21.2.17

"Era digital e robótica: implicações nas sociedades contemporâneas"



Hoje estive na Conferência Parlamentar "ERA DIGITAL E ROBÓTICA: IMPLICAÇÕES NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS", que teve lugar na Sala do Senado da Assembleia da República. Coube-me fazer a intervenção em nome do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. Aqui deixo o texto dessa alocução.

Para abordar o tema “Era digital e robótica: implicações nas sociedades contemporâneas”, precisamos deixar de lado as simplificações inspiradas seja pela tecnofobia seja pela tecnofilia, recusar o determinismo tecnológico e encetar o estudo dos desafios e oportunidades envolvidas na sua complexidade e incerteza, com recurso ao conhecimento disponível e à deliberação democrática.

Já todos estamos familiarizados com a pergunta: se um automóvel autónomo, a circular na via pública sem condutor, tiver um acidente, quem responsabilizamos: os ocupantes do veículo na circunstância, o construtor, os engenheiros que programaram a autonomia do veículo, ou os sistemas de informação que coadjuvam a circulação do veículo?

Se estas questões são principalmente jurídicas, outras podem tocar aspectos propriamente antropológicos.

Quando, em 2013, visitei o laboratório do professor Hiroshi Ishiguro, na Universidade de Osaka, pude observar os robôs humanóides da linha GEMINOIDS. Os robôs humanóides são, habitualmente, robôs com alguma semelhança genérica com o corpo humano: cabeça, tronco, pernas, braços, boca, olhos, orelhas. A forma humanóide de um robô facilita que saibamos como interagir com ele: entendemos facilmente onde estão as câmaras de vídeo que captam imagem, onde estão os microfones que captam som. Mas os robôs GEMINOIDS não são humanóides dessa forma genérica. Cada exemplar Geminoid é uma cópia, um duplo, um gémeo mecânico de uma pessoa particular. O primeiro Geminoid foi um gémeo do Professor Ishiguro. E já há versões mais actuais do Ishiguro robô. E já há gémeos robóticos de outros humanos.

Os Geminoids não são robôs completamente autónomos, são parcialmente teleoperados à distância. Sem tempo para explicações técnicas, interessa dizer que o Professor Ishiguro pretende construir robôs que sejam capazes de passar por pessoas. Disse mesmo uma vez: “se há falta de pessoas, porque não fazemos algumas?”. O gémeo humano poderia controlar não apenas um gémeo robô, mas dezenas de gémeos robôs. E sugeriu aplicações: num serviço, vários robôs gémeos podem tratar do atendimento ao público, com um único gémeo humano a controlá-los, intervindo este apenas em situações de disfunção. E os utentes sentir-se-iam atendidos por humanos. Estamos, aqui, julgo, a tocar questões mais fundamentalmente antropológicas do que as questões de responsabilidade civil. E a tocar questões éticas.

Seria enganoso, contudo, reconduzir a nossa problemática necessariamente para este tipo de robôs. Um conjunto de sensores, um conjunto de actuadores, e algoritmos que liguem os primeiros aos segundos, fazem um sistema robótico, mesmo que esses elementos estejam apenas ligados sem fios e distribuídos por diferentes locais, por exemplo numa praça pública, de forma que um leigo nem sequer se aperceba.

Já há certos domínios da interacção social a ser profundamente transformados pela presença massiva de agentes não-humanos, de modos tais que os humanos envolvidos não têm como distinguir a acção dos humanos da acção das máquinas.

Um exemplo vem dos mercados financeiros, com a chamada “negociação automática”, consistindo no uso de computadores para compra e venda, extremamente rápida e massiva, de produtos financeiros em mercados electrónicos globais. O uso de poderosos algoritmos permite uma especulação automatizada que resulta lucrativa basicamente por ser rápida e massiva. Em poucos anos, o tempo de execução destas operações baixou dramaticamente de segundos para microssegundos, havendo indicações de que representam cerca de metade do volume negociado nas bolsas americanas e europeias. Nestas situações, os traders envolvidos não sabem se estão a interagir com pessoas ou com máquinas. Anote-se, aqui, a recente proposta de lei do governo sobre o Regime sancionatório do direito dos valores mobiliários, que inclui algumas destas acções na categoria de operações susceptíveis de pôr em risco o regular funcionamento dos mercados.

Sim, a influência de produtos da Inteligência Artificial nas nossas vidas não está para chegar: já está entre nós.

E quando falamos em Inteligência Artificial falamos também de “machine learning” (máquinas que aprendem), falamos de programas que resultam de técnicas de evolução artificial (que não foram explicitamente escritos por um humano), falamos do cruzamento das nanotecnologias com a robótica, por exemplo para uso médico no interior dos nossos corpos. Ou falamos de guerra, de guerra à distância de milhares de quilómetros.

Um aspecto importante do que está a acontecer é a Internet das Coisas.

A Internet das Coisas será uma rede global de “coisas inteligentes”, assim ditas por serem identificadas individualmente, por disponibilizarem informação e por recolherem informação de forma massiva, entrando na nossa interacção social. E não estamos a falar apenas de computadores e telefones, estamos a falar de televisores que registam o que vê cada membro da família, frigoríficos que sabem o que cada um come, camas que sabem quem lá dorme, carros que denunciam onde fomos, medicamentos que ajudam a calcular que doenças temos, passaportes que transmitem os nossos roteiros, peçam de roupa que nos localizam e que recolhem dados sobre a nossa condição física. E tudo isto pode ser justificado benevolamente. Já há projectos, por exemplo, para colocar etiquetas de radiofrequência em notas de banco, para poder seguir cada uma individualmente e assim melhor se poder combater a corrupção. Tudo isto representa a possibilidade de uma avassaladora invasão de privacidade, tornando-nos uma fonte contínua, e talvez inconsciente, de documentação pública da nossa vida privada.

Pensando em termos de impacte no trabalho e no emprego, temos de olhar para a economia das plataformas digitais, que mobiliza uma conectividade ubíqua, omnipresente, para fazer do acesso a plataformas digitais a base de novas formas de negócio, não apenas para mobilizar consumidores (que compram livros, ou serviços de transporte, ou alugam apartamentos na net), mas também para comprar força de trabalho em formas que escapam largamente à regulação do Estado Social de Direito.

Vamos dizê-lo desta forma: há um novo actor nos mercados de trabalho: a multidão. A mecanização, na sua forma digital, dispensa as massas de trabalhadores reunidos numa empresa e recruta indivíduos isolados, que trabalham separados uns dos outros, dispersos por todo o mundo, uma multidão atomizada.

Uma forma de mencionar estes esquemas é chamar-lhes “outsourcing online”, por exemplo com o recrutamento online de trabalho barato e pouco qualificado.
Exemplo é o Amazon Mechanical Turk, onde, 24 horas sobre 24, sete dias por semana, alguém compra tarefas e alguém realiza tarefas em troco de um pagamento. Diz-se que são “Tarefas de Inteligência Humana” porque, sendo tarefas relativamente simples, os computadores são ainda ineficientes na sua execução. Exemplos: processar fotos ou vídeos para encontrar certos conteúdos, editar um ficheiro áudio e passar para texto escrito, verificar um grande catálogo para detectar erros.

Nestas plataformas, desaparece o enquadramento das leis laborais, desaparece a negociação colectiva, desaparece a organização dos trabalhadores, em muitos casos desaparece simplesmente a noção de direitos dos trabalhadores.

Uma multidão dispersa e anónima, de indivíduos isolados, face a empregadores globais sem rosto, é o inferno da desprotecção absoluta do trabalho.

Como desafio ao Estado Social, cabe notar que esta economia das plataformas, globalizada e desregulada, contém riscos para os sistemas públicos de segurança social e, mais geralmente, para o financiamento do Estado Social. É preciso aprofundar o debate, que o PS relançou recentemente, acerca da necessidade de alargar as fontes de financiamento da segurança social. Os que falam em impostos sobre o trabalho dos robôs falam, mesmo que por vezes de forma imprecisa, da necessidade de pensar as consequências de economias mais capital-intensivas.

Importa sublinhar que não são as máquinas que nos obrigam a usá-las desta ou daquela maneira. As máquinas abrem certas possibilidades, boas ou más, mas a escolha é colectivamente nossa. Para dar o exemplo da saúde: podemos usar robôs que supostamente são cuidadores de idosos e, na verdade, estarmos a condenar os idosos a ficarem sozinhos com máquinas. Mas o uso de robôs em ambiente hospitalar pode ser profundamente humanizador.

Foi assim com o robô humanóide Gasparzinho, que o Instituto de Sistemas e Robótica colocou na ala pediátrica do IPO de Lisboa, um projecto no qual ainda pude participar. Ora, o Gasparzinho, interagindo com as crianças em actividades educativas e de entretenimento, foi capaz de melhorar a qualidade de vida daquelas crianças. Num ambiente difícil, e muito regulado no plano ético, o robô contribuiu para a humanidade dos intervenientes.

O que vos digo não é uma justificação articulada do conjunto de razões que podem levar um Parlamento democrático a debruçar-se sobre estas questões. O que vos digo, no tempo disponível, é meramente impressionista e deixa por mencionar muitos aspectos cruciais. Mas espero que seja suficiente para marcar este alerta: a Assembleia da República deve dotar-se dos mecanismos necessários para estar preparada para os desafios que a Inteligência Artificial, a Robótica, a Internet das Coisas, e outras tecnologias associadas, colocam às nossas sociedades, para saber quando, e como, deve intervir como legislador responsável e atento.

O Parlamento Europeu já começou a fazê-lo, com uma resolução adoptada na semana passada, onde propõe uma Carta Europeia da Robótica, incluindo códigos de conduta para diversas categorias de profissionais, solicitando à Comissão Europeia que tome iniciativas legislativas e considere a criação de uma agência europeia para lidar com estas questões.

Teremos, na Assembleia da República, de encontrar os nossos próprios caminhos para fazer a nossa parte, como legislador prudente agindo com base no melhor conhecimento disponível.

Uma nota final. Estas questões não são questões tecnológicas, são questões de sociedade. E dou apenas um exemplo. Quando dizemos que as nossas crianças usam e abusam do tablet, podemos dizer que não há mal nenhum em usar o tablet. Temos é que ensiná-las a combinar o que está no tablet com o conhecimento do avô e da avó, que os liga a uma rede social, a uma rede de memória, a uma rede de cultura, a uma rede de tradição. Esses são os nossos desafios, civilizacionais.



21 de Fevereiro de 2017

14.2.17

A esquerda plural, por cá e alhures



Coisas nada evidentes.

Uma das razões pelas quais sou a favor da "esquerda plural" a fazer maioria parlamentar em Portugal é por ela contribuir para tentar reverter algum do sectarismo entre as diversas componentes da esquerda portuguesa.

Olhando para França, onde o sectarismo à esquerda é uma doença prolongada e agravada, vejo a necessidade urgente de um tratamento que comece a curar esse muro. Já defendi que, em vários países da UE, é preciso um novo diálogo entre a esquerda social-democrata e a chamada esquerda radical, até para enfrentar o problema central da capacidade de representação de que é capaz o sistema político. Aplico esse raciocínio à França, entre outros.

Só que, em França, a esquerda precisa de curar sectarismos em duas frentes. Precisa de curar o sectarismo na "esquerda da esquerda". E também precisa de curar o sectarismo na "direita da esquerda". O facto de Macron poder vir a ser a melhor hipótese de não eleger um presidente fascista nem um presidente extremamente reaccionário, e ao mesmo tempo só ter chegado a candidato por recusar as primárias dos socialistas e ecologistas, deve fazer-nos pensar. Tal como nos deve fazer pensar o facto de Macron, uma espécie de Terceira Via à francesa, coincidir com um candidato oficial do PS muito à esquerda do posicionamento "médio" do partido (pelo menos no discurso).

Sempre insisti que a esquerda democrática, para ser uma alternativa de progresso com capacidade para ser poder, tem de saber falar com muitos primos diferentes. Em França, a falta dessa capacidade sente-se como em mais lado nenhum. E precisa-se, como em muitos outros lados.


14 de Fevereiro de 2017

11.2.17

O Professor Francisco Louçã.



O Professor Francisco Louçã despende algum do seu tempo e das colunas do Público a partir do mote da minha entrevista no sábado passado, quando defendi que “A esquerda tem de pensar uma agenda para a década" (clicando no título chega lá). Infelizmente, não parece ter-se decidido a gastar o seu precioso tempo em qualquer avanço na conversa, antes tendo preferido um ar professoral que usa sistematicamente quando se dá a essa tarefa pouco estimulante de comentar o que eu digo sobre a esquerda. Assim sendo, também só quero deixar breves notas, todas elas realmente periféricas ao que realmente interessa.

Primeiro, o Professor Louçã é pouco rigoroso. Contrariamente ao que escreve, o PS não levou uma “Agenda para a Década” às eleições. O PS levou às eleições um programa eleitoral, que é a base do programa do atual governo – programa de governo que resultou do nosso programa eleitoral e dos acordos à esquerda. Que, pelos vistos, podiam ser compatibilizados. Embora o Professor Louçã escreva que os acordos do PS com o PCP e o BE se fizeram contra o programa do PS – o que mostra bem a velha técnica de alguns que só vivem bem dando a ideia de que o que é bom na acção do PS só se pode fazer contra a vontade do PS. Mas, repito, não foi a Agenda para a Década que o PS levou às eleições. A Agenda da Década é outro documento, que António Costa levou, em mão, a todos os partidos parlamentares depois da sua eleição como Secretário-Geral do PS, dizendo nessa ocasião que não era “pegar ou largar”, mas, antes, a nossa proposta para um diálogo estratégico para o país que envolvesse objectivos para lá do imediato. Não sei se a falta de rigor do Professor Louçã reside no desconhecimento do documento “Agenda para a Década” ou, menos prosaicamente, na recusa em compreender que o futuro do país não se constrói apenas pensando no curto prazo.

Segundo, o Professor Louçã insiste em se atribuir a si próprio o papel de “guarda fronteira” da esquerda. Fala de uma “articulação entre o centro e as esquerdas” para falar do que há a discutir entre o PS e os outros partidos de esquerda. Para dizer que o PS não é de esquerda, é de centro. Não crendo que o Professor Louçã reivindique a origem divina do seu apanágio de crismar como “esquerda” ou “não esquerda” este ou aquele partido, não consigo entender de onde lhe vem a legitimidade para “expulsar” da esquerda um partido que, como é o caso do PS, foi o principal obreiro do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública para todos, da Segurança Social pública, de uma política de ciência progressista… e fico por aqui nos exemplos. Só há uma explicação para essa pretensão do Professor Louçã: sectarismo. E o sectarismo é a pior doença da esquerda – principalmente daqueles que nunca chegaram a entender que a esquerda só não é plural nas ditaduras (ou porque está no poder e suprime totalitariamente as outras esquerdas, ou porque está sob ditadura na oposição e acaba por não ser capaz de diversidade).

Terceiro, o Professor Louçã tem dificuldade em conciliar uns parágrafos com outros. Começa a dizer cobras e lagartos do meu alerta para a necessidade de uma “agenda para a década” da esquerda, e depois vai dizendo que não se pode pensar só no imediato (por exemplo, quando escreve que “reduzir as conversas entre parceiros a uma gestão do dia-a-dia cria instabilidade”). Portanto, se for eu a dizer, o Professor Louçã acha mal; se for o Professor Louçã a dizer, já acha sensato e relevante. Que há necessidade de fazer um debate mais profundo e atempado da política da maioria parlamentar? Claro que há. Como eu e muitos outros já tínhamos dito antes.

Quarto, o Professor Louçã tem dificuldade em reconhecer quando está num debate, preferindo fazer de conta que está a falar sozinho, talvez a dar lições aos demais. Daí que, gastando embora parte do seu texto a falar da União Europeia como questão que tem de ser trabalhada com outra profundidade pelas esquerdas na sua pluralidade, faz de conta que não sabe ou não percebe que eu tinha, precisamente na entrevista em referência, identificado essa como uma das questões centrais a precisar de outro tipo de conversa. Não precisamos de estar de acordo para identificar os pontos que precisam de urgente tratamento. Falar de um ponto que eu identifiquei como uma das encruzilhadas mais precisadas de trabalho à esquerda, e falar como se eu tivesse passado ao lado desse ponto de agenda – é pouco próprio de quem seja capaz de entender que está num debate.

Infelizmente, o Professor Louçã, que já uma ou outra vez decidiu despender tempo com o que eu escrevo ou digo, adopta nessas ocasiões o ponto de vista da superior pureza de quem tem a "verdadeira esquerda", o que, no fundo (e não querendo ser ofensivo para nenhum dos dois), não anda muito longe de uma auto-infligida displicência muito parecida com a forma como Francisco Assis costuma brindar-me na sua saga contra a orientação política da direcção do PS. Francisco Assis é motivado pela sua desconfiança de que eu sou demasiado à esquerda para ser do PS. Francisco Louçã, finalmente, não anda longe: seria mais cómodo para a sua estratégia que não houvesse vozes de esquerda no PS - seria mais fácil, nesse caso, tentar transformar o PS num pequeno partido incapaz de dar um impulso progressista ao país.

Felizmente, o Bloco de Esquerda, como colectivo e como força política, é melhor do que a auto-suficiência de quem quer que seja. É mesmo por essa razão que vale a pena, à esquerda, pensar para além do imediato, pensar para além do anual, pensar para além da legislatura. A esquerda tem de pensar numa agenda para a década.



11 de Fevereiro de 2017

5.2.17

"A esquerda tem de pensar uma agenda para a década."



[Para memória, reproduzo aqui a entrevista que João Pedro Henriques me fez para o Diário de Notícias, publicada a 4 de Fevereiro de 2017 (em linha aqui).]

Porfírio Silva, um dos principais entusiastas dentro da direção do PS dos entendimentos do partido com as formações à sua esquerda, dá o passo em frente e vai mais longe: propõe que PS, Bloco de Esquerda, PCP e PEV comecem a conversar entre si um programa de governação a longo prazo. Uma "agenda para a década", diz, numa referência ao título do documento do PS que enquadrou a preparação do último programa eleitoral do partido. O dirigente socialista, próximo de Costa e membro do núcleo mais restrito de decisão no PS, lança no entanto também avisos de curto prazo: as autárquicas não podem fazer perigar a estabilidade do governo.


A nova atitude política do PSD expôs alguns problemas internos na maioria de esquerda. O governo foi obrigado a substituir a redução da taxa social única pela redução do Pagamento Especial por Conta. O que revela isto sobre o estado da arte na maioria de esquerda?

Revela para já no PSD uma falta de maturidade democrática e uma falta de coerência assinaláveis e lamentáveis. No nosso lado, isso revela que a maioria parlamentar de esquerda, ao fim deste tempo, revelou-se mais poderosa e interessante para o país do que poderíamos imaginar ao princípio. Se nos focarmos apenas na ideia de devolução de rendimentos e direitos, estaremos num plano. Mas na realidade, passado este tempo, já estamos num plano diferente, que é começarmos a fazer coisas que não estavam previstas nos acordos e começamos a ter mais ambição.


Isso quer dizer que as "posições conjuntas" foram curtas para aquilo que era preciso fazer?

Não. Se olharmos para os acordos, indicam uma coisa muito importante e que nem sempre tem sido sublinhada: colocamos o PS no ponto de vista da legislatura e os acordos também. Na realidade, há vários aspetos do acordo que não se satisfazem num ano ou dois. Há aspetos que precisam de uma legislatura para ser concretizados: combate à precariedade, a reanimação da negociação coletiva, o reforço do Serviço Nacional de Saúde e de outras funções sociais do Estado, a evolução continuada do salário mínimo nacional, a universalização da educação pré-escolar. São coisas que não se fazem num ano ou dois. Há muita matéria dos acordos que tem de ser vista, como os próprios dizem, na perspetiva da legislatura.

Mas não estão determinadas em concreto as medidas a tomar.

Os acordos não se resumem a dar respostas fechadas e definitivas para problemas. Os acordos indicam variadas áreas em que nos comprometemos a dar respostas ao país em conjunto. É claro que os acordos não são o programa de governo. Há trabalho a fazer. O importante é: nós pensamos numa perspetiva de legislatura. E importa sublinhar que a estabilidade política é essencial ao progresso social. É muito importante sublinhar: a esquerda deve mostrar ao país que somos tão capazes de dar estabilidade governativa como os outros.

Isso é uma recomendação para o PS, para o Bloco de Esquerda ou para o PCP?

É para toda a gente. Até diria mais: para já estamos numa perspetiva de legislatura. Para mim é absolutamente claro que o PS continuará a concorrer com as suas próprias listas. Mas acho que nós começamos todos a pensar noutra direção...

Ou seja, seria mais responsabilizante que, uma próxima legislatura, todos estivessem no governo?

Hoje posso confessar que quando isto estava a ser discutido internamente no PS eu era um dos que defendiam que era mais interessante ter um governo com todos do que ter um governo só do PS e uma maioria parlamentar plural. Mas não me foco na questão da fórmula, até porque reconheço que houve aspetos em que foi positivo ser um governo só do PS.

Por não se ter bloqueado o diálogo europeu?

Sim, terá sido mais fácil entrar no cenário europeu com esta fórmula governativa do que se fosse um governo de coligação. Mas não me quero concentrar nas questões de fórmula. Alguns já têm dito que precisamos de rever os acordos, outros prefeririam um programa comum. Eu não entro pela questão da forma, entro pela da substância. Temos de aumentar a ambição. E isso para mim significa responder a esta pergunta: que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas? Estou a pôr a questão em termos de ambição estratégica. Em vez de pensarmos em termos anuais - Orçamento do Estado -, temos de pensar ao nível de Programa Nacional de Reformas. E até diria, voltando aos nossos próprios termos: precisamos de pensar numa agenda para a década, a esquerda tem de pensar uma agenda para a década. Precisamos de pensar estrategicamente a mais longo prazo. Quando dizemos que temos de reduzir estruturalmente as desigualdades excessivas que temos no nosso país, alguém pensa que se pode dar uma solução sustentada e duradoura apenas numa legislatura? Provavelmente não.

Portanto, a esquerda - e todas as componentes que integram a atual solução de governo - devia agora encarar seriamente a hipótese de começar a conversar entre si numa perspetiva de longo prazo.

Sim, sem dar um calendário, sem dar uma fórmula específica, acho que é preciso começar a pensar com outra ambição. Mas isso tem exigências próprias. Vou dar um exemplo de um tema que não podemos ignorar, em que precisamos de ter outro tipo de conversa: a questão europeia. O PS tem uma aposta na Europa que não é partilhada da mesma maneira nem pelo BE nem pelo PCP, e é uma questão central da estratégia para o país.

Mas o PS não pode estar à espera que o PCP, o BE ou o PEV agora se tornem europeístas?

Nenhum dos partidos está à espera que cada um dos outros deixe de ser aquilo que é. Mas assim como hoje nós podemos reconhecer que alguns alertas que o PCP deu no passado acerca dos riscos da integração europeia eram pertinentes, continuo a achar que Portugal deve estar na União Europeia [UE] e na zona euro. Isso não invalida que reconheçamos que o PCP deu alertas relevantes e pertinentes. Da mesma maneira, talvez outros partidos sejam capazes de reconhecer que o PS não é o Syriza - e ainda bem. O PS não é o primeiro Syriza, que pensou que ganhava afrontando os outros parceiros, nem é o segundo Syriza, que teve de aceitar coisas que nunca pensou aceitar. Talvez os outros parceiros estejam disponíveis para compreender que a via que o PS escolheu, sendo difícil, apesar de tudo tem produzido melhores resultados do que uma via de afrontamento com a UE.

Como é que se resolve a questão concreta da rejeição categórica do BE e do PCP ao Tratado Orçamental?

Em primeiro lugar, já não há Albânias, já não é possível estar isolado do resto do mundo. Penso que este governo tem demonstrado que, com todas as limitações que nós reconhecemos, tem permitido mudar algumas coisas. Hoje, Portugal não está isolado, tem parceiros, há vários países que olham para a experiência portuguesa como uma experiência interessante. Há um caminho, que é difícil, mas é um caminho que promete e concretiza mais do que um caminho de afrontamento. A esquerda não pode voltar ao nacionalismo. Não pode trocar o internacionalismo pelo patriotismo.

Sente que um dos fatores que vieram expor os recentes problemas dentro da maioria de esquerda foi a proximidade das eleições autárquicas?

Todos os partidos concorrem para ganhar. O PS quer continuar a ser o maior partido autárquico, ter a presidência da Anafre e da ANMP. Também entendemos que os outros partidos têm os seus objetivos, e isso é perfeitamente legítimo e normal. Mas seria absolutamente incompreensível, e até muito pouco de esquerda, que por causa da tentativa de obter alguns ganhos autárquicos se entrasse em táticas que pusessem em causa a solidez e a eficácia da maioria de esquerda no Parlamento. A única linha que acho que deve ser marcada é: não façamos das eleições autárquicas uma oportunidade para prejudicar a eficácia, a solidez e a estabilidade da maioria parlamentar e da governação.

E o facto de o Bloco e o PCP serem muito competitivos também complica as coisas?

Todas as relações com vários polos são complexas e não há só a dinâmica do PS com cada um dos outros partidos com quem subscreveu acordos, há as dinâmicas que já existiam de alguma diferenciação política e estratégica dos outros partidos. Mas isso faz parte da nossa democracia, são partidos diferentes, convergem numas coisas, divergem noutras, temos de viver com isso e não é o PS que vai dar lições sobre como o BE e o PCP se devem relacionar.

Neste momento exclui a possibilidade de uma interrupção da legislatura através da aprovação de uma moção de censura que passe com votos à esquerda do PS?

Acredito que a esquerda nunca dará a mão à direita para derrubar um dos parceiros da esquerda.

Derrubou em 2011.

Acho que já todos fizemos contas ao que aconteceu em 2011. E toda a gente percebeu que o que resultou disso não foi bom para o país.

Portanto, não se perspetiva que o PS venha a ter de apresentar uma moção de confiança ao seu governo.

Acho que só se apresentam moções de confiança quando se desconfia da confiança, e neste momento não há razões para duvidar da confiança.

Mas é uma opção que o PS não pode em absoluto excluir.

Todos os mecanismos previstos no nosso ordenamento constitucional e jurídico são recursos dos agentes políticos, mas o meu julgamento político é este: não vejo necessidade de moções de confiança porque não duvido da confiança.