30.3.17

vamos sair do euro, vamos mesmo, BE ?!



Segundo o Bloco de Esquerda «É urgente preparar o país para o cenário da saída do euro ou mesmo do fim do euro». Para não me acusarem de intoxicação, não fui buscar o título-resumo à "imprensa burguesa", mas sim ao portal esquerda.net, que acrescentava: «No final da reunião da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda, Catarina Martins sublinhou também que “numa Europa em degradação o nosso país não pode ficar alegremente no pelotão da frente para o abismo europeu». À imprensa, Catarina Martins ainda disse mais umas coisas, que metiam o actual Governo no mesmo saco do Governo anterior em matéria europeia, o que me parece escandalosamente injusto - mas não vou por aí.

Há aqui um ponto essencial a clarificar.
A direita, designadamente quando o PSD e o CDS estavam no governo, tentou empastelar a posição do PS com a posição do Syriza na Grécia. Andaram largos meses, em pura propaganda enganadora, a tentar vender que o PS adoptaria, chegando ao governo, uma postura de confronto com a UE e que isso seria uma desgraça para o país. Como se percebe hoje facilmente, esse discurso não tinha nada de verdadeiro, porque o PS é verdadeiramente um partido europeísta e não anuncia nem pratica posturas adversariais por princípio no contexto da UE.
Como outra face da retórica política nacional, a esquerda da esquerda tenta empastelar a posição do PS com a posição da direita adepta da ortodoxia económica dominante na UE, pretendendo que o governo se acomoda àquela ortodoxia. Como se percebe hoje facilmente, esse discurso não corresponde em nada à realidade, porque o governo de Portugal se tem empenhado firmemente em contribuir para mudar o rumo da política europeia. E, mais ainda, o governo tem trabalhado para criar no cenário europeu a margem de manobra que nos permita fazer a política que serve a nossa visão do país - mesmo quando isso vai contra as expectativas da ortodoxia económica dominante em Bruxelas. Os socialistas querem mudar a Europa - mas querem ficar na Europa. Mais precisamente na União Europeia, que é o único projecto viável para aprofundar a cooperação entre europeus.

O outro ponto diz respeito especificamente à questão da saída do Euro. Já nem vamos discutir o efeito pernicioso que teria no nosso entorno externo se fosse muito audível no mundo que partidos importantes da maioria parlamentar querem sair do Euro - e talvez, quem sabe, da própria UE. Mas, deixando isso de lado, é espantoso como algumas vozes são capazes de romantizar o tema da saída do Euro e descartar as consequências práticas que isso poderia ter.

Por esse lado, estando a comentar uma posição do BE, limito-me a dar a palavra a duas figuras relevantes desse espaço político: Francisco Louçã e Mariana Mortágua.

Em Março de 2012, Francisco Louça e Mariana Mortágua deram à estampa um livro, de seu título "A DIVIDADURA - PORTUGAL NA CRISE DO EURO", que na altura interpretei (do lado de Louçã) como um testamento político num ponto essencial, que resumiria assim: "não me misturem com essa malta que defende a saída do euro, porque não quero arder na fogueira dessa irresponsabilidade, se vier a acontecer". Claro que o livro, depois, argumenta sobre o cenário de sairmos do Euro nos nossos próprios termos e segundo os nossos melhores desejos. Mas sempre achei que o essencial da mensagem política era "cuidado com essa ideia perigosa de sair do Euro" - até porque "sair do Euro nos nossos próprios termos e segundo os nossos melhores desejos" é, em si mesmo, um projecto politicamente atirado para o domínio da aventura com as nossas próprias vidas.

Mas, enfim, para vossa reflexão deixo-vos largos excertos do primeiro capítulo do tal livro. É uma leitura longa, mas vale a pena.


Francisco Louçã, Mariana Mortágua,  A DIVIDADURA - PORTUGAL NA CRISE DO EURO

Excertos do Capítulo 1 : E se nos impuserem a saída do euro?

Comecemos pelo princípio, pela decisão de criar a nova moeda, que se voltaria a chamar escudo. O cenário é então este: o governo, perante as dificuldades económicas, decide aceitar o ultimato da Alemanha e declarar a saída do euro, para passar a usar o escudo como moeda nacional.
Manda então imprimir em segredo as notas de escudo e prepara-se para anunciar a grande novidade, numa sexta a noite, a hora do telejornal, quando os bancos já estão fechados (ou decreta um feriado bancário durante vários dias). Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias para distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa entrar imediatamente em circulação.
(…)
O que vai acontecer, em qualquer caso, é que toda a gente descobrirá que se prepara uma nova moeda. Esta operação de lançamento do escudo envolve milhares de pessoas, que transportam e distribuem as notas, e que irão certamente contar às suas famílias. De qualquer modo, todos assistiram nas semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que a situação vai muito mal e que serão necessárias medidas corajosas para salvar a Pátria. Todos assistiram as cimeiras europeias de emergência e perceberam o que se estava a passar. Há segredos que simplesmente não podem ser guardados.
O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos bancos levantar todas as suas economias e guardar as notas de euros. Se não o fizerem, as suas poupanças vão ser totalmente transformadas em escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que, afinal, é o objectivo desta operação. Ou seja, as poupanças vão ser tão desvalorizadas quanto a moeda em que passam a estar registadas. Os trabalhadores que depositaram salários e pensões vão ser as primeiras vítimas da nova política. Por isso, vão tentar salvar o que puderem.
Não são só os trabalhadores, diga-se de passagem. Haverá uma enorme fuga de capitais. As empresas, os fundos financeiros, todas as instituições que tiverem dinheiro depositado nos bancos que atuam em Portugal quererão pô-lo lá fora, onde sintam que os seus depósitos ficam protegidos da desvalorização.
Ora, os bancos não querem pagar aos clientes todos os seus saldos, porque esta corrida iria arruiná-los. Não querem nem podem, pois simplesmente não têm o dinheiro para isso - nem há nos bancos notas suficientes para pagar de uma vez toda a sua dívida aos seus depositantes. Os bancos vão por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme e o governo terá de chamar o exército para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina e na Rússia, foi assim em todos os casos em que se anunciaram grandes desvalorizações (e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na história da União Europeia), com a agravante de que neste caso a moeda que circulava é retirada para ser substituída por outra, fortemente desvalorizada.
Quem defendeu como alternativa imediata a saída do euro começa então a ter a primeira dificuldade. É que o exército e os bancos vão atuar contra a população. E as primeiras vítimas são os depositantes. Se a desvalorização for de 50%, como calculam alguns economistas que defendem tal alternativa, as poupanças dos trabalhadores irão perder metade do seu valor.
O que é muito provável, em contrapartida, é que durante algum tempo circulem paralelamente notas de euro e de escudo e que esta dupla referência de preços tenha um efeito inflacionário forte, além de conduzir a uma desvalorização exagerada do escudo. Pode ainda criar perturbações nos mercados, com o açambarcamento de produtos, dado o medo em relação à evolução económica. Nesse momento terá lugar uma corrida aos supermercados e haverá uma diminuição de produtos nas prateleiras, até que a nova situação económica tenha assentado. A vida não vai ser fácil depois do euro.

QUANTO É QUE DEVEMOS AO BANCO?

Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma longa dívida ao banco, que lhes emprestou dinheiro para comprar a casa que será paga durante muitos anos. Estes empréstimos foram feitos em euros. E, no dia da saída do euro, o governo tem duas opções: 1) aceita o que os bancos querem, que estas dívidas das famílias sejam consideradas ao seu valor anterior em euros; ou 2) decreta, para proteger os devedores, que as dívidas sejam transformadas em escudos. Na prática, só terá a última alternativa, porque a convulsão social agravada pela multiplicação da dívida seria insustentável.
De facto, se o governo permitisse que se mantivessem os créditos em euros (como foram contratados), as pessoas ficariam muito mais acorrentadas à dívida. Imaginemos quem tinha 100 mil euros de dívida, convertidos, ao escudo desvalorizado, numa dívida de 30 mil contos. Se o seu salário antes da desvalorização era de 1000 euros (na nova moeda, 200 mil escudos, ou 200 contos, que depois, com a desvalorização, passam a valer só cerca de 670 euros) e se usava metade para pagar ao banco, precisava antes de cerca de dezassete anos, com a corda ao pescoço, para pagar a dívida. Agora, precisará de vinte e cinco anos com as mesmas dificuldades, dando a mesma metade do seu salário ao banco. Perdeu oito anos.
No segundo caso, em que o governo denomina as dívidas aos bancos em escudos, ao valor anterior a desvalorização, como deve fazer, quem tinha uma dívida de 100 mil euros passa a ter uma dívida de 20 mil contos... que valem cerca de 67 mil euros. O banco ficou a perder. O problema é que, com este processo de desvalorização da dívida, o banco vai a falência, porque criou um buraco gigantesco no seu balanço e as suas dívidas à banca internacional continuam em euros. Não tem forma de pagar as suas dívidas ao estrangeiro.
É por isso que os defensores da saída do euro explicam, honestamente, que será necessário nacionalizar todos os bancos, não necessariamente para socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar. Ora, salvar um banco pode custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com os ativos, mas também com as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Essa dívida está em euros, mas o banco, falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos em escudos desvalorizados, para continuar a fazer pagamentos no estrangeiro em euros. A dívida pública disparou do dia para a noite porque o Estado ficou com os 175 milhares de milhões de dívida dos bancos. Salvar os bancos tem um custo e não é pequeno: as dívidas dos bancos, que antes eram privadas, passam a ser públicas porque foram nacionalizadas.

AUMENTO DE IMPOSTOS

Chegados aqui, já sabemos o que se vai passar: para pagar as dívidas da nacionalização da banca, vai haver um novo aumento de impostos, desta vez para financiar a banca internacional. O trabalhador, cuja dívida pessoal foi protegida, tem de pagar por outra via, que serão os novos impostos. Claro, é fácil imaginar que o governo simplesmente declare que não paga as dívidas internacionais dos bancos privados que nacionalizou. Mas, então, toda esta operação da desvalorização da nova moeda pode ser posta em causa, porque o seu objectivo era aumentar as exportações para mercados abertos, de modo que o aumento das vendas de produtos portugueses salvasse a economia.
Por outro lado, esta decisão tornaria ainda mais difícil o acesso da economia a financiamento externo. (…)
(…) Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), que o esforço orçamental não diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros mas os impostos são recebidos pelo Estado em escudos, sendo precisos cada vez mais escudos por cada euro) e que a saúde e a educação têm novos cortes. Por tudo isso, o trabalhador vai lutar por recuperar o seu salário.
Ora, isso pode deitar tudo a perder, dirá o governo. (…) O país está em alvoroço, houve motins à porta dos bancos porque os depositantes perceberam o que iam perder, os impostos e preços estão a subir, os salários a descer. Então, o governo tem duas opções: a solução dos presidentes argentinos, que fugiram do palácio de helicóptero, ou a solução da repressão.
 Por outras palavras, a saída do euro meteu-nos numa alhada. (…)

SALVAR A ECONOMIA COM AS EXPORTAÇÕES

Passou assim o segundo choque. Mas vem aí mais e pior. (…)
(…) com a desvalorização, o preço dos produtos importados aumentaria no mesmo dia. O combustível passaria a custar uma vez e meia o seu preço anterior e todo o sistema de transportes também: imagine o litro da gasolina a 480 escudos (ou 2,4 euros actuais). O mesmo aconteceria com os alimentos importados ou com os medicamentos, entre tantos bens de primeira necessidade. Nos supermercados, os bens faltariam, mas os que estivessem à venda seriam imediatamente mais caros.
Como dois terços do rendimento dos portugueses são gastos no consumo, imagina-se o efeito destes aumentos de preços. Este impacto faria, por si só, com que o salário passasse a valer ainda menos.
Quanto as exportações, é óbvio que podem aumentar. Mas muitos economistas vêem a sociedade como um laboratório e esquecem demasiadas vezes os tempos da decisão e dos resultados das políticas. Ora, esses tempos vão ser essenciais neste caso, por uma razão simples: é que os preços das importações aumentam de imediato, mas os efeitos do possível aumento de exportações vão demorar algum tempo. Até pode ser muito tempo.
(…) Para que as exportações possam liderar o processo de crescimento será necessário reverter décadas de desindustrialização em Portugal e de especialização da economia em sectores não transaccionáveis. É sem dúvida desejável, mas demorado e difícil de executar a curto prazo.
Além disso, é preciso levar em consideração o custo da matéria-prima e de outros recursos que são importados, para determinar o preço dos produtos que a economia portuguesa exporta. Como metade do valor das exportações depende de produtos importados, e estes se tornam mais caros com a desvalorização da moeda, o ganho de competitividade das exportações é diminuído. Por tudo isto, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde. Entretanto, a vida ficou mais cara, os depósitos foram abalados pela desvalorização, o aumento de emprego e de exportações demora algum tempo e é incerto.
(…)

30 de Março de 2017

29.3.17

Uma pergunta sobre o Brexit.





O Reino Unido fez chegar hoje a Bruxelas a carta que desencadeia o processo de saída daquele Estado-Membro da União Europeia, previsto no artigo 50.º do Tratado de Lisboa. Esperaram nove meses para dizer oficialmente e por escrito o que ficou pública e politicamente decidido no referendo de Junho do ano passado. (Preparem-se para o estilo negocial britânico…)

Agora, que o relógio está oficialmente a contar, os mais europeístas lamentam a primeira saída da comunidade – mesmo os que, em surdina, dão razão a De Gaulle e julgam que melhor seria os britânicos nunca terem entrado. Os mais cépticos celebram a possível desagregação da UE que aí venha, celebram a “vontade popular” expressa numa consulta popular directa – e evitam olhar para o lado, para não verem com quem acompanham nessa celebração (pelo menos aqueles que justamente se incomodam por se acotovelaram com Marine Le Pen e quejandos nessa trincheira).

Aqui deste lado, do lado dos que, conscientes das debilidades da União Europeia e críticos da sua orientação nos anos mais recentes (designadamente, críticos da forma como reagiu, tarde e mal, à Grande Recessão, sem ter aproveitado para corrigir os mecanismos que agravam as dinâmicas de divergência face a choques assimétricos), do lado dos que não confundem querer outra UE (e queremos) com uma ruptura com a UE, que nos deixaria mais isolados e mais fracos num mundo selvaticamente globalizado – deste lado temos outras perguntas para fazer.

A matriz de todas as perguntas políticas acerca do Brexit é esta: o que queremos que resulte dos anos de negociação que aí vêm? A União Europeia vai avançar, no sentido da prosperidade partilhada que a orientava e hoje ninguém vê no horizonte, ou vai afundar-se no aumento das desigualdades sociais e entre países e regiões? E o Reino Unido: o que vai ser depois do Brexit? Sim, o Reino Unido continuará a ser Europa e a sorte dos seus cidadãos não nos pode ser indiferente.

Podemos fazer uma versão específica da pergunta-matriz. Essa pergunta é: o que podem os trabalhadores esperar do Brexit?

A Confederação Europeia dos Sindicatos apresentou ao negociador pela UE, Michel Barnier, um documento onde propõe que se trabalhe para que o Brexit preserve os direitos do trabalho, tanto no Reino Unido como nos 27 restantes, no que toca ao emprego, aos padrões de vida e aos direitos dos trabalhadores, combatendo a ameaça de que o Brexit seja um acordo meramente virado para o livre comércio, assente na concorrência por baixos salários, baixos impostos e baixa protecção dos direitos.

Essa contribuição da Confederação Europeia dos Sindicatos (que pode ser lida aqui) não procura definir por antecipação o resultado do processo. O que procura, sim, é definir um método e umas balizas que garantam que, do Brexit, os principais perdedores não sejam os trabalhadores e a dignidade do trabalho. Para que isso seja possível, importa, por exemplo, garantir que o Pilar Europeu dos Direitos Sociais não valha apenas para a Eurozona, mas sim para toda a União.

O que colocou em cima da mesa a Confederação Europeia dos Sindicatos parece uma abordagem sensata. E, de uma perspectiva de esquerda, parece-me muito mais relevante e útil do que celebrar a desagregação da União Europeia.

29 de Março de 2017