escreve poesia… Qual dos pecados o maior?!

Pela minha parte, o que sublinho é que esse pivô pode funcionar como uma instância de construção de convergências de desenho do futuro que não esteja limitada aos agentes políticos como tal reconhecidos pelo quadro institucional, instância essa que pode tricotar sugestões várias sem implicar um mecanismo de perdas e ganhos entre concorrentes.

É verdade que partidos houve, à direita e à esquerda, que logo disseram que não se deteriam no formalismo do mecanismo, reservando-se para as questões de substância. Mas está difícil avançar na compreensão de que precisamos de mecanismos mais sofisticados para alimentar a decisão política com materiais mais diversificados, mais cooperativos e menos adversativos, para podermos avançar nas convergências – até para podermos, depois, dedicar mais tempo e dedicação a um tratamento de melhor qualidade das verdadeiras divergências.

4. De qualquer modo, porque o melhoramento da democracia exige acção em muitas frentes, ainda quero acrescentar uma palavra sobre o funcionamento do próprio sistema político.

A aflição da pandemia colocou o poder executivo no centro da acção. Foi adequado: o Governo tinha de ter as condições para gerir ao minuto a resposta, complexa e delicada, à ameaça sanitária. Os mecanismos de concertação informal permitiram dar solidez a esse caminho, mas o Governo foi o centro efectivo da resposta colectiva, que tinha de ser bem ordenada para ter condições de sucesso. Agora, é preciso crescer para lá desse mecanismo de urgência. O Primeiro-Ministro prestou um serviço ao país colocando-se como líder visível da resposta à pandemia, dando confiança às pessoas e tornando a mensagem o mais clara possível. Esse papel do chefe do Governo pode continuar como reforço da coordenação do executivo, se ele o entender necessário (nunca há coordenação a mais numa equipa governativa). Mas o foco do sistema político no executivo tem de ser reequilibrado.

O parlamento não pode perder a centralidade que ganhou nos últimos anos. O parlamento é a instituição política de topo que dá voz à diversidade de opinião da nossa comunidade política e, por isso, desempenha um papel insubstituível na nossa democracia. O objectivo de melhorar a capacidade de produzir convergências, diversificando os actores desse processo (como defendi nos pontos anteriores), não pode ser feito contornando a própria diversidade político-partidária que encontra expressão na Assembleia da República. O processo de construção de convergências não pode ser servido por abordagens tecnocráticas, que fazem espelho das abordagens populistas em desvalorizarem o pluralismo como elemento constitutivo da democracia. O próprio estado de emergência, o estado de excepção que experimentámos durante um período crítico da pandemia, não podia, como não pôde, desvirtuar as relações constitucionalmente previstas entre órgãos de soberania.

O que ganhámos nestes meses, em termos de consolidação da maturidade da nossa democracia, tem de ser potenciado, nunca desperdiçado. Até os deputados eleitos nas mesmas listas que os membros do Governo desempenham uma função na arena da diversidade democrática que não se confunde com a função executiva. Creio que, entre socialistas, estamos bem entendidos sobre isto – e daí vem parte importante do contributo que temos dado à democracia portuguesa.



Porfírio Silva, 2 de Junho de 2020
Print Friendly and PDF