21.3.19

Entre ignorância técnica e ignorância social




O Público dá hoje à estampa uma notícia que merece mais reflexão do que possa parece à primeira vista: “Passageiro multado em dois mil euros por ouvir música no telemóvel durante voo”. Por favor, não a vejam como mais um caso anedótico em que a competência técnica acusa os decisores de ignorância ou em que alguém é penalizado por estar muito à frente em termos tecnológicos face aos burocratas de serviço. Nem resolvam o que pensar sobre isto com a facilidade da escapatória “mais uns juízes disparatados”.

 Vamos por partes.

Comecemos pelo resumo da notícia.

Um passageiro de avião resiste à ordem para desligar o telemóvel na fase de preparação para a aterragem (embora tenha acabado por o fazer). O seu argumento é que o modo de voo do telemóvel é precaução suficiente, não devendo ser impedido de continuar simplesmente a ouvir música no aparelho. O comandante da aeronave solicita à autoridade policial a identificação do passageiro e o registo da ocorrência. A ANAC (Autoridade Nacional de Aviação Civil) virá a aplicar ao passageiro uma multa de 2.000 euros. O passageiro recorre, um tribunal de primeira instância iliba-o da multa, com o argumento de que a evolução tecnológica tinha feito com que o modo de voo fosse suficiente para impedir que o telemóvel, embora ligado, causasse qualquer risco de segurança – razão pela qual as indicações dos envolvidos nas operações aéreas deviam ter evoluído em conformidade. Em recurso, um tribunal superior ditou que o passageiro terá mesmo de pagar a multa. Um docente de Comunicações Móveis daquela que se considera a mais importante escola de engenharia do país fala de “ignorância técnica dos juízes” (referindo-se aos juízes do tribunal superior que decide pela multa).

Para explicar o que quero dizer tenho de acrescentar aqui alguns sublinhados, socorrendo-me apenas da informação contida na notícia.

Primeiro, parece não haver contestação de que, na altura do incidente, estavam já amplamente disponíveis telemóveis que, colocados em modo de voo, não representam qualquer ameaça conhecida à operação dos equipamentos das aeronaves. Não vou considerar uma questão subsidiária, que é a de saber se podemos exigir aos tripulantes das aeronaves que saibam se o modelo de telemóvel usado por cada passageiro é ou não de um modelo que dê essas garantias. Descontada esta questão, podemos assumir, para simplificar o argumento, que, em geral, os telemóveis em uso são seguros em modo de voo.

Segundo, atendamos à razão que levou o chefe de cabine a mandar desligar o telemóvel: as instruções do fabricante da aeronave eram no sentido de que se desligassem os aparelhos, não bastando colocá-los em modo de voo. O tribunal de primeira instância, que começou por ilibar o passageiro da multa, argumenta precisamente que os fabricantes e operadores tinham de atender a essa evolução tecnológica e não fazer exigências aos passageiros que sejam injustificadas por essa razão.

Ora, temos aqui uma questão central, que não é tecnológica, nem sequer apenas jurídica. É uma questão relativa à forma como entendemos o funcionamento da sociedade.

Quando um reputado especialista em comunicações móveis acusa os juízes da Relação de “ignorância técnica”, está a argumentar com base num pressuposto: aquela situação concreta, naquele voo naquele avião naquele dia, devia – ou podia – ser decidida com base no conhecimento técnico da situação. Sendo verdade que o melhor conhecimento técnico disponível indica que se podia continuar a ouvir música no telemóvel, sem o desligar, bastando coloca-lo em modo de voo… o passageiro tinha o direito de agir com base nesse conhecimento técnico e, portanto, o direito de desobedecer à tripulação da aeronave. Não devendo, portanto, ser penalizado por ter desobedecido.

Em minha opinião, o raciocínio acabado de descrever está totalmente – e perigosamente – errado. A ideia de que, em sociedade, agimos geralmente com base em argumentação racional específica sobre cada situação concreta, é uma ideia errada. É errado, e perigoso, supor que podemos, nos poucos minutos disponíveis para preparar a aterragem de um voo comercial, travar um debate científico ou técnico sobre comunicações móveis e decidir o que fazer com base nessa argumentação. O chefe de cabine, e o comandante, seguem as instruções do fabricante da aeronave, no pressuposto de que o fabricante assegura, por via dessas instruções, um nível de segurança superior ao que se podia atingir com debates científicos entre tripulantes e passageiros, caso a caso, acerca do que é mais actual do ponto de vista técnico. Além de que, de outro modo, havia o risco de as responsabilidades legais do fabricante se extinguirem, como também argumentou o tribunal de recurso.

Quer isto dizer que desprezamos a acção com base no conhecimento? Não. Os fabricantes de aeronaves foram, progressivamente, adaptando as suas instruções à evolução dos telemóveis. Hoje, em geral, não ocorrem incidentes deste tipo nos voos que fazemos. O conhecimento, portanto, vai penetrando no funcionamento das relações sociais mediadas por artefactos. Mas não é na interacção local, indivíduo a indivíduo, com argumentos técnicos, tecnológicos ou científicos, que se decide o que fazer em cada momento. Há rotinas, rotinas geridas por instituições, organizadas em procedimentos, que tornam realizável um conjunto de operações, sem exigir que exista em cada voo um cientista de comunicações móveis para discutir com os passageiros relutantes o que fazer em cada caso.

É por isso que, ao acusar os juízes da Relação de ignorância técnica, o cientista demonstrou uma perigosa ignorância social. Reputo a ignorância social de muito mais perigosa, em geral, do que a ignorância técnica.

Precisamos voltar a pensar nas relações entre conhecimento e sociedade.




Porfírio Silva,21 de Março de 2019


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