27.3.20

Orgulho na escola pública



Os deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Comissão de Educação da Assembleia da República contactaram, durante a semana que agora termina, umas largas dezenas de Agrupamentos de Escolas e Escolas não agrupadas, por todo o país. Nunca presencialmente, contrariamente ao que fazemos habitualmente, mas por telefone ou meio similar.

Esses contactos serviram para aferir da situação concreta no terreno, neste momento de grande dificuldade. Tendo feito pessoalmente alguns desses contactos, tendo lido os relatos dos meus colegas de bancada e tendo reunido com eles (por vídeoconferência, várias vezes nestes dias) para analisar a situação, sublinho, desde já, os seguintes aspectos:

- os profissionais da escola pública, desde logo os professores, deram uma resposta extraordinária ao desafio com que foram confrontados, fazendo das tripas coração para não deixar sem apoio os seus alunos; mesmo com falta de meios, fizeram por não interromper as aprendizagens... chegando até a cansar as famílias com tantas propostas de trabalho!

- as persistentes desigualdades sociais que caracterizam o nosso país (como a generalidade dos outros) acentuam-se e tornam-se mais presentes neste momento: os que "estão digitalizados" e os que não têm equipamentos e/ou acesso capaz à internet, vivem em realidades muito diferentes - mas não é só isso: o contexto familiar empurra uns para cima e puxa outros para baixo, o que constitui o principal desafio a que a nossa escola tem de ser capaz de responder para cumprir a sua missão; os casos mais extremos são os dos "desaparecidos", alunos que, desde a interrupção da escola presencial não estão localizáveis pelos seus professores, apesar do esforço para os contactar;

- as escolas, orientadas pelo Ministério da Educação, criaram uma rede de apoio básico (refeições e acolhimento de filhos de profissionais em funções prioritárias) que é decisiva: apesar de a procura, nesta primeira fase, não ter sido grande (considerando a grande dimensão da população envolvida), com o passar do tempo a procura vai aumentar e a existência desta resposta vai revelar-se crucial;

- há problemas muito difíceis de resolver, designadamente no que concerne a aprendizagens que envolvem componentes práticas que não se podem concretizar a distância (como, por exenmplo, no ensino profissional) e no que toca aos mais pequenos que, fechados em casa, perdem assim muitas oportunidades de estimulação que são fundamentais ao seu desenvolvimento;

- a escola é muito mais do que um local de aquisição de conhecimentos: a escola é uma experiência total, uma âncora para muitas crianças e jovens, principalmente para todos aqueles que têm vidas difíceis fora da escola e ali encontram adultos de referência, atenção e cuidado.

Trata-se, agora, de continuar. Ninguém vai desistir agora. Como afirmou hoje o Secretário de Estado da Educação, João Costa, "o terceiro período vai acontecer, as notas do segundo período não são as notas finais". Essa determinação é essencial, não podemos permitir que as nossas crianças e jovens fiquem a marcar passo nesta fase tão importante das suas vidas. Vai ser fácil? Não vai. Mas, trabalhando em equipa, adoptando as adaptações necessárias, com metodologias para que (quase) ninguém estava preparado, vamos conseguir. O Ministério da Educação já fez chegar às escolas o ROTEIRO - 8Princípios Orientadores para a Implementação do Ensino a Distância (E@D) nas Escolas (clicar no título para aceder). Em conversas com directores e professores, já hoje, pude notar que a marcação de um rumo, de uma linha para o que é preciso fazer, constitui um incentivo mobilizador.

Isto não acabou e não vai ser fácil. Entretanto, o que se está a conseguir fazer, com trabalho colectivo e determinação, faz-nos ter orgulho na escola pública. Já hoje, dizia-me um director de agrupamento: "o que me preocupa é que nós éramos a melhor parte da vida destes meninos". A escola pública vai encontrar os caminhos para continuar/voltar a ser "a melhor parte da vida" de tantas crianças e jovens que merecem a sua oportunidade.

Obrigado a todos os que fazem escola em todas as circunstâncias!

Porfírio Silva, 27 de Março de 2020
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21.3.20

Voluntários à força



O presidente do CDS alistou-se como voluntário para ajudar as Forças Armadas no combate à pandemia.
Não quero, de modo algum, ser ofensivo para a pessoa em causa, mas isto merece uma reflexão e  farei essa reflexão sem adoçar o que penso desse gesto que, de repente, pode parecer tão bondoso e altruísta.

E a reflexão é esta: o baixo valor que damos às instituições está bem espelhado nesta decisão. E, aqui, essa desvalorização parte de dentro das próprias instituições. O meu ponto é que acredito que um partido político com representação parlamentar e com uma rede de contactos em todo o país, capaz de recolher informação técnica de especialistas e (eventualmente) de a analisar, capaz de contactar com pessoas e entidades de todo o país para ter uma leitura fina do estado da sociedade, da economia, das famílias, do estado dos serviços de resposta, capaz de pensar sobre essa informação e tentar perceber o que seria desejável fazer, capaz de ajudar o governo e as autoridades através do apoio ou através da crítica e da sugestão de alternativas, acredito que um partido político agindo assim pode ser um elemento importante na resposta das instituições democráticas a esta situação tremenda que vivemos coletivamente.
Se o presidente do CDS assume uma responsabilidade específica como presidente do CDS nesta circunstância, deve entender que essa responsabilidade é pesada e não basta exercê-la nos intervalos de outra função. Em princípio, quando alguém assume uma função de tal responsabilidade, é porque crê que o fará melhor do que outros – e, nesse caso, não pode desviar-se da sua função em momentos cruciais. Acredito que haja mais pessoas capacitadas para serem voluntários nas Forças Armadas do que pessoas capacitadas para serem presidentes de um partido histórico da democracia portuguesa, como é o CDS. E, portanto, das duas uma: ou o presidente do CDS entende que não constitui um valor acrescentado como presidente do CDS… ou não devia desviar-se do seu posto.
Nada disto é contra ou a favor da pessoa, do indivíduo concretamente em questão: o que digo é sobre o exercício da função, daquela responsabilidade assumida neste ou naquele momento por esta ou aquela pessoa. O presidente do CDS terá declarado que “não vira as costas ao país em momentos difíceis”, justificando assim a sua opção. Ser presidente do CDS, a tempo inteiro e não a tempo parcial, não seria, certamente, virar as costas ao país. A explicação, confesso, parece-me inexplicável. Ser presidente de um partido político responsável deve ser algo a dar muitíssimas horas de trabalho por dia neste momento (em qualquer momento).

A verdade é que andamos há muito tempo a perceber mal onde devemos, como comunidade, investir simbolicamente. A forma como falamos de muitos assuntos desvela a disfunção. Dou um exemplo, virado para outro lado do espectro político. Quando se cortaram salários ou pensões, a esquerda da esquerda falava frequentemente disso com o epíteto “roubo”. Era o roubo dos salários, era o roubo das pensões. Parece uma escolha de palavras fortes, capazes de sublinhar a gravidade da decisão. Mas, a meu ver, é incompreensível: porque é que entendemos que é mais pesado dizer “é um roubo” do que dizer “é uma injustiça”? Creio que a acusação de injustiça haveria de ser mais pesada, mais solene, mais grave do que a acusação de roubo. Mas, sistematicamente, acha-se mais grave uma acusação de roubo do que uma acusação de injustiça. Desvaloriza-se aquilo que mais devia contar como um “pecado” social…

Para quem quer que tenha qualquer responsabilidade pública, este momento é de especial delicadeza: fácil será falhar, fácil será fazer menos do que a realidade exige, por muito que se faça. Fácil será enganarmo-nos. Difícil será termos êxito e contermos o vento com as nossas poucas mãos. Mas não podemos vestir agora outra pele, procurar agora um refúgio onde pareça mais direto o efeito do que fazemos. Porque manter as instituições a funcionar pode parecer pouco, mas é indispensável para contribuirmos para um país que se organiza e resiste. Esta pandemia não põe apenas à prova os nossos sistemas de saúde, põe à prova uma civilização, os laços sociais, a capacidade de sermos comunidade. É isso que está em causa e nisso devem pensar todos os que foram apanhados no exercício de alguma responsabilidade pública. Creio que não devemos encarar as nossas responsabilidades como um suplemento de alguma outra atividade, mesmo a mais nobremente justificada.

Acredito na boa e sincera motivação pessoal do presidente do CDS. Não concordo com esta sua  opção.


Porfírio Silva, 21 de Março de 2020
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17.3.20

Ainda sobre o estado de emergência



O meu texto de ontem aqui no blogue (Vamos para o estado de emergência?) procurava principalmente dar alguma informação de base sobre o estado de emergência, um dos estados de exceção constitucional. Hoje, diversamente, procurarei fundamentalmente refletir sobre a questão e dar os meus critérios de apreciação da mesma.

Em primeiro lugar, importa preservar um elevado grau de concertação entre órgãos de soberania, aspeto importante na medida em que, para eventualmente decretar o estado de emergência, estarão necessariamente envolvidos Presidente da República, Governo e Assembleia da República. Por isso, não defenderei nenhum estremar de posições em caso de diferença de avaliação, entendendo preferível um grande esforço de aproximação para convergir numa decisão dentro da razoabilidade. Não obstante, julgo que temos a responsabilidade de falar claro sobre o que há a decidir (pelo menos, no meu caso, tendo de votar as decisões parlamentares indispensáveis).

Em segundo lugar, creio ser importante que os portugueses em geral façam um “curso rápido” de direito constitucional e procurem informar-se acerca do que está em causa. É preciso ter bem presente que qualquer um dos estados de exceção, seja o estado de sítio ou o estado de emergência, é fundamentalmente um regime de suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias. Ou seja: a legalidade democrática é temporariamente “deformada”, em face de uma necessidade imperiosa que assim o exige. Note-se: desde que tudo se decida segundo as formas previstas na Constituição, não se fere a legalidade. Contudo, há aqui um ponto essencial: qualquer limitação dos direitos, liberdades e garantias tem de assentar numa justificação clara acerca da sua indispensabilidade. Isto é, para qualquer limitação da normalidade constitucional deve ser explicitada a razão pela qual os efeitos pretendidos não podem ser alcançados por meios dentro da normalidade. À partida, entendo que não se deveria recorrer a um estado de exceção para fazer qualquer coisa que possa ser feita com outros institutos legais, designadamente ao abrigo das situações previstas no enquadramento legal da proteção civil.
Neste quadro, repito aqui algo que já escrevi ontem: não há UM estado de emergência, não há um formato fixo de estado de emergência; o decreto que o declare tem de especificar claramente o seu conteúdo, quais os direitos, liberdades e garantias cujo exercício é suspenso, e em que modalidade. É esse conteúdo concreto que, a meu ver, tem de ser cabalmente explicado. As garantias embebidas na Constituição foram conquistadas a muito custo, têm um enorme valor civilizacional e são mais fáceis de fragilizar do que possamos pensar: por isso só devem ser suspensas com necessidade comprovada e explicitada. Não deitemos fora o civismo demonstrado pela esmagadora maioria dos portugueses, querendo fazer “à força” aquilo que os nossos concidadãos estão disponíveis para fazer voluntariamente por perceberem o que está em causa.

Em terceiro lugar, esta situação apela a uma enorme responsabilidade de todos aqueles que têm o dever de participar no processo de decisão. Não é tempo para ir no rebanho, é tempo de pensar e assumir responsabilidades. Vender ilusões para sossegar artificialmente os nossos concidadãos seria uma cobardia. Será, provavelmente, extremamente popular clamar pelo estado de emergência. Mas declarar o estado de emergência não muda o estado do mundo. O vírus não conhece os nossos estados de exceção constitucional e não se comove com eles. Se alguém agita a declaração do estado de emergência como panaceia, estará a induzir em erro a cidadania. Quem pede o estado de emergência haverá de dizer exatamente o que quer que se faça com ele. O filósofo Daniel Innerarity escreveu há pouco no Twitter, sobre o momento atual, que estamos a cometer dois grandes erros conceptuais: definir isto como uma guerra e como uma questão de solidariedade entre indivíduos. E acrescenta: isto é, antes, uma questão de inteligência, organização e proteção pública. Concordo e merece a nossa reflexão.

Vejamos um exemplo prático. Duzentas ou trezentas pessoas estão numa sala a assistir a um espetáculo de teatro ou cinema. O dono do estabelecimento apercebe-se de que deflagrou um incêndio. O que terá de fazer não é, certamente, gritar “incêndio, salvem-se”, mas encontrar uma forma de levar as pessoas a saírem o mais ordeiramente possível, porque a pressa e a precipitação conduzirão ao desastre, enquanto a calma e a ordem permitirão a resolução mais saudável para todos. Sabemos que há muitos casos onde a desgraça provém mais da confusão das massas do que das circunstâncias objetivas (esmagamentos em estádios, por exemplo).
Vivemos um momento destes, agora a uma escala global. Preservar a nossa vida e saúde, bem como a vida e saúde dos nossos, é sem dúvida prioritário. Mas só o conseguiremos fazer se preservarmos a organização social e as instituições. A confiança nas autoridades e a preservação das instituições não é uma questão política qualquer: é a primeira medida de saúde pública, porque se a autoridade democrática quebrar e perder a confiança dos cidadãos passará a ser impossível organizar a resistência ao vírus.
No cenário da sala de cinema, poderá haver sempre um espetador assustado, ou um candidato a iluminado, que grita “incêndio, fujam”, achando-se esperto porque percebeu a situação, e assim espoletando a tragédia. Mas nenhum de nós deve querer ser esse tresloucado.

Em todo o caso, o estado de emergência será executado pelo Governo. Ao ser decretado o estado de emergência, o Governo não fica obrigado a fazer isto ou aquilo, apenas lhe é dada essa faculdade. Felizmente, temos a dirigir o Governo um democrata, que não abusará dessa faculdade. Não estaria tão confiante se lá estivessem outros, pensando mesmo em alguns que já por lá passaram. Confio que António Costa tem uma tão forte pulsão pela liberdade de todos nós como teve Mário Soares. E isto é tão importante!


Porfírio Silva, 17 de março de 2020
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16.3.20

Vamos para o estado de emergência?




Estando na agenda pública a possibilidade de declaração do estado de emergência, em resposta à situação sanitária e social criada pela pandemia Covid-19, convém termos informação básica sobre o que está em causa. Isso talvez ajude a equilibrar comportamentos que se caracterizam por exigir tudo o que pareça “uma resposta mais dura”, por vezes sem um raciocínio claro acerca do que se quer obter com cada medida. Uma vez que o estado de emergência é, sempre, um desvio face à normalidade do funcionamento do Estado democrático, convém termos elementos para refletir sobre o que isso significa e como se desenrola. É esse o modesto objetivo deste texto.

As situações de exceção constitucional

O estado de emergência, junto com o estado de sítio, são as situações de exceção constitucional previstas na Constituição da República Portuguesa (CRP). Só nessas situações de exceção podem os órgãos de soberania limitar o exercício de direitos, liberdade e garantias de que todos os cidadãos são titulares. O que os estados de exceção permitem é, face a uma ameaça à comunidade, suspender temporariamente alguns dos direitos dos cidadãos quando isso seja necessário para contrariar tal ameaça. Essa circunstância é regulada pelo artigo 19º da CRP e pela lei. A CRP determina, designadamente, que todos os procedimentos relativos a estes estados de exceção têm de respeitar os próprios preceitos constitucionais, especifica quais os tipos de situações que podem permitir a declaração de um destes estados de exceção, impõe o princípio da proporcionalidade (desviar-se da normalidade constitucional só na medida em que seja estritamente necessário para os fins em causa), especifica quais os direitos dos cidadãos que nunca podem ser ofendidos pelo estado de exceção.
Na medida em que a lei que especifica os preceitos constitucionais sobre os estados de exceção traduz tudo o que vem na CRP, vamos agora virar-nos para a lei orgânica que faz esse trabalho.

O regime do estado de sítio e do estado de emergência definido na lei

O regime dos estados de exceção em vigor é definido pela lei nº 44/86, de 30 de Setembro, modificada pela lei orgânica nº 1/2011, de 30 de Novembro e, depois, pela lei orgânica nº 1/2012, de 11 de Maio.
Como dissemos, qualquer um dos estados de exceção só pode ser declarado para enfrentar uma ameaça grave à comunidade, o que vem assim descrito no artigo 1º da lei respetivo: “nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”.

O que acontece quando é declarado um dos estados de exceção?

Quais são as diferenças entre o estado de sítio e o estado de emergência? Vamos por partes.
Primeiro, quais são as situações que justificam a declaração de cada um dos estados de exceção?
O estado de sítio pode ser declarado “quando se verifiquem ou estejam iminentes atos de força ou insurreição que ponham em causa a soberania, a independência, a integridade territorial ou a ordem constitucional democrática e não possam ser eliminados pelos meios normais previstos na Constituição e na lei” (artigo 8º, número 1).
Já o estado de emergência “é declarado quando se verifiquem situações de menor gravidade, nomeadamente quando se verifiquem ou ameacem verificar-se casos de calamidade pública” (artigo 9º, número 1).
Segundo, quais são as alterações ao funcionamento do Estado democrático introduzidas pela declaração de cada um dos estados de exceção?

Pela declaração do estado de sítio será suspenso, total ou parcialmente, ou sujeito a restrições, o exercício de direitos, liberdades e garantias e as autoridades civis são substituídas ou ficam subordinadas às autoridades militares, que também tomam o comando das forças de segurança (artigo 8º, números 2, 3 e 4).
Pela declaração do estado de emergência, só pode ser determinada uma suspensão parcial do exercício de direitos, liberdades e garantias, prevendo-se a possibilidade de as autoridades administrativas civis verem os seus poderes reforçados e terem um apoio suplementar por parte das Forças Armadas (artigo 9º, número 2).

Há, de qualquer modo, certos elementos dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos que não podem, em caso algum, ser afetados pela declaração de um dos estados de exceção: “em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” (artigo 2º, número 1).

Há, ainda, outros direitos, liberdades e garantias que podem ser afetados pela declaração de um dos estados de exceção, mas essas limitações têm de respeitar certas balizas. É instrutivo citar essas disposições, para tornar mais claro o que pode estar em causa (artigo 2º, número 2): a fixação de residência ou detenção de pessoas com fundamento em violação das normas de segurança em vigor será sempre comunicada ao juiz de instrução competente, no prazo máximo de 24 horas após a ocorrência, assegurando-se designadamente o direito de habeas corpus; b) a realização de buscas domiciliárias e a recolha dos demais meios de obtenção de prova serão reduzidas a auto, na presença de duas testemunhas, sempre que possível residentes na respetiva área, e comunicadas ao juiz de instrução, acompanhadas de informação sobre as causas e os resultados respetivos; c) quando se estabeleça o condicionamento ou a interdição do trânsito de pessoas e da circulação de veículos, cabe às autoridades assegurar os meios necessários ao cumprimento do disposto na declaração, particularmente no tocante ao transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afetados; d) poderá ser suspenso qualquer tipo de publicações, emissões de rádio e televisão e espetáculos cinematográficos ou teatrais, bem como ser ordenada a apreensão de quaisquer publicações, não podendo estas medidas englobar qualquer forma de censura prévia; e) as reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia.

Como se entra num estado de exceção constitucional?

O estado de sítio ou de emergência só pode ser declarado por decreto do Presidente da República, depois de ouvido o Governo e carecendo de autorização da Assembleia da República (artigo 10º). O estado de exceção só pode ser declarado por um período máximo de 15 dias, embora possa ser renovado por períodos sucessivos (artigo 5º), e termina no fim do prazo fixado pelo decreto que o declara, ou antes disso, caso cessem as circunstâncias que o motivaram (carecendo, para isso, de um decreto presidencial específico para o efeito). Para prolongar ou agravar as limitações do estado de sítio ou de emergência, seguem-se os mesmos trâmites e exigências da declaração inicial, mas basta um decreto presidencial para revogar ou aligeirar as limitações anteriormente impostas.

A declaração de estado de sítio ou de estado de emergência tem, obrigatoriamente, de explicitar os fundamentos invocados, de acordo com o que prevê a Constituição, e conter “clara e expressamente” os seguintes elementos: a) Caracterização e fundamentação do estado declarado; b) Âmbito territorial; c) Duração; d) Especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso ou restringido; e) Determinação, no estado de sítio, dos poderes conferidos às autoridades militares, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º; f) Determinação, no estado de emergência, do grau de reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e do apoio às mesmas pelas Forças Armadas, sendo caso disso (artigo 14º).

Fazer o necessário, mas não mais do que o necessário

O Artigo 3.º da lei, sobre “Proporcionalidade e adequação das medidas”, concretiza o princípio básico de que não se pode limitar o funcionamento do Estado democrático mais do que o estritamente necessário para fazer face à ameaça concreta em presença e para restabelecer a normalidade.

A execução do estado de sítio ou de emergência compete ao Governo, que manterá informado dos seus atos o Presidente da República e a Assembleia da República. O artigo 18º estatui o seguinte: “Em estado de sítio ou em estado de emergência que abranja todo o território nacional, o Conselho Superior de Defesa Nacional mantém-se em sessão permanente. Mantêm-se igualmente em sessão permanente, com vista ao pleno exercício das suas competências de defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos, a Procuradoria-Geral da República e o Serviço do Provedor de Justiça.”
Cabe à Assembleia da República apreciar, posteriormente, a forma como foi aplicado algum dos estados de exceção. Até 15 dias após o termo do estado de sítio ou de emergência, ou, tendo havido renovação, após o termo de cada período de exceção, o Governo enviará ao Parlamento relatório circunstanciado e documentado de tudo o que tenha sido feito em execução dessas decisões. A Assembleia da República, eventualmente depois de ter obtido esclarecimento complementar que entenda solicitar, aprovará uma resolução sobre a execução do estado de exceção, da qual constará, nomeadamente, “as providências necessárias e adequadas à efetivação de eventual responsabilidade civil e criminal por violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência” ou na lei (artigo 28º).

Uma reflexão final

Não há uma fronteira muito clara, na definição constitucional e legal, entre estado de sítio e estado de emergência. É mais uma questão de mais e menos, maior e menor gravidade, mas o mais saliente é que ambos são estados de exceção. Assim sendo, devem ser usado com enorme parcimónia.

O nosso país não conhece um estado de exceção constitucional desde 1975. Quem possa entender necessária a declaração do estado de emergência deve pensar bem – e explicitar bem – para que pode ele servir nesta conjuntura. O que se quer, em concreto, fazer em estado de emergência que não se pode fazer sem estado de emergência? Essas são as linhas que, eventualmente, o Presidente da República terá de propor à Assembleia da República – e que a Assembleia da República terá de analisar e decidir se aceita ou não.

Em qualquer caso, esse debate terá de ir muito mais fundo do que o facilitismo e a ligeireza com que alguns falam em estado de emergência, sem dizerem exatamente para que efeito o querem ou o defendem.

A coesão da sociedade, importante neste momento, também passa por tentar preservar as instituições democráticas e os direitos dos cidadãos – desiderato para o qual pode contribuir decisivamente, desde logo, o comportamento cívico dos próprios cidadãos. Felizmente, creio que temos os principais órgãos de soberania servidos por democratas, que querem resolver a crise de saúde pública em que estamos mergulhados e não pensam em ameaçar as nossas liberdades. Mas nunca podemos distrair-nos, porque, a verdade é esta, o equilíbrio da nossa sociedade vai atravessar desafios fantásticos, os quais não nos permitem desatenções nem facilitismos.

E, em concreto, importa compreender o seguinte: não há UM estado de emergência, não há um formato fixo de estado de emergência. O decreto presidencial, e a autorização do parlamento, terão de especificar muito claramente o que muda, o que é que fica diferente na proteção dos direitos dos cidadãos. Será preciso, pois, dar toda a atenção a este passo: não deixar de fazer o que tenha de ser feito, não fazer nada que seja um exagero inútil.




Porfírio Silva, 16 de março de 2020
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14.3.20

Epistemologia do social em tempos de Covid-19 (1)




É muito frágil o conhecimento que temos e conseguimos aplicar acerca do funcionamento das nossas sociedades. Isso deve-se, em parte, à miopia de quem tem, na generalidade dos países ocidentais, responsabilidades para orientar o investimento em investigação científica (e filosófica), carregados como estão de preconceitos epistemológicos absolutamente não científicos. Investir em conhecimento "útil" e desinvestir em conhecimento "inútil", desprezando relativamente certos domínios de investigação, é algo que se paga caro. É em situações como a que vivemos hoje, com a pandemia de Covid-19, que sentimos isso mais claramente. Ao mesmo tempo, é difícil fazer entender aos nossos concidadãos a fragilidade do conhecimento, mesmo do conhecimento mais sólido. Igualmente difícil de compreender é a incerteza radical que rodeia, no estado actual, o melhor conhecimento disponível: alguns aspectos do funcionamento deste vírus, e da forma de lidar com ele, só serão compreendidos daqui a meses, vários ou muitos. Não no exercício das minhas funções actuais, mas na minha condição permanente de investigador em filosofia da ciência, não posso escapar de uma reflexão sobre o que vai acontecendo. Em modo caderno de apontamentos, vou rascunhando anotações ao passar dos dias.

Vale a pena começar por sublinhar a importância de, no plano das decisões políticas para enfrentar a crise, e no plano do seu debate em sociedade, nunca esquecer a incerteza fundamental que rodeia normalmente "o melhor conhecimento disponível". Vejamos, focando-nos na abordagem que o Reino Unido está a fazer a esta pandemia.

Enquanto vários países (entre os quais Portugal) partiram para estratégias radicais de contenção do coronavírus, incluindo encerramento de escolas e proibição de ajuntamentos, o Reino Unido tem evitado quaisquer medidas desse género. Só no dia 12 de março, quando Portugal já estava a caminho de tentar fechar a maioria da população em casa, ainda antes de ter sequer uma vítima mortal, é que o RU aconselhou as pessoas a ficarem em casa se tivessem tosse.

A abordagem do Reino Unido tem sido muito criticada, mas não se trata de um desvario político do governo (embora a imagem pública de Boris Johnson facilite essa perceção), mas sim de uma estratégia aconselhada pelos “cientistas oficiais”. Patrick Vallance, o chief scientific adviser do país, explicou publicamente os objetivos da estratégia e prometeu tornar públicos os dados que estão a usar para analisar a situação, para facilitar o escrutínio da mesma (promessa ainda não cumprida). O primeiro dos objetivos é basicamente o mesmo da estratégia portuguesa: reduzir o pico da epidemia, achatar e alargar a sua curva, tornando-a mais espalhada por um maior período temporal, para diminuir a intensidade da pressão sobre os sistemas de saúde em cada fase e tornar mais viável uma resposta capaz. O segundo objetivo já é mais contrastante com a nossa resposta: deixar que o vírus se espalhe na população, para criar uma “imunidade de rebanho” (os recuperados ganhariam imunidade e passariam a funcionar como barreira à posterior contaminação), enquanto o sistema de saúde se concentra em cuidar dos mais vulneráveis. A tal imunidade de rebanho, ou imunidade de grupo, é um fenómeno conhecido, que, noutros casos, tem permitido, por exemplo, aumentar a proteção dos não vacinados como efeito de um bom nível de vacinação na comunidade (porque a imunidade de uns protege outros de serem atingidos, ao diminuir as vias de transmissão).

A OMS está preocupada com esta estratégia, por exemplo por causa das sequelas físicas que podem resultar da infeção (que, a serem pesadas, desaconselhariam a estratégia de deixar espalhar a contaminação). Mas há quem considere irrealista a visão da OMS. Mark Woolhouse, da Universidade de Edinburgh, vê na estratégia preferida pela OMS um objetivo impossível: erradicar o vírus. Em sua opinião, é mais realista aprender a viver com um vírus que veio para ficar do que tentar a sua erradicação. Defende mesmo que os países que optaram pela estratégia preferida pela OMS vão ter de mudar de rumo em algum momento no futuro. De qualquer modo, entre a comunidade científica britânica também há fortes críticas à estratégia seguida pelo seu governo. Por exemplo, Helen Ward, do Imperial College, de Londres, considera que a estratégia da imunidade de rebanho não vai evitar um pico de casos avassalador e diz que não faz sentido aplicar a estratégia da imunidade de grupo a um vírus para o qual não se conhece uma vacina.

Os defensores da estratégia oficial britânica, pela voz do já referido chief scientific adviser, apontam um argumento contra as medidas duras de isolamento social: as pessoas vão acabar por se cansar do confinamento e a taxa de aceitação e cumprimento do isolamento social rigoroso vai cair drasticamente precisamente quando estivermos mais perto do pico do surto.

Duas reflexões sobre este argumento.

Primerio, este é, precisamente, o ponto que alguns, em Portugal, sublinharam como motivo de reflexão acerca da conveniência de parar desde já com todas as atividades envolvendo presencialmente os alunos nas nossas escolas.

Segundo, é este tipo de dificuldade, mesmo que ela não resolva o cenário global preferível, que desaconselha o uso sem restrições do argumento “quanto mais cedo melhor”. A ideia de que uma boa medida deve ser tomada imediatamente, o mais rapidamente possível, que tem estado muito presente no debate público nos últimos dias, é uma ideia errada. É uma ideia errada porque as pessoas não são máquinas (e mesmo as máquinas cansam-se) e o tempo de duração de um estado de coisas afeta o funcionamento e o efeito de uma medida que põe radicalmente em causa o modo habitual de vida das pessoas. Mesmo críticos da estratégia do governo britânico, mais favoráveis ao isolamento radical seguido noutros países, entendem que este argumento é pertinente e deve ser considerado. É que, digo eu, o conhecimento relevante para gerir situações destas não é apenas conhecimento médico e biológico, sendo importante mobilizar conhecimento acerca do funcionamento das sociedades.

Estas considerações aconselham o seguinte: seria importante, por exemplo, começar desde já a estudar toda a informação disponível sobre os métodos usados pelas autoridades chinesas em Wuhan e pelas autoridades italianas, mesmo sabendo que uma democracia e uma ditadura não têm à disposição os mesmos recursos neste campo (cf. The effect of control strategies that reduce social mixing on outcomes of the COVID-19 epidemic in Wuhan, China ).

Informação de base colhida aqui: Why is the UK approach to coronavirus so different to other countries?

(Continuaremos estas reflexões, se conseguirmos concretizar as nossas intenções. Entretanto, essencial é cada um de nós fazer a sua parte, seguindo rigorosamente as indicações das autoridades de saúde. )



Porfírio Silva, 14 de março de 2020


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