30.10.19

Assumir o património de quatro anos de esquerda plural






Para registo, deixo a minha primeira intervenção parlamentar na XIV Legislatura, no debate do programa do XXII Governo Constitucional, a 30 de Outubro de 2019.


***

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-Ministro, Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

O XXII Governo Constitucional apresenta à Assembleia da República um programa para investir os próximos quatro anos na resposta articulada a quatro grandes desafios estratégicos: alterações climáticas, sustentabilidade demográfica, transição para o digital, combate às desigualdades.

O programa do Governo ampara essa forte ambição estratégica no compromisso com uma boa governação: contas certas para a convergência, investir na qualidade dos serviços públicos, melhorar a qualidade da democracia, e valorizar as funções de soberania.

Quer isto dizer que o XXII Governo Constitucional se propõe governar para as pessoas, para os portugueses de hoje e para os portugueses de amanhã, para todos os portugueses, porque, para nós, diferentemente de outros, o país só está melhor quando a vida das pessoas está melhor.

Nesse sentido, a missão deste Governo continua o trabalho do Governo anterior, agora com novos níveis de ambição e de exigência. Como o Primeiro-Ministro hoje voltou aqui a reafirmar, queremos dar continuidade à mudança iniciada em 2015, sabendo que não se fez tudo numa legislatura, que há ainda muito para fazer, mas que o rumo continuará a ser o mesmo: construir uma sociedade decente, melhorar as condições de vida dos cidadãos, o que exige, ao mesmo tempo, criar condições para o crescimento da economia, uma economia mais inovadora, mais inclusiva e mais limpa. É esse círculo virtuoso que temos de continuar a alimentar.

Para alcançar esse desiderato, o grupo parlamentar do Partido Socialista, agora reforçado pelo voto popular, honrará as suas responsabilidades próprias de assumir e fazer frutificar o património de quatro anos de esquerda plural bem-sucedida no parlamento e no governo, esperando dos nossos parceiros nada mais nada menos do que um empenhamento tão nítido como o nosso.

Que fique claro que nós respeitamos a pluralidade do diálogo parlamentar e não deixaremos de estudar e considerar as propostas de todos os representantes eleitos para esta Casa da Democracia.
Contudo, a verdade é que o PS representa uma ideia acerca da responsabilidade das políticas públicas que a direita não partilha, minada como está por uma conceção profundamente individualista da sociedade e por preconceitos profundos contra o papel do Estado, dos serviços públicos e dos seus trabalhadores. As batalhas pela igualdade, e contra a determinação do futuro de cada um pela condição social de partida, continuam a separar-nos profundamente da direita em políticas decisivas, por exemplo em matéria educativa.

Precisamos de juntar toda a determinação de quantos entendem que Estado Social não é assistencialismo, que o Estado Social é para todos, não é só para os mais carenciados.

Precisamos de fazer com que somem todos aqueles para quem a promoção da saúde é uma responsabilidade primária das políticas públicas.

É preciso contar com todos os que trabalham pela continuidade do investimento na escola pública como principal instrumento de redução das desigualdades e de mobilidade social, continuando a promover o sucesso escolar e a reduzir o abandono precoce, e a promover a inclusão.

Precisamos de todas as inteligências e de todas as vontades apostadas em que a transição para o digital seja oportunidade de uma sociedade assente no conhecimento, mais inclusiva, onde inovação vá a par de melhor e mais qualificado emprego, de maior equidade territorial; uma transição para o digital respeitadora dos direitos fundamentais, designadamente dos direitos dos trabalhadores.

Olhando assim para o país, e para as nossas responsabilidades, não nos equivocaremos na escolha dos parceiros. Para prosseguir o rumo sabemos que temos de ser os menos sectários de todos e, de todos, os mais flexíveis a negociar, com os olhos postos nos resultados a alcançar mais do que nas diferentes posições de partida.

No passado, a direita sonhou com o diabo para travar a recuperação de rendimentos e direitos, mas o diabo não veio e o país retomou um caminho de desenvolvimento económico e social.

A direita que tentou fazer esquecer as suas responsabilidades governativas anteriores apostando num discurso radical recebeu dos eleitores uma mensagem de desaprovação.

Infelizmente, há, nesse campo, quem não tenha aprendido grande coisa com a experiência. O líder da oposição entrou neste debate, não focado nos próximos quatro anos, mas a tentar apanhar uma boleia das “fake news” das últimas semanas. O líder da oposição entra esta legislatura a lamentar os custos da democracia, quando devia mesmo era preocupar-se com os custos da falta de democracia, com os custos do autoritarismo e da presunção de autossuficiência.

Também por isto o país não pode contar com esta direita para dar um rumo consistente à governação e às políticas públicas.

Temos, por isso, de contar com a determinação, com a inteligência e com o trabalho de todos os que sabem e querem, a partir tanto das suas diferenças como das suas convergências, dar continuidade ao essencial do rumo iniciado em 2015 e mostrar que sabemos quanto vale para os portugueses a estabilidade política e social.

O país pode, para isso, contar com o Partido Socialista, esta força da esquerda democrática que, mais uma vez, nas últimas eleições, a cidadania escolheu reforçar, para que possamos, no governo e no parlamento, continuar a assumir as nossas responsabilidades perante o país, as nossas responsabilidades perante os portugueses.


Porfírio Silva, 30 de Outubro de 2019
Print Friendly and PDF

24.10.19

De uma legislatura para outra




No seguimento das eleições de 6 de Outubro para a Assembleia da República, começa amanhã a XIV Legislatura, pelo que hoje é o último dia da legislatura que foi marcada por uma maioria de esquerda plural na Assembleia da República.

Sim, uso intencionalmente o termo “marcada”: a legislatura foi mesmo marcada por esta solução política, contra a tentativa da direita para negar legitimidade à acção concertada de deputados do PS, do BE, do PCP e do PEV para, em conjunto com o Governo do PS, prepararem, debaterem, modificarem e aprovarem os documentos estruturadores das políticas públicas. A legislatura foi, para muitos portugueses, marcante – por ter mostrado que os partidos de esquerda podem cooperar para dar boa governação ao país e para responderem aos (a alguns dos) anseios dos cidadãos.

Sim, uso intencionalmente a expressão “maioria de esquerda plural”: a legislatura funcionou efectivamente com base numa cooperação estruturada entre todos os partidos com representação parlamentar que se reclamam da esquerda, constituindo os deputados desses partidos a maioria que garantiu o rumo durante quatro anos. Alguns detestam a expressão “maioria de esquerda”, porque acham que o PS devia ser “charneira”, mas isso não retira nada ao facto de que tivemos uma legislatura construída à esquerda e de que sem esta maioria não teríamos podido fazer o que fizemos. Outros detestam a pluralidade à esquerda, porque acham que só é de esquerda quem pensa alinhado pelo seu diapasão, e tratam as diferenças políticas e ideológicas como traições ao catálogo, mas isso não retira nada ao facto de que as esquerdas monolíticas só existem em ditadura e em democracia só uma esquerda plural pode ser vencedora.

A consequência do funcionamento desta maioria de esquerda plural, que conteve um mecanismo de concertação parlamentar e um governo do PS, foi constatada pelo Secretário-Geral do PS logo na noite das eleições: os portugueses gostaram da “Geringonça” e querem a continuidade dessa dinâmica. Isso tem sido repetido sucessivamente por António Costa desde então, sem contradição com o facto de que as modalidades concretas de funcionamento quotidiano têm de mudar por força das novidades. Entre essas novidades conta o facto de ter desaparecido a pressão presidencial para a existência de “papéis passados” e de o PCP ter entendido que, sendo assim, as “posições conjuntas” tinham passado à história – e de, nestas circunstâncias, o PS ter tido de assumir sozinho a responsabilidade por não aceitar uma forma desequilibrada e amputada de “Geringonça”, como queriam os que acabaram a pressionar para alguns terem “casamento” e outros “união de facto”.

O que o Governo do PS e a maioria da esquerda plural conseguiram para o país em apenas quatro anos mudou o nível de exigência dos cidadãos face à política e, especialmente, face ao PS. Agora, as pessoas querem ainda mais e melhor: que foi o que dissemos na campanha que íamos fazer. O PS saiu mais forte destas eleições, tendo sido o único partido de esquerda a merecer um reforço no juízo da cidadania. Esse novo patamar de exigência é o desafio central da legislatura que começa e temos, no programa eleitoral apresentado aos portugueses, a grande ferramenta para alcançar esse desiderato: prosseguir o trabalho em prol de uma sociedade decente, na medida em que as políticas públicas (e o partido, como força social) para isso possam contribuir.

À esquerda, começaremos a falhar este desafio se promovermos leituras erradas do processo político dos últimos anos. Ainda hoje, num jornal diário, um intelectual da nossa praça, que se reclama da esquerda, escreve que “a ‘Geringonça’ foi para António Costa uma aliança táctica, não uma opção estratégica”. É difícil cometer maior injustiça do que a que essa afirmação encerra. Basta lembrar que António Costa, ainda antes de ser líder do PS, quando se candidatou às Primárias, derrubou o muro do “arco da governação”, explicando claramente que não aceitava a “reserva” da governação ao PS, PSD e CDS e sublinhando que os partidos à nossa esquerda podiam e deviam poder ser parte das responsabilidades de dar um rumo à governação do país. Esquecer o significado dessa ideia política, esquecer que começou aí a possibilidade desta esquerda plural, é padecer de uma falta de memória e de uma distorção de visão que não pode dar qualquer contributo positivo para o que falta fazer. Só podemos ver tendências (politicamente) suicidas naqueles que enchem a boca com a esquerda e a colaboração à esquerda para, na prática da luta política, tomarem como seus principais alvos outros partidos da esquerda que deu rumo ao país nos últimos anos.

Perante isto, termino uma legislatura e começo outra com a seguinte ideia: cabe ao Partido Socialista a grande responsabilidade de assumir o património de quatro anos de esquerda plural bem-sucedida no parlamento e no governo, onde todos preservam a sua identidade e, ao mesmo tempo, se fazem capazes de distinguir o principal do menos importante, em ordem à capacidade política para construir respostas aos problemas do país.

Claro que, como sempre, continuo a defender o diálogo parlamentar alargado para encontrar soluções para problemas de médio e longo prazo que, por exigirem continuidade das políticas para além da legislatura, não podem sofrer mudanças bruscas de rumo de quatro em quatro anos. Isso significa, designadamente, que não dever abandonar-se o diálogo parlamentar com o PSD – coisa que sempre defendi e que sempre esteve claro nos textos programáticos do PS nos últimos anos.

De qualquer modo, isso não pode enganar-nos: o PS não vai com todos. Por uma razão muito simples: o PS representa uma ideia acerca da responsabilidade das políticas públicas que a nossa direita não partilha, minada como está por individualismos vários e por preconceitos profundos contra o papel do Estado, dos serviços públicos e dos seus trabalhadores. As batalhas pela igualdade, e contra a determinação do futuro de cada um pela condição social de partida, continuam a separam-nos profundamente da direita em políticas decisivas (por exemplo, em matéria educativa). Por essa razão, temos de procurar na esquerda plural os interlocutores privilegiados para continuar o nosso trabalho. Continuando a trabalhar para continuarmos a ser os melhores garantes de que o diálogo produz resultados políticos palpáveis à esquerda. Para isso, temos de ser, no PS, os menos sectários de todos, os melhores negociadores de todos, os mais imaginativos a transformar pedras em pães, os mais abertos ao diálogo – e aqueles que mais persistentemente se preocupam com a melhoria das condições de vida de todos os portugueses, num quadro de estabilidade e sustentabilidade.

Trata-se, “apenas”, agora em condições diferentes, de continuarmos a ser os mesmos que fomos na anterior legislatura.


Porfírio Silva, 24 de Outubro de 2019

Print Friendly and PDF

12.10.19

A Geringonça morreu, viva a Esquerda Plural!




1. A solução política constituída por um formato estruturado de cooperação parlamentar entre os partidos da esquerda e por um Governo do PS, que ficou conhecido por “Geringonça”, garantiu a estabilidade política e avanços sociais durante a legislatura que ora finda. Esse formato chegou ao fim. A Geringonça acabou e isso não vai tornar as coisas mais fáceis, nem para o PS nem para o país. Gostaria, aqui, de explicitar algumas das minhas reflexões sobre esta matéria.

2. Antes de mais, quero voltar a sublinhar que fui um apoiante da primeira hora (aliás, de muitos anos antes da primeira hora) de alguma modalidade de cooperação aberta à esquerda; que continuo a ser um apoiante fervoroso da Esquerda Plural, porque acho que é o melhor para os portugueses e para o país; que sempre encarei este processo como uma luta política e não como um casamento: sempre olhei para a Esquerda Plural como intrinsecamente, e felizmente, diversa e contraditória em muitos aspectos, requerendo uma dinâmica contínua de cooperação-competição, onde o debate e a discordância fazem parte das ferramentas de construção. É assim que me posiciono na política em geral e neste texto em particular.

3. Logo na noite eleitoral, António Costa disse ao que vinha: vamos dar continuidade à Geringonça, que conquistou os portugueses. E deu o rumo: vamos falar com os parceiros destes quatro anos para ver como fazemos, num quadro de continuidade onde o PS foi reforçado pelo voto popular. E vamos falar também com o PAN e com o LIVRE. O objectivo explícito é a estabilidade política e social, que deu frutos para o país: devolveu direitos e rendimentos, atraiu investimento e permitiu-nos poupar muito em juros. (Sim, porque quem pensa em governar tem de pensar nessas coisas concretas que interessam à vida real, não pode esgotar-se na luta partidária.)

4. Na verdade, a continuação da conversa não correu bem. Sem dúvida que o PS ficaria melhor com acordos, papéis passados. Pode fazer-se mais do que está escrito, como aconteceu entre 2015 e 2019. Mas o que está escrito fornece um rumo conhecido e estrutura a cooperação política, o que foi muito importante nestes quatro anos. Por isso António Costa disse, desde o primeiro momento, que queria uma solução de estabilidade, para a legislatura. É verdade que alguns, agora, criticam essa insistência na estabilidade – mas a insistência na estabilidade era a insistência na necessidade de continuar a Geringonça. Ameaçar a estabilidade era ameaçar a Geringonça, ameaçar a Geringonça era ameaçar a estabilidade.

5. Contudo, o PCP decidiu dar um passo claro e colocar-se de fora. Tal como o PCP foi decisivo em 2015, para afirmar este processo, o PCP foi decisivo em 2019 para acabar com ele. Não acabou o mundo, mas acabou esta forma de cooperação que tão bem-sucedida foi para uma legislatura. Quem deu esse passo foi o PCP. A história apreciará devidamente esse facto.

6. O que poderia o PS fazer a partir daí? Na verdade, o SG do PS evitou extrair imediatamente as consequências do que o PCP tinha dito. António Costa fez de conta que não ouviu, julgo que para não tornar nada irreversível. Contudo, a partir do momento em que se consolidou a posição do PCP, ficou claro que fazer papéis assinados com outros parceiros seria ensaiar uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda. Isso seria inaceitável e iria envenenar todas as relações à esquerda no futuro. Um dos problemas desta solução política sempre foi a concorrência entre o PCP e o BE. Isso não está melhor, está pior. Só o PS está a fazer tudo com o maior cuidado possível para levar as coisas em frente sem mais afrontamentos. Se o PS tivesse aceitado uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda, o diálogo à esquerda ficaria definitivamente condenado à guerra civil generalizada. Foi o PS que teve de fazer o sacrifício de não insistir nessa tecla para proteger um futuro necessário de cooperação à esquerda. Entretanto, outros não demoraram a lançar-se sobre os despojos da Geringonça, com toda a virulência, talvez tentando ganhar agora os votos que perderam nas eleições.

7. Aqui intervém uma pergunta essencial: os que fizeram campanha contra a maioria absoluta não deviam agora disponibilizar-se para construir uma legislatura forte? Em campanha, deram a ideia de que queriam evitar a maioria absoluta do PS para que existisse uma maioria das várias esquerdas. Agora, na verdade, parecem querer a implosão da maioria das esquerdas. Não deviam ter dito, durante a campanha eleitoral, que, além de serem contra a maioria absoluta, eram também contra uma maioria de esquerda sólida e funcional? É justo que os eleitores que queriam a continuidade da Geringonça peçam contas aos partidos em que votaram sobre esta questão essencial.

8. Neste quadro, quando figuras gradas do BE afirmam que o PS decidiu acabar com a “Geringonça”, sabendo-se que não foi o PS que se pôs de fora do formato que tivemos em 2015, só podemos lamentar que o BE continue o seu caminho de ataque sistemático ao PS – desta feita recorrendo à mentira política. Podemos até compreender que o BE quisesse (ou quisesse dar a ideia de querer) uma Geringonça a dois, só PS e BE. Apesar de ser incompreensível essa pretensão à luz da declaração de guerra que Catarina Martins fez ao PS, quando afirmou (à LUSA, 15/09/2019): "A história desta legislatura é a tensão entre o Partido Socialista e a esquerda". Na verdade, o BE decidiu explorar esta circunstância para prosseguir dois dos seus objectivos: atacar o PS e atacar o PCP. Embora, claro, fazendo de conta que está “só” a atacar o PS.

O BE coloca como condição para essa Geringonça a dois, nomeadamente, uma matéria de desacordo recente com o PS: a legislação laboral. Fomos a votos com a nossa posição muito clara (a nova legislação laboral é mais favorável aos trabalhadores que a anterior, há muitos anos que não acontecia em Portugal uma revisão da lei do trabalho ser para mais protecção dos trabalhadores e não para menos protecção) e, afinal, parece que a nossa posição teve mais aceitação do eleitorado do que as dos partidos que perderam votos. E, certamente, ninguém pretenderá que o PS ganhou as eleições à custa dos votos dos patrões (até porque os resultados mostram que o voto socialista está eminentemente enraizado no povo miúdo, nos de baixo). Quando vozes que projectam no espaço público as posições do BE sugerem que a posição do PS foi um brinde aos patrões, estamos apenas a assistir à retórica que certa esquerda usa quando regressa às suas teses de que o PS e a direita valem o mesmo.

Joana Mortágua é que sabe do que fala: "Não existe acordo escrito porque o PS não aceitou as condições prévias do Bloco para negociar: reverter as leis laborais da troika". Sim, as condições prévias são sinal de ultimato, não são sinal de vontade negocial. É preciso perceber que no PS também temos de respeitar os que votaram em nós.

9. Há, contudo, uma pergunta que vale a pena fazer, numa veia interpretativa. Se foi o PCP que condenou a Geringonça, porque é que o PS não insistiu mais nesse tópico? Provavelmente, teria sido mais conforme aos interesses do PS insistir com mais estrondo, publicamente, com o PCP para que aceitasse algum tipo de explicitação das convergências estratégicas com o PS no horizonte da legislatura. Isso teria sido, também, mais conforme aos interesses do país, na defesa da estabilidade política, que, não tenho dúvidas, estaria mais bem servida com papéis assinados com metas plurianuais.
Quer dizer, o PS podia ter insistido mais com o PCP que a disponibilidade do BE pedia uma disponibilidade do PCP e que só assim se poderia manter a Esquerda Plural num formato que não fosse mais fraco do que no passado. O PS podia, por exemplo, ter pedido uma segunda reunião com o PCP, para sublinhar isso, tanto privada como publicamente. Ou, em alternativa, por exemplo, pedir uma segunda reunião aos Verdes, para insistir que estava a querer trazer a CDU para o processo, podendo até pedir ao PEV os seus bons ofícios junto do PCP para o efeito. Porque é que o PS não fez nada disso? Porque é que o PS não tomou essas diligências, mesmo antecipando a sua ineficácia, para marcar melhor a sua posição?

Não estou na cabeça do Secretário-Geral, nem estou por dentro das negociações, nem falo por ninguém a não ser por mim. Mas acredito que os negociadores socialistas não quiseram sublinhar ainda mais a posição negativa que o PCP teve em todo este processo. Os socialistas, depois de terem assumido no debate eleitoral que tinham mais simpatia pela forma de trabalhar dos comunistas durante estes quatro anos, em comparação com a atitude mais agressiva e adversarial dos bloquistas, têm agora de lidar com uma posição dos comunistas que, em substância, decretaram a morte da colaboração estruturada à esquerda e lançaram o espectro de uma luta de todos contra todos no espaço da anterior maioria parlamentar. Teria sido do interesse imediato do PS deixar bem claro que esta bonita história acabou por culpa do PCP, mas o sacrifício do momento pode ser necessário, e valer a pena, para preservar o mais possível a necessária cooperação futura com os comunistas. O BE, continuando a sua saga de tomar o PS e o PCP como os seus sacos de votos futuros, em vez de tentar preservar a boa vontade entre os parceiros, optou, mais uma vez, pelo que julga garantir ganhos imediatos: atirar à cabeça do PS e sublinhar as responsabilidades do PCP no roer da corda.

10. Como alguns camaradas têm afirmado, esta solução pode ser capaz de garantir a estabilidade. Concordo. Pode. E tem de ser feito. Mas vai dar mais trabalho. Vai aumentar a incerteza. Vai estimular os comportamentos oportunistas. E, no limite, pode ocasionar um novo acontecimento de coligação negativa, que já deu ao país os anos dolorosos do passismo.

11. Todas as soluções políticas têm as suas vantagens e desvantagens, não há arranjos humanos perfeitos no mundo real. Uma maioria absoluta, que provavelmente muitos consideram que seria preferível para quem tem de governar o país, teria algumas vantagens, mas teria também a grande desvantagem de desresponsabilizar os demais partidos. Uma situação como a da recuperação do tempo de serviço dos professores, por exemplo, teria permitido ao PSD e ao CDS continuar a sua farsa política se o PS tivesse maioria absoluta – porque é mais fácil falar quando não se tem os votos necessários para aplicar aquilo que se propõe. Por outro lado, esta situação de governo minoritário do PS contém outro risco: talvez alguns dentro do PS pensem que podemos governar à peça, dentro da esquerda e também com a direita. Não me parece que seja realista esperar isso.

Primeiro, porque está agora nos ombros do PS a responsabilidade de fazer honrar a legislatura que finda e a obra da Esquerda Plural, que fez bem ao país e colocou o PS como a força mais dinâmica da esquerda portuguesa e uma das mais bem-sucedidas da esquerda europeia. Honrar o que está feito é fazer agora mais e melhor. Na legislatura que finda, não fizemos nada que um bom governo social-democrata não devesse fazer, mas podemos ter deixado por fazer alguma coisa que é preciso fazer, limitados pelo posicionamento “sindical” de alguns dos nossos parceiros. Isso significa que temos de procurar soluções progressistas para problemas que não se resolvem apenas numa óptica sindical, como é o caso da necessária modernização da Administração Pública – onde a esquerda da esquerda mostra tradicionalmente uma certa falta de coragem política para assumir que a resposta pública não melhora apenas com mais dinheiro e mais funcionários, sendo necessário repensar a própria estrutura dos serviços e os sistemas de recompensa pela dedicação à causa pública. Encontrar respostas a desafios desta dimensão não pode ser realizado sem um rumo coerente, precisando de uma ambição global que não se constrói apenas com parceiros de ocasião.

Em segundo lugar, a direita que temos não é de confiança. Mesmo com Rui Rio, os dois acordos que o Governo fez com o PSD nesta legislatura (descentralização e fundos estruturais) mostraram que esta direita é traiçoeira. Com a possibilidade de termos o passismo de volta ao PSD, a fronteira à direita continua a ser clara, em nome das opções políticas que temos de fazer com os olhos nos portugueses. A tentação “centrista” que pode subsistir numa minoria do PS está desfasada da realidade, da vontade dos portugueses e dos trabalhos que temos pela frente.

É por isto que, como socialistas, cabe-nos continuar empenhados em governar no interesse geral, no interessa dos que mais precisam, no interesse do maior número. Fazer com que a morte da Geringonça seja apenas uma mudança de fórmula – uma mudança de fórmula que nos foi imposta, que não fomos nós que escolhemos.

12. A Geringonça morreu, viva a Esquerda Plural! O próximo Governo, sendo embora um Governo do PS (como foi até agora), há-de ser o Governo de uma Esquerda Plural que continue a fazer o que há a fazer pelo progresso do país e dos portugueses. Um governo de progresso, que não oponha concertação social à concertação política, antes as conjugue – para que não sejamos nós, à esquerda, a abrir espaços aos populismos disfarçados de “novos sindicalismos”. Continuar a trabalhar por uma sociedade decente, de direitos, de cidadania, de instituições democráticas mais fortes, servida por uma economia mais forte e mais justa, fazendo da nossa integração europeia um factor de desenvolvimento e de âncora num mundo global onde seria profundamente errado insistir em qualquer nacionalismo.

Há muito a fazer.



Porfírio Silva, 12 de Outubro de 2019


Print Friendly and PDF

7.10.19

Esquerda Plural, Legislatura 2


Os resultados eleitorais, e a sua projecção no futuro, merecem-me, em reacção imediata, as seguintes observações principais:

(1) A esquerda plural reforçou-se significativamente. No seu conjunto, os partidos que deram uma legislatura de progresso ao país foram confirmados pela escolha popular. Contudo, em números, só o PS contribui para esse reforço. O Livre junta-se, com todo o mérito, a uma esquerda plural de que, embora fora do parlamento, esse partido é co-autor político e ideológico. Este reforço da esquerda plural só foi possível porque o PS mantém a sua identidade fundamental de partido da esquerda democrática, europeísta convicto mas crítico, apostado no reforço do Estado Social de Direito. Este reforço não teria sido possível se o PS tivesse querido imitar os seus parceiros.

(2) O PS assume-se como a força motriz da esquerda plural, o seu principal agregador, a casa mais aberta e mais expansiva das forças progressistas em Portugal. Depois de uma campanha onde foi preciso clarificar alguns aspectos da interacção política à esquerda (designadamente, foi preciso clarificar alguns aspectos da relação com o BE), António Costa assumiu, com o discurso da vitória, que o papel do PS é ser o garante e o esteio de uma solução política e governativa que honre a legislatura passada e leve a esquerda plural para novos patamares de exigência e de realização. Para isso, é preciso construir uma solução de estabilidade, construir uma maioria com um programa coerente e uma governação de rumo claro. O país não perdoaria ao PS se os socialistas quisessem dispor dos seus parceiros à la carte, consoante o vento do dia. Do mesmo modo, o país não perdoará às outras esquerdas se se encolherem para um quotidiano de tacticismo e renunciarem a um compromisso com um caminho claro.

(3) O CDS implodiu porque o seu eleitorado não suportou a transformação de um partido estruturalmente conservador num partido extremista, na política e na retórica. É mais um caso da crise europeia dos partidos democratas-cristãos, que se tornaram frequentemente um motivo de escândalo para os antigos seguidores da doutrina social da Igreja. Já o PSD de Rui Rio resistiu (apesar de alguns percalços discursivos) à deriva populista e à radicalização ideológica. Pode ser que Rui Rio consiga resistir ao assalto do passismo, evitando a transformação do PSD numa espécie de Iniciativa Liberal encaixada no sistema, que é o que desejariam muitos dos opositores à actual direcção. O país precisa de uma direita democrática aberta ao progresso social… mas não está fácil conseguir tal desiderato…

(4) A chegada da extrema-direita ao parlamento é um desafio gigantesco. Não será fácil lidar com esse facto. Podem acentuar-se os factores de convergência desse extremismo com os indicadores de disrupção do contrato social que são representados, por exemplo, pelos chamados “novos sindicatos”. Há, pois, vectores das políticas públicas que têm claramente de continuar a ser reforçados, como seja o combate às desigualdades sociais, que são escandalosamente compressoras da igualdade, criando lastro para os extremismos alimentados pela exclusão. Mas, ao mesmo tempo, precisamos de tolerância zero na defesa das liberdades, especialmente quando elas podem agora ser atacadas a partir da própria instituição parlamentar. Ao mesmo tempo, uma solução política para o país, assente numa esquerda plural, tem de ser também capaz de gerar uma resposta no plano das dinâmicas sociais, não apenas uma resposta institucional. Mais política democrática é precisa, mas também mais participação social e mais cidadania activa. Os partidos precisam de se reinventar, para se tornarem mais movimentos sociais e menos máquinas eleitorais.

(5) O reforço do PAN exige aos partidos democráticos um suplemento de debate político. Esse partido – não necessariamente na sua orgânica, mas na sua mensagem cultural subliminar e em algumas propostas – mistura preocupações com o ambiente e o planeta (preocupações justas e urgentes) com tendências antidemocráticas na forma como aborda problemas de sociedade que não nos podem deixar indiferentes. Temos de saber destrinçar as diferentes camadas da mensagem do PAN e forçar um debate clarificador, deixando de recorrer ao silêncio ou à indiferença como forma de tratar as suas propostas. Há no PAN correntes que vêm o partido como uma força social-democrata ambientalista, mas também há pulsões neo-animistas tintadas com um irracionalismo preocupante. O que a política democrática precisa é de clarificação – e, em geral, o seu adiamento não é remédio, mas sim veneno.

No essencial, a estratégia seguida pela direcção do PS, sob a liderança de António Costa, tem sido boa para o país e para os socialistas. Naturalmente, de fase para fase a exigência aumenta. Não podemos falhar a etapa que agora se abre, conseguindo uma nova legislatura de progresso social e económico, suportado numa estabilidade política garantida pela esquerda plural.



Porfírio Silva, 7 de Outubro de 2019
Print Friendly and PDF