"Luanda, Lisboa, Paraíso" é um romance de Djaimilia Pereira de Almeida. É uma história de família e de amizades, entre Angola e Portugal fora da estrada. Linguagem muito poética em certos momentos, muito veloz de narrativa noutros passos. É o primeiro livro que leio desta escritora e gostei.
Deixo-vos um excerto (início do capítulo XXVII) que, para mim, representa o rationale de toda a obra.
«Todos os Cartola de Sousa se viram adiados pela doença. Cartola pôs-se entre parêntesis por Glória e mudou de vida por causa do calcanhar do filho. Justina deixou os sonhos pela mãe, tornada dona de casa quando o pai e o irmão partiram para Lisboa. Aquiles foi atravessado pelo calcanhar malformado, que deixou Cartola às suas costas.
Não eram vítimas uns dos outros, nem ninguém tinha torcido os seus sonhos de propósito. No comboio de dívidas, resignação, fome, má vontade e zelo em que a família de cuidadores viajou quase um quarto de século, talvez dentro de cada doente houvesse um tirano e dentro de cada cuidador um carrasco.
Aquiles arrastava pelo pé o homem que o arrastava ao pescoço. A sua meninice tinha sido para o pai um martírio alegre e a sua juventude a negação de Cartola de que recomeçara a vida quando ela já lhe tinha passado ao lado. O seu calcanhar era a pena e a substância do velho, como tinha sido para ele um calvário tomar conta da mulher, prova que tinha aprendido a superar desejando tanto a morte dela como desejava as melhoras. Justina tanto fingia que Glória tinha morrido como daria a vida por ela. Tinha-se apaixonado pelo cuidado que lhe tinha para poder sobreviver a uma vida abortada. De Lisboa, em cartas e telefonemas, Cartola alimentava as esperanças da mulher como quem rega o canteiro de flores de uma sepultura. A mãe Glória vinha à tona empoleirada nos ombros deles e renascia sem se lembrar de que tinham morrido por sua causa.
Não estavam unidos pelo ressentimento, ainda que no fundo da dedicação de Cartola houvesse um bago de arroz bolorento, ainda que a entrega de Justina exalasse um cheiro a flores mortas no jarro, ainda que Aquiles nunca tenha perdoado ao pai o calcanhar que se habituou a encarar como um sinal.
Também não podiam entristecer-se muito com as reviravoltas em que o destino os tinha lançado. Não se sentiam agentes da desgraça. Glória caiu em virtude de um parto azarado. Justina ficou encravada no quarto da mãe, porque o irmão nasceu coxo. Aquiles nasceu assim. Cartola era o pai.
Tanto os doentes-cuidadores quanto os cuidadores-doentes foram-se tornando a cara chapada de alguém que nenhum deles conhecera, mas parecia ser a mãe de todos, tornados irmãos uns dos outros. Não era um antepassado defunto nem a criança que os pais não tinham chegado a ter. A milhares de quilómetros de distância, Justina parecia-se com Aquiles, igualmente sem brilho, embora viva. Os lábios de Cartola velho lembravam os da mulher na cama, muito depois de terem terminado os beijos deles às escuras, ambos sem forma definida, sem luz. Já não pareciam pessoas diferentes, individuadas, mas um mesmo ser feito de partes de outros, homem, mulher, rapaz, rapariga, um monstro em diferentes estádios da vida, situado em diferentes latitudes, alimentado de aspirações dissonantes.»
Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda, Lisboa, Paraíso, Lisboa, Companhia das Letras, 2018
Porfírio Silva, 1 de Janeiro de 2020