1. A solução política constituída por um formato estruturado de cooperação parlamentar entre os partidos da esquerda e por um Governo do PS, que ficou conhecido por “Geringonça”, garantiu a estabilidade política e avanços sociais durante a legislatura que ora finda. Esse formato chegou ao fim. A Geringonça acabou e isso não vai tornar as coisas mais fáceis, nem para o PS nem para o país. Gostaria, aqui, de explicitar algumas das minhas reflexões sobre esta matéria.
2. Antes de mais, quero voltar a sublinhar que fui um apoiante da primeira hora (aliás, de muitos anos antes da primeira hora) de alguma modalidade de cooperação aberta à esquerda; que continuo a ser um apoiante fervoroso da Esquerda Plural, porque acho que é o melhor para os portugueses e para o país; que sempre encarei este processo como uma luta política e não como um casamento: sempre olhei para a Esquerda Plural como intrinsecamente, e felizmente, diversa e contraditória em muitos aspectos, requerendo uma dinâmica contínua de cooperação-competição, onde o debate e a discordância fazem parte das ferramentas de construção. É assim que me posiciono na política em geral e neste texto em particular.
3. Logo na noite eleitoral, António Costa disse ao que vinha: vamos dar continuidade à Geringonça, que conquistou os portugueses. E deu o rumo: vamos falar com os parceiros destes quatro anos para ver como fazemos, num quadro de continuidade onde o PS foi reforçado pelo voto popular. E vamos falar também com o PAN e com o LIVRE. O objectivo explícito é a estabilidade política e social, que deu frutos para o país: devolveu direitos e rendimentos, atraiu investimento e permitiu-nos poupar muito em juros. (Sim, porque quem pensa em governar tem de pensar nessas coisas concretas que interessam à vida real, não pode esgotar-se na luta partidária.)
4. Na verdade, a continuação da conversa não correu bem. Sem dúvida que o PS ficaria melhor com acordos, papéis passados. Pode fazer-se mais do que está escrito, como aconteceu entre 2015 e 2019. Mas o que está escrito fornece um rumo conhecido e estrutura a cooperação política, o que foi muito importante nestes quatro anos. Por isso António Costa disse, desde o primeiro momento, que queria uma solução de estabilidade, para a legislatura. É verdade que alguns, agora, criticam essa insistência na estabilidade – mas a insistência na estabilidade era a insistência na necessidade de continuar a Geringonça. Ameaçar a estabilidade era ameaçar a Geringonça, ameaçar a Geringonça era ameaçar a estabilidade.
5. Contudo, o PCP decidiu dar um passo claro e colocar-se de fora. Tal como o PCP foi decisivo em 2015, para afirmar este processo, o PCP foi decisivo em 2019 para acabar com ele. Não acabou o mundo, mas acabou esta forma de cooperação que tão bem-sucedida foi para uma legislatura. Quem deu esse passo foi o PCP. A história apreciará devidamente esse facto.
6. O que poderia o PS fazer a partir daí? Na verdade, o SG do PS evitou extrair imediatamente as consequências do que o PCP tinha dito. António Costa fez de conta que não ouviu, julgo que para não tornar nada irreversível. Contudo, a partir do momento em que se consolidou a posição do PCP, ficou claro que fazer papéis assinados com outros parceiros seria ensaiar uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda. Isso seria inaceitável e iria envenenar todas as relações à esquerda no futuro. Um dos problemas desta solução política sempre foi a concorrência entre o PCP e o BE. Isso não está melhor, está pior. Só o PS está a fazer tudo com o maior cuidado possível para levar as coisas em frente sem mais afrontamentos. Se o PS tivesse aceitado uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda, o diálogo à esquerda ficaria definitivamente condenado à guerra civil generalizada. Foi o PS que teve de fazer o sacrifício de não insistir nessa tecla para proteger um futuro necessário de cooperação à esquerda. Entretanto, outros não demoraram a lançar-se sobre os despojos da Geringonça, com toda a virulência, talvez tentando ganhar agora os votos que perderam nas eleições.
7. Aqui intervém uma pergunta essencial: os que fizeram campanha contra a maioria absoluta não deviam agora disponibilizar-se para construir uma legislatura forte? Em campanha, deram a ideia de que queriam evitar a maioria absoluta do PS para que existisse uma maioria das várias esquerdas. Agora, na verdade, parecem querer a implosão da maioria das esquerdas. Não deviam ter dito, durante a campanha eleitoral, que, além de serem contra a maioria absoluta, eram também contra uma maioria de esquerda sólida e funcional? É justo que os eleitores que queriam a continuidade da Geringonça peçam contas aos partidos em que votaram sobre esta questão essencial.
8. Neste quadro, quando figuras gradas do BE afirmam que o PS decidiu acabar com a “Geringonça”, sabendo-se que não foi o PS que se pôs de fora do formato que tivemos em 2015, só podemos lamentar que o BE continue o seu caminho de ataque sistemático ao PS – desta feita recorrendo à mentira política. Podemos até compreender que o BE quisesse (ou quisesse dar a ideia de querer) uma Geringonça a dois, só PS e BE. Apesar de ser incompreensível essa pretensão à luz da declaração de guerra que Catarina Martins fez ao PS, quando afirmou (à LUSA, 15/09/2019): "A história desta legislatura é a tensão entre o Partido Socialista e a esquerda". Na verdade, o BE decidiu explorar esta circunstância para prosseguir dois dos seus objectivos: atacar o PS e atacar o PCP. Embora, claro, fazendo de conta que está “só” a atacar o PS.
O BE coloca como condição para essa Geringonça a dois, nomeadamente, uma matéria de desacordo recente com o PS: a legislação laboral. Fomos a votos com a nossa posição muito clara (a nova legislação laboral é mais favorável aos trabalhadores que a anterior, há muitos anos que não acontecia em Portugal uma revisão da lei do trabalho ser para mais protecção dos trabalhadores e não para menos protecção) e, afinal, parece que a nossa posição teve mais aceitação do eleitorado do que as dos partidos que perderam votos. E, certamente, ninguém pretenderá que o PS ganhou as eleições à custa dos votos dos patrões (até porque os resultados mostram que o voto socialista está eminentemente enraizado no povo miúdo, nos de baixo). Quando vozes que projectam no espaço público as posições do BE sugerem que a posição do PS foi um brinde aos patrões, estamos apenas a assistir à retórica que certa esquerda usa quando regressa às suas teses de que o PS e a direita valem o mesmo.
Joana Mortágua é que sabe do que fala:
"Não
existe acordo escrito porque o PS não aceitou as condições prévias do
Bloco para negociar: reverter as leis laborais da troika". Sim, as condições prévias são sinal de ultimato, não são sinal de vontade negocial. É preciso perceber que no PS também temos de respeitar os que votaram em nós.
9. Há, contudo, uma pergunta que vale a pena fazer, numa veia interpretativa. Se foi o PCP que condenou a Geringonça, porque é que o PS não insistiu mais nesse tópico? Provavelmente, teria sido mais conforme aos interesses do PS insistir com mais estrondo, publicamente, com o PCP para que aceitasse algum tipo de explicitação das convergências estratégicas com o PS no horizonte da legislatura. Isso teria sido, também, mais conforme aos interesses do país, na defesa da estabilidade política, que, não tenho dúvidas, estaria mais bem servida com papéis assinados com metas plurianuais.
Quer dizer, o PS podia ter insistido mais com o PCP que a disponibilidade do BE pedia uma disponibilidade do PCP e que só assim se poderia manter a Esquerda Plural num formato que não fosse mais fraco do que no passado. O PS podia, por exemplo, ter pedido uma segunda reunião com o PCP, para sublinhar isso, tanto privada como publicamente. Ou, em alternativa, por exemplo, pedir uma segunda reunião aos Verdes, para insistir que estava a querer trazer a CDU para o processo, podendo até pedir ao PEV os seus bons ofícios junto do PCP para o efeito. Porque é que o PS não fez nada disso? Porque é que o PS não tomou essas diligências, mesmo antecipando a sua ineficácia, para marcar melhor a sua posição?
Não estou na cabeça do Secretário-Geral, nem estou por dentro das negociações, nem falo por ninguém a não ser por mim. Mas acredito que os negociadores socialistas não quiseram sublinhar ainda mais a posição negativa que o PCP teve em todo este processo. Os socialistas, depois de terem assumido no debate eleitoral que tinham mais simpatia pela forma de trabalhar dos comunistas durante estes quatro anos, em comparação com a atitude mais agressiva e adversarial dos bloquistas, têm agora de lidar com uma posição dos comunistas que, em substância, decretaram a morte da colaboração estruturada à esquerda e lançaram o espectro de uma luta de todos contra todos no espaço da anterior maioria parlamentar. Teria sido do interesse imediato do PS deixar bem claro que esta bonita história acabou por culpa do PCP, mas o sacrifício do momento pode ser necessário, e valer a pena, para preservar o mais possível a necessária cooperação futura com os comunistas. O BE, continuando a sua saga de tomar o PS e o PCP como os seus sacos de votos futuros, em vez de tentar preservar a boa vontade entre os parceiros, optou, mais uma vez, pelo que julga garantir ganhos imediatos: atirar à cabeça do PS e sublinhar as responsabilidades do PCP no roer da corda.
10. Como alguns camaradas têm afirmado, esta solução pode ser capaz de garantir a estabilidade. Concordo. Pode. E tem de ser feito. Mas vai dar mais trabalho. Vai aumentar a incerteza. Vai estimular os comportamentos oportunistas. E, no limite, pode ocasionar um novo acontecimento de coligação negativa, que já deu ao país os anos dolorosos do passismo.
11. Todas as soluções políticas têm as suas vantagens e desvantagens, não há arranjos humanos perfeitos no mundo real. Uma maioria absoluta, que provavelmente muitos consideram que seria preferível para quem tem de governar o país, teria algumas vantagens, mas teria também a grande desvantagem de desresponsabilizar os demais partidos. Uma situação como a da recuperação do tempo de serviço dos professores, por exemplo, teria permitido ao PSD e ao CDS continuar a sua farsa política se o PS tivesse maioria absoluta – porque é mais fácil falar quando não se tem os votos necessários para aplicar aquilo que se propõe. Por outro lado, esta situação de governo minoritário do PS contém outro risco: talvez alguns dentro do PS pensem que podemos governar à peça, dentro da esquerda e também com a direita. Não me parece que seja realista esperar isso.
Primeiro, porque está agora nos ombros do PS a responsabilidade de fazer honrar a legislatura que finda e a obra da Esquerda Plural, que fez bem ao país e colocou o PS como a força mais dinâmica da esquerda portuguesa e uma das mais bem-sucedidas da esquerda europeia. Honrar o que está feito é fazer agora mais e melhor. Na legislatura que finda, não fizemos nada que um bom governo social-democrata não devesse fazer, mas podemos ter deixado por fazer alguma coisa que é preciso fazer, limitados pelo posicionamento “sindical” de alguns dos nossos parceiros. Isso significa que temos de procurar soluções progressistas para problemas que não se resolvem apenas numa óptica sindical, como é o caso da necessária modernização da Administração Pública – onde a esquerda da esquerda mostra tradicionalmente uma certa falta de coragem política para assumir que a resposta pública não melhora apenas com mais dinheiro e mais funcionários, sendo necessário repensar a própria estrutura dos serviços e os sistemas de recompensa pela dedicação à causa pública. Encontrar respostas a desafios desta dimensão não pode ser realizado sem um rumo coerente, precisando de uma ambição global que não se constrói apenas com parceiros de ocasião.
Em segundo lugar, a direita que temos não é de confiança. Mesmo com Rui Rio, os dois acordos que o Governo fez com o PSD nesta legislatura (descentralização e fundos estruturais) mostraram que esta direita é traiçoeira. Com a possibilidade de termos o passismo de volta ao PSD, a fronteira à direita continua a ser clara, em nome das opções políticas que temos de fazer com os olhos nos portugueses. A tentação “centrista” que pode subsistir numa minoria do PS está desfasada da realidade, da vontade dos portugueses e dos trabalhos que temos pela frente.
É por isto que, como socialistas, cabe-nos continuar empenhados em governar no interesse geral, no interessa dos que mais precisam, no interesse do maior número. Fazer com que a morte da Geringonça seja apenas uma mudança de fórmula – uma mudança de fórmula que nos foi imposta, que não fomos nós que escolhemos.
12. A Geringonça morreu, viva a Esquerda Plural! O próximo Governo, sendo embora um Governo do PS (como foi até agora), há-de ser o Governo de uma Esquerda Plural que continue a fazer o que há a fazer pelo progresso do país e dos portugueses. Um governo de progresso, que não oponha concertação social à concertação política, antes as conjugue – para que não sejamos nós, à esquerda, a abrir espaços aos populismos disfarçados de “novos sindicalismos”. Continuar a trabalhar por uma sociedade decente, de direitos, de cidadania, de instituições democráticas mais fortes, servida por uma economia mais forte e mais justa, fazendo da nossa integração europeia um factor de desenvolvimento e de âncora num mundo global onde seria profundamente errado insistir em qualquer nacionalismo.
Há muito a fazer.
Porfírio Silva, 12 de Outubro de 2019