Estando na agenda pública a possibilidade de declaração do estado de emergência, em resposta à situação sanitária e social criada pela pandemia Covid-19, convém termos informação básica sobre o que está em causa. Isso talvez ajude a equilibrar comportamentos que se caracterizam por exigir tudo o que pareça “uma resposta mais dura”, por vezes sem um raciocínio claro acerca do que se quer obter com cada medida. Uma vez que o estado de emergência é, sempre, um desvio face à normalidade do funcionamento do Estado democrático, convém termos elementos para refletir sobre o que isso significa e como se desenrola. É esse o modesto objetivo deste texto.
As situações de exceção constitucional
O estado de emergência, junto com o estado de sítio, são as situações de exceção constitucional previstas na Constituição da República Portuguesa (CRP). Só nessas situações de exceção podem os órgãos de soberania limitar o exercício de direitos, liberdade e garantias de que todos os cidadãos são titulares. O que os estados de exceção permitem é, face a uma ameaça à comunidade, suspender temporariamente alguns dos direitos dos cidadãos quando isso seja necessário para contrariar tal ameaça. Essa circunstância é regulada pelo artigo 19º da CRP e pela lei. A CRP determina, designadamente, que todos os procedimentos relativos a estes estados de exceção têm de respeitar os próprios preceitos constitucionais, especifica quais os tipos de situações que podem permitir a declaração de um destes estados de exceção, impõe o princípio da proporcionalidade (desviar-se da normalidade constitucional só na medida em que seja estritamente necessário para os fins em causa), especifica quais os direitos dos cidadãos que nunca podem ser ofendidos pelo estado de exceção.
Na medida em que a lei que especifica os preceitos constitucionais sobre os estados de exceção traduz tudo o que vem na CRP, vamos agora virar-nos para a lei orgânica que faz esse trabalho.
O regime do estado de sítio e do estado de emergência definido na lei
O regime dos estados de exceção em vigor é definido pela lei nº 44/86, de 30 de Setembro, modificada pela lei orgânica nº 1/2011, de 30 de Novembro e, depois, pela lei orgânica nº 1/2012, de 11 de Maio.
Como dissemos, qualquer um dos estados de exceção só pode ser declarado para enfrentar uma ameaça grave à comunidade, o que vem assim descrito no artigo 1º da lei respetivo: “nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”.
O que acontece quando é declarado um dos estados de exceção?
Quais são as diferenças entre o estado de sítio e o estado de emergência? Vamos por partes.
Primeiro, quais são as situações que justificam a declaração de cada um dos estados de exceção?
O estado de sítio pode ser declarado “quando se verifiquem ou estejam iminentes atos de força ou insurreição que ponham em causa a soberania, a independência, a integridade territorial ou a ordem constitucional democrática e não possam ser eliminados pelos meios normais previstos na Constituição e na lei” (artigo 8º, número 1).
Já o estado de emergência “é declarado quando se verifiquem situações de menor gravidade, nomeadamente quando se verifiquem ou ameacem verificar-se casos de calamidade pública” (artigo 9º, número 1).
Segundo, quais são as alterações ao funcionamento do Estado democrático introduzidas pela declaração de cada um dos estados de exceção?
Pela declaração do estado de sítio será suspenso, total ou parcialmente, ou sujeito a restrições, o exercício de direitos, liberdades e garantias e as autoridades civis são substituídas ou ficam subordinadas às autoridades militares, que também tomam o comando das forças de segurança (artigo 8º, números 2, 3 e 4).
Pela declaração do estado de emergência, só pode ser determinada uma suspensão parcial do exercício de direitos, liberdades e garantias, prevendo-se a possibilidade de as autoridades administrativas civis verem os seus poderes reforçados e terem um apoio suplementar por parte das Forças Armadas (artigo 9º, número 2).
Há, de qualquer modo, certos elementos dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos que não podem, em caso algum, ser afetados pela declaração de um dos estados de exceção: “em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” (artigo 2º, número 1).
Há, ainda, outros direitos, liberdades e garantias que podem ser afetados pela declaração de um dos estados de exceção, mas essas limitações têm de respeitar certas balizas. É instrutivo citar essas disposições, para tornar mais claro o que pode estar em causa (artigo 2º, número 2): a fixação de residência ou detenção de pessoas com fundamento em violação das normas de segurança em vigor será sempre comunicada ao juiz de instrução competente, no prazo máximo de 24 horas após a ocorrência, assegurando-se designadamente o direito de habeas corpus; b) a realização de buscas domiciliárias e a recolha dos demais meios de obtenção de prova serão reduzidas a auto, na presença de duas testemunhas, sempre que possível residentes na respetiva área, e comunicadas ao juiz de instrução, acompanhadas de informação sobre as causas e os resultados respetivos; c) quando se estabeleça o condicionamento ou a interdição do trânsito de pessoas e da circulação de veículos, cabe às autoridades assegurar os meios necessários ao cumprimento do disposto na declaração, particularmente no tocante ao transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afetados; d) poderá ser suspenso qualquer tipo de publicações, emissões de rádio e televisão e espetáculos cinematográficos ou teatrais, bem como ser ordenada a apreensão de quaisquer publicações, não podendo estas medidas englobar qualquer forma de censura prévia; e) as reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia.
Como se entra num estado de exceção constitucional?
O estado de sítio ou de emergência só pode ser declarado por decreto do Presidente da República, depois de ouvido o Governo e carecendo de autorização da Assembleia da República (artigo 10º). O estado de exceção só pode ser declarado por um período máximo de 15 dias, embora possa ser renovado por períodos sucessivos (artigo 5º), e termina no fim do prazo fixado pelo decreto que o declara, ou antes disso, caso cessem as circunstâncias que o motivaram (carecendo, para isso, de um decreto presidencial específico para o efeito). Para prolongar ou agravar as limitações do estado de sítio ou de emergência, seguem-se os mesmos trâmites e exigências da declaração inicial, mas basta um decreto presidencial para revogar ou aligeirar as limitações anteriormente impostas.
A declaração de estado de sítio ou de estado de emergência tem, obrigatoriamente, de explicitar os fundamentos invocados, de acordo com o que prevê a Constituição, e conter “clara e expressamente” os seguintes elementos: a) Caracterização e fundamentação do estado declarado; b) Âmbito territorial; c) Duração; d) Especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso ou restringido; e) Determinação, no estado de sítio, dos poderes conferidos às autoridades militares, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º; f) Determinação, no estado de emergência, do grau de reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e do apoio às mesmas pelas Forças Armadas, sendo caso disso (artigo 14º).
Fazer o necessário, mas não mais do que o necessário
O Artigo 3.º da lei, sobre “Proporcionalidade e adequação das medidas”, concretiza o princípio básico de que não se pode limitar o funcionamento do Estado democrático mais do que o estritamente necessário para fazer face à ameaça concreta em presença e para restabelecer a normalidade.
A execução do estado de sítio ou de emergência compete ao Governo, que manterá informado dos seus atos o Presidente da República e a Assembleia da República. O artigo 18º estatui o seguinte: “Em estado de sítio ou em estado de emergência que abranja todo o território nacional, o Conselho Superior de Defesa Nacional mantém-se em sessão permanente. Mantêm-se igualmente em sessão permanente, com vista ao pleno exercício das suas competências de defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos, a Procuradoria-Geral da República e o Serviço do Provedor de Justiça.”
Cabe à Assembleia da República apreciar, posteriormente, a forma como foi aplicado algum dos estados de exceção. Até 15 dias após o termo do estado de sítio ou de emergência, ou, tendo havido renovação, após o termo de cada período de exceção, o Governo enviará ao Parlamento relatório circunstanciado e documentado de tudo o que tenha sido feito em execução dessas decisões. A Assembleia da República, eventualmente depois de ter obtido esclarecimento complementar que entenda solicitar, aprovará uma resolução sobre a execução do estado de exceção, da qual constará, nomeadamente, “as providências necessárias e adequadas à efetivação de eventual responsabilidade civil e criminal por violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência” ou na lei (artigo 28º).
Uma reflexão final
Não há uma fronteira muito clara, na definição constitucional e legal, entre estado de sítio e estado de emergência. É mais uma questão de mais e menos, maior e menor gravidade, mas o mais saliente é que ambos são estados de exceção. Assim sendo, devem ser usado com enorme parcimónia.
O nosso país não conhece um estado de exceção constitucional desde 1975. Quem possa entender necessária a declaração do estado de emergência deve pensar bem – e explicitar bem – para que pode ele servir nesta conjuntura. O que se quer, em concreto, fazer em estado de emergência que não se pode fazer sem estado de emergência? Essas são as linhas que, eventualmente, o Presidente da República terá de propor à Assembleia da República – e que a Assembleia da República terá de analisar e decidir se aceita ou não.
Em qualquer caso, esse debate terá de ir muito mais fundo do que o facilitismo e a ligeireza com que alguns falam em estado de emergência, sem dizerem exatamente para que efeito o querem ou o defendem.
A coesão da sociedade, importante neste momento, também passa por tentar preservar as instituições democráticas e os direitos dos cidadãos – desiderato para o qual pode contribuir decisivamente, desde logo, o comportamento cívico dos próprios cidadãos. Felizmente, creio que temos os principais órgãos de soberania servidos por democratas, que querem resolver a crise de saúde pública em que estamos mergulhados e não pensam em ameaçar as nossas liberdades. Mas nunca podemos distrair-nos, porque, a verdade é esta, o equilíbrio da nossa sociedade vai atravessar desafios fantásticos, os quais não nos permitem desatenções nem facilitismos.
E, em concreto, importa compreender o seguinte: não há UM estado de emergência, não há um formato fixo de estado de
emergência. O decreto presidencial, e a autorização do parlamento, terão
de especificar muito claramente o que muda, o que é que fica diferente
na proteção dos direitos dos cidadãos. Será preciso, pois, dar toda a atenção a este passo: não deixar de fazer o que tenha de ser feito, não fazer nada que seja um exagero inútil.
Porfírio Silva, 16 de março de 2020