O ano que corre terá vários episódios importantes para a política europeia – e, por essa via, importantes para as nossas vidas de pessoas comuns. Alguns desses episódios encostam a esquerda à parede: será a esquerda capaz de pensar e fazer alguma coisa útil para não se perder nos labirintos abertos pelos populismos e pela mistura entre direita e extrema-direita? Será a esquerda capaz de entender que esses labirintos se complicam ainda mais pelas nossas próprias incapacidades longamente enraizadas?
Em muitos países, a esquerda sofre de uma prolongada doença de sectarismo. Isto é: continua a haver sectores da esquerda convencidos da sua própria pureza química e da consequente “obrigação militante” de “dobrarem a espinha” de outros sectores da esquerda (quanto mais não seja recusando a outros a própria pertença à esquerda). Em Portugal, com uma maioria parlamentar de esquerda plural, com um importante histórico de divergências e uma evidente necessidade de trabalhar para consolidar convergências, este pano de fundo merece ser pensado.
Alguns episódios históricos deveriam alertar-nos para a gravidade da questão. Vejamos dois, um de lá de fora, outro português.
Nas eleições presidenciais francesas de 2002, Lionel Jospin, candidato dos socialistas (que tinha sido primeiro-ministro do governo da Esquerda Plural de 1997 até esse ano), não passa à segunda volta, tendo tido menos votos que o candidato da Frente Nacional (extrema-direita), Jean-Marie Le Pen. Le Pen tem 16,86% dos votos, Jospin fica-se pelos 16,18%.
Nessa eleição havia vários candidatos presidenciais de esquerda. Alguns desses candidatos vinham da Esquerda Plural, designação para a rede de acordos que tinham sido celebrados para as eleições legislativas de Abril de 1997, que ligou o PSF a entendimentos eleitorais separados com os Verdes, os Radicais de Esquerda e com o movimento de Jean-Pierra Chevènement (dissidente do PSF). Esses acordos, complementados com uma declaração conjunta com o PCF, configuraram a Esquerda Plural, que chegou ao governo com ministros e secretários de Estado dos vários parceiros (apesar de Chevènement ter saído do governo em 2000).
Ora, os candidatos que tinham sido propostos por forças integrantes da Esquerda Plural, que faziam a maioria governamental, recolheram (além dos socialistas) cerca de 16%. Outros candidatos da chamada esquerda radical, ou extrema-esquerda, recolheram mais cerca de 10%. Isto quer dizer que a segunda volta foi disputada entre dois candidatos da direita, um da direita tradicional (Jacques Chirac) e outro da extrema-direita (Le Pen), apesar do conjunto dos candidatos da esquerda na primeira volta terem recolhido mais de 42% dos votos. Chirac venceu na segunda volta com mais de 82% dos votos.
Outro episódio é o das presidenciais portuguesas de 1986. Nessas eleições, Freitas do Amaral venceu a primeira volta com mais de 46% dos votos, Mário Soares recolheu pouco mais de 25%, Salgado Zenha pouco mais de 20% e Lurdes Pintasilgo pouco mais de 7%. O candidato da direita perdeu a eleição com 48,82% na segunda volta, contra Mário Soares com 51,18% dos votos, que foi apoiado por toda a esquerda – com destaque para o PCP, que engoliu um enorme sapo para evitar um mal maior.
Isto é: no caso das presidenciais portuguesas de 1986, a esquerda arranjou uma maneira de divergir quando tinha de divergir e de convergir quando tinha de convergir, enquanto, no caso das presidenciais francesas de 2002, a esquerda divergiu até ao desastre.
O problema volta a apresentar-se agudo nas próximas presidenciais francesas, onde pode acontecer que a esquerda do PSF consiga vencer as primárias do seu próprio campo apenas para chegar à situação de vários candidatos de várias esquerdas a comporem um cenário onde, todos contra todos, arriscam deixar à direita os trunfos decisivos e a vitória final.
Para quem, como eu, se coloca no campo do socialismo democrático, da social-democracia e do trabalhismo, uma família europeia bastante heterogénea, esta é uma questão complexa. Muitos entendem que o essencial da questão está no desafio histórico da esquerda radical ao socialismo democrático: como em Espanha o Podemos tenta desalojar o PSOE da liderança da esquerda, também noutros países outras forças radicais tentam “pasokizar” os partidos socialistas e transformar os extremos à esquerda e à direita nos novos pólos agregadores de alternativas de poder.
Vejo a questão de outra maneira. Para ultrapassar a crise de legitimidade das nossas democracias, ameaçadas por uma grande desafeição de muitos cidadãos face a um poder político que parece distante e desinteressado das suas vidas concretas, é preciso reforçar a base social da democracia representativa. Quer dizer, é preciso que venha mais gente ao envolvimento directo em soluções de governo que respondam às necessidades dessas camadas, designadamente às necessidades de pessoas que sentem que para elas só ficam as sobras do crescimento e do progresso. Ou nem isso. Do lado da esquerda, e pensando como socialista, julgo que podemos fazer isso estabelecendo uma relação o mais produtiva possível com outras forças de esquerda, das quais divergimos muitas vezes – e, certamente, muitas vezes por boas razões que nos assistem. É tão simples – e tão complexo – como isto: os socialistas, social-democratas e trabalhistas têm de ser capazes de desenvolver um novo diálogo com as chamadas esquerdas radicais, para alargar a base social de apoio a soluções democráticas e progressistas para a governação. E para fazer com que essas soluções possam tornar-se maioritárias e possam ser implementadas. Temos todos de aprender como fazer isso. Certamente que o “realismo da governação” dos socialistas (o hábito de pensar em termos de viabilidade da concretização) pode ser útil. Certamente, também, o “radicalismo” de certa esquerda pode ser útil para não perdermos o contacto com muitas pessoas que, hoje, desesperam da representação e estão prestes a cair nos braços do primeiro populista que lhes apareça.
O gigantismo dos desafios aconselha a grandeza da resposta. O que se tem feito em Portugal pode ter algum interesse para esta estratégia. Mas, claro, também por cá temos ainda muito para aprender. A esquerda precisa de ser capaz de divergir e de convergir – e de escolher os modos e os momentos certos para cada um desses movimentos dinâmicos.
28 de Janeiro de 2017