30.12.16

Vale dos caídos, Tóquio.



Sob o título "Japão: em Yasukuni, a II Guerra Mundial ainda está por terminar", o Público noticia hoje o seguinte: "Um dia depois de Shinzo Abe ter feito uma visita histórica a Pearl Harbor, a ministra da Defesa japonesa visitou o controverso santuário Yasukuni, onde é feito o culto a criminosos de guerra." É, de facto, uma questão quente na política japonesa e regional.

A 15 de Junho de 2013, durante a minha estadia de cinco meses na Universidade de Tóquio, visitei o templo em questão. O texto que então publiquei neste blogue explica o que por lá está em causa. Reproduzo esse texto abaixo, sem tirar nem acrescentar. (Este texto consta agora do meu livro Caderno de Tóquio. Para saber mais sobre esse livro pode clicar aqui.)




Hoje fiz uma visita muito querida à direita nacionalista e imperialista do Japão. A um sítio que essas correntes gostariam que fosse visitado por políticos de topo, para quebrar o tabu que ainda é paras as forças mais tradicionais da política japonesa do pós-guerra. Fui visitar o Yasukuni Jinja. Localizado no bairro de Iidabashi, considerado um dos santuários xintoístas mais bonitos e imponentes de Tóquio, o Yasukuni Jinja (“Santuário para a Paz da Nação”) é dedicado aos nacionais caídos em combate nas guerras travadas pelo Japão moderno, incluindo (mas não exclusivamente) os mais de dois milhões de japoneses que morreram na Segunda Guerra Mundial (entre eles, vários dirigentes militares condenados como grandes criminosos de guerra). No recinto, compondo a mensagem, encontra-se o Museu da Guerra Yushukan. Mas vamos por partes.

Muitos aspectos deste santuário xintoísta são como em qualquer outro. A entrada na zona santa é assinalada por portais (torii), sendo que este, enorme e em aço, ao ser visto de dentro mostra bem a divisão com o espaço profano.


Há a actividade de pedir um desejo e, não gostando do que calhou, deixar o respectivo papelinho pendurado à espera que os deuses façam melhor, criando o que chamo “árvores de desejos que não correspondem às expectativas”.


Também há votos inscritos em tabuinhas que se penduram numa estrutura própria.



E também há o espaço para o ritual da purificação.


Há, contudo, requintes neste santuário que não se encontram em todos, como este palco específico para o teatro Noh, ao ar livre, como manda a tradição.


Podemos, contudo, encontrar indícios de que este santuário não é como qualquer outro - num sentido muito específico. Por exemplo, estava a acontecer, na parte reservada do santuário, uma cerimónia que julgo seria um casamento. Um casamento envolvendo gente da marinha de guerra, parece que não propriamente grumetes. Mas este seria apenas um indicador social.



Mais reveladora é a mensagem implícita de uma folhinha disponível no santuário. Parece que todos os meses há uma “última mensagem” a recordar. A última mensagem é uma carta de um militar japonês morto em combate, dirigida, por exemplo, como neste caso, à sua mulher. A “última mensagem” deste mês começa com uma introdução, que faz votos para que muitos venham venerar e conhecer os nobres pensamentos dos que deram a vida pelo seu país. A mensagem propriamente dita é do tenente da marinha de guerra Tokuji Onodera Mikoto, dirigida à sua mulher Etsuko, e começa com as seguintes palavras: “A minha alegria por morrer como escudo de Sua Majestade, como filho do Japão”. O resto não é muito mais original: o desejo longamente acarinhado de um homem, que é morrer pela sua nação, vai acontecer, vou alegremente doar a minha vida; a mulher tem que se comportar à altura da condição de esposa de um militar, criar o filho varão para que ele se torne também militar, criar a filha menina e arranjar-lhe um bom marido; se o filho de que está grávida também for varão, será também militar, se for menina, casará também; a esposa, após a morte do marido, deve voltar para a sua terra natal e tratar dos sogros (o tenente devia ser o filho primogénito, aquele a quem cabe cuidar dos pais, razão pela qual hoje em dias muitas mulheres os evitam como maridos); a esposa deve cuidar a sua conduta para não ser criticada; e “após a morte do meu corpo, o meu espírito tornar-se-á um guardião do nosso país e destruirá os inimigos do Imperador”; trata da educação dos nossos filhos, eu vigiarei por vós no outro mundo. Note-se que não se trata de uma despedida de última hora: a mensagem foi escrita a 29 de Novembro de 1940 e o tenente foi morto em combate a 13 de Junho de 1945. Trata-se de toda uma teoria perfeitamente assumida e sem os agravos da última aflição. (Reproduzo a folhinha em japonês, mas na outra face vem explicado em inglês.)


A outra componente do conjunto é o museu da guerra. Em parte é dedicado à memória dos combatentes (milhares de fotografias, por exemplo), mas é, substancialmente, um bom museu para passar uma mensagem. Cada secção tem painéis explicativos (interpretativos) e despojos de guerra em grande quantidade e que parecem cuidadosamente seleccionados. Os sectores com despojos estão, em geral, apenas explicados em japonês, mas os painéis têm versões em inglês. Daí resulta, sem estar aqui a fazer uma análise pormenorizada, uma adesão permanente a uma certa ideia de Japão imperial. Desde a queda do Shogunato e a restauração Meiji (quando o Imperador voltou a ter poder político, quando até aí, embora existisse, não tinha nada a ver com a governação) que a perspectiva é sempre a defesa do Imperador. O tom anti-ocidental é relativamente contido, mas sistemático. E uma certa ideia de “japoneidade” é permanente: foram sempre os adversários de guerra do Japão que tiveram culpa de tudo, desde os vizinhos chineses aos russos e aos ocidentais, sendo que o Japão agiu sempre de boa-fé e nunca fez disparate nenhum (a não ser ter perdido a última guerra). Muito significativo do que está em causa neste conjunto cerimonial. Na secção das relíquias, temos aviões que acabaram por ser usados pelos suicidas (kamikaze), embora não fosse esse o seu destino original; temos uma espécie de semi-planadores que foram concebidos mesmo para suicídio contra os navios americanos; e temos um submarino concebido para ser a versão em água dos kamikaze (atirar-se contra embarcações), pouco conhecido por ter chegado tarde na guerra e ter acabado por ter pouco uso.


Percebe-se agora por que comecei por falar em “Vale dos Caídos”? A estátua de Omura Masujiro (1824-1896), fundador do exército japonês moderno, colocada em grande destaque logo à entrada do santuário, diz tudo do que está em causa.



19.12.16

esclarecimento do Teatro da Cornucópia



Os responsáveis pelo Teatro da Cornucópia, Luis Miguel Cintra e Cristina Reis, divulgaram há pouco um esclarecimento sobre o que se tem estado a passar em torno da companhia. Constatando o nível de especulação que o assunto tem suscitado, com alguns a colocar na boca de Cintra palavras que ele não proferiu - e intenções cuja atribuição é puramente difamatória -, senti dever colocar aqui o texto desse esclarecimento. É como segue.

***

Perante a lamentável confusão gerada nos órgãos de comunicação social pela inesperada visita do Senhor Presidente da República ao Teatro da Cornucópia, vemo-nos forçados a esclarecer a presente situação.
Ao longo dos muitos anos de dependência financeira do Estado, reivindicada como indispensável, várias vezes afirmámos, em pedidos de subsídio e relatórios, que as verbas concedidas eram insuficientes para o projecto de, ao nosso modo, fazer teatro.
Quando essas mesmas verbas atribuídas para financiamento das estruturas sofreram sucessivos cortes e tendo elas há três anos chegado a um valor visivelmente insuficiente, vimo-nos obrigados a rever escolhas de programação e respectivas formas de produção, de modo a sempre viabilizar os nossos projectos. As co-produções, bem como alguns apoios pontuais como os da CML e dos Amigos da Cornucópia, contribuíram para a sustentabilidade do funcionamento do Teatro da Cornucópia.
Antes do cumprimento do último ano do quadriénio a que estávamos vinculados, considerámos já a possibilidade de o não praticar, por considerar que era já difícil o seu pleno cumprimento. Mas insistimos em continuar. A evidência, porém, da situação limite das nossas possibilidades de assegurar, neste quadro de financiamento, o cumprimento de novos projectos, e tal como dissemos na divulgação do espectáculo apresentado neste último sábado, considerámos como incontornável o fecho da empresa Teatro da Cornucópia.
Tinha já sido esta a decisão, anteriormente, comunicada informalmente ao Secretário de Estado da Cultura e que mais tarde foi a razão da reunião havida no fim de Outubro no Palácio da Ajuda, com a presença de uma representante da CML. Foi então por nós levantada a questão que se prende com a CASA, edifício excepcional que ocupamos e onde sempre trabalhámos. Com tudo que ele contém. Exprimindo um desejo de que pudesse ser aproveitado para fins culturais, não deixando que esse património viesse a constituir somente um valor capaz de colmatar indemnizações aos trabalhadores, a única dívida que a empresa que se extingue não tem porventura capacidade de resolver. Entendemos que de momento a intenção do Ministério é a de assegurar um ano de renda no sentido de se proceder a um inventário rigoroso do património.
Na véspera do passado Sábado, (Recital Apollinaire e lançamento do segundo Livro do Teatro da Cornucópia/Espectáculos 2002-2016 e de um DVD), foi-nos comunicada a visita do Senhor Presidente da República, que, antes do espectáculo, queria inteirar-se da situação.
Desse momento surgiu um tema que se prende com a questão de um estatuto de excepção para o Teatro da Cornucópia, capaz talvez, de viabilizar a sua continuidade. Surgiu o equívoco de que poderíamos mudar de opinião. O que levou o Senhor Ministro da Cultura, também presente, a admitir que o tivéssemos feito. E parece não se ter restabelecido a única versão correcta que existe, porque infelizmente a dúvida já não se põe: o Teatro da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou. Com a mudança do Governo, a situação não se alterou. Disse o Senhor Ministro que o assunto estava a ser acompanhado, estudado. Haverá por isso um próximo encontro com os representantes do Ministério da Cultura.
Não se tratará, portanto, agora de um estatuto de excepção, porque somos provavelmente excepção. A empresa dissolve-se nos próximos dias, dependendo apenas de procedimentos legais que terá de cumprir.
Às pessoas que elegemos para nos governarem e que se dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela cabeça mentir. Para com eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais relações. Assim foi, assim será.
Pelo Teatro da Cornucópia,
Luis Miguel Cintra e Cristina Reis


19 de Dezembro de 2016

18.12.16

a Cornucópia e o bem público





Não descobri o teatro na véspera da comoção. Não descobri o Teatro da Cornucópia na semana passada.
Não fui ao velório de ontem, desde logo porque os compromissos com amigos me merecem tanto respeito como as instituições. Mas fiquei descansado em não poder ir quando antecipei que a ocasião iria ser mais um palco para algo que Eduardo Paz Ferreira descreveu, noutro contexto, como alguém “extravasar os seus poderes constitucionais”.
Sou um admirador declarado de Luis Miguel Cintra, sem nunca ter regateado críticas, críticas estéticas ao seu trabalho ou críticas cidadãs ao seu posicionamento. Não preciso, portanto, de me armar em guardião da fortaleza (ninguém me credenciou para isso), tal como não preciso de me armar em consciência crítica de coisa nenhuma.
Já subi ao palco da Cornucópia, graças à generosidade da companhia, como amador (amante) de teatro. Não subi ontem ao palco da Cornucópia como predador, em exercício de doentia insistência na política como espectáculo.
É, pois, neste quadro que sinto dever dizer o que segue.
A Cornucópia é património nacional, não pode ser deitada fora. A Cornucópia é uma instituição, não pode ser descartada.
Mas, por muito que admiremos e amemos Luis Miguel Cintra (como é o meu caso), a Cornucópia não é Luis Miguel Cintra. Não haveria esta Cornucópia sem Luis Miguel Cintra? Não. Tal como não haveria esta Cornucópia sem Cristina Reis. E fiquemos por aqui de nomes. A instituição que tem de ser preservada, para lá de quem a fez ser o que é, é a companhia de teatro. É o que o Luis Miguel e a Cristina e os outros ensinaram aos mais novos. É o rasto que criaram e que se não pode deixar apagar. Todos um dia deixamos de fazer aquilo que andamos uma vida a fazer. Se a nossa obra morre de súbito, connosco, em algo falhamos. Há valores novos no universo da Cornucópia, como o próprio Luis Miguel tem dito publicamente. Então, é preciso garantir, não que o Luis Miguel viva eternamente, mas que os mais novos que lá andaram a aprender possam continuar, renovar, aprofundar o que a Cornucópia é. Só assim se pode tirar a prova dos nove de que a Cornucópia se tornou uma instituição. Neste caso, a prova dos nove será a prova dos novos.
Luis Miguel Cintra tem sido muito claro e muito honesto nas declarações que tem feito, ao explicar que, depois das provas que deu e nas condições em que está, não tem mais ânimo para se desgastar em burocracias. Compreendo. Não pode ser obrigado a isso. Aliás, ver um organismo oficial reagir citando os números dos apoios à companhia teatral, num salivar muito típico da burocracia quando pretende linchar algo ou alguém na praça pública ("vejam lá estes tipos que vivem à conta do nosso dinheiro e ainda se queixam"), é muito ilustrativo. Como alguém já escreveu, é incompreensível que uma companhia como a Cornucópia continue a ter que "demonstrar" o valor do seu trabalho cada vez que pede apoios. Mas nada disto se resolve com um estatuto de excepção.
Se há regulamentos, procedimentos, leis injustas – mudem-se, não para a Cornucópia, mas para todos. Quando Nuno Crato dizimou dezenas de centros de investigação no nosso país, justificava-se com a excelência: só ficavam os excelentes. Era uma irresponsabilidade, porque nenhuma instituição é excelente no meio do deserto. Nenhuma instituição é excelente sem estar num meio-ambiente diversificado. As leis, os regulamentos, os procedimentos – têm de respeitar e promover essa diversidade, não apostar na monocultura em que todos têm de ser iguais, de reproduzir o mesmo padrão, de falar para o mesmo público. Mas o conjunto tem de ter uma lógica, argumentável e escrutinável – coisa que não se pode substituir por excepções pressionadas por qualquer tipo de demagogia.
A Cornucópia fará um teatro elitista? Talvez. Mas há que ter algum cuidado com esse argumento. Temos, por exemplo, a televisão que temos, "porque estes são os programas que têm audiências". Aquilo que falta, poucos acham que falte - logo, não faz falta. Pela mesma lógica, há quem já tenha defendido que cursos como história ou filosofia não têm razão de existir. É pela mesma lógica que, agora, alguns dizem: essa companhia de teatro nunca procurou o grande público, portanto, que se dane. Verdade, verdadinha: o capitalismo mais primário ganhou (provisoriamente?) a batalha das mentalidades, convencendo tantos de que o valor de um bem cultural depende de quanto dele se pode vender com lucro. Por este andar, há muito por onde começar a dizimar (hoje liquidamos a Cornucópia, amanhã liquidamos a ópera, depois o ensino do latim e do grego clássico,…).
O Estado tem uma responsabilidade em não deixar morrer a Cornucópia? Tem. Tal como nós, os espectadores. Tal como a própria Cornucópia tem, também, a obrigação de não deixar morrer uma instituição que deve ser mais do que os seus génios criadores.
Algo que deixo dito constitui uma solução para o problema? Não. Mas pretende constituir um alerta para a natureza do problema, um alerta nascido na mente de alguém que não se conforma com o fim da Cornucópia, mas que, ao mesmo tempo, não vê isto como um caso particular, antes como uma questão atinente ao bem público. E que, como tal, não pode seguir apenas o caminho dos nossos sentimentos, mas deve seguir também os caminhos da nossa racionalidade partilhada.

18 de Dezembro de 2016

16.12.16

de luto pela Cornucópia.


(foto de Luís Santos)

A companhia Teatro da Cornucópia encerra as suas actividades. Uma notícia que magoa.

É amanhã..

Fico demasiado triste para investir mais palavras. Apenas repito um poema que dediquei ao Luis Miguel Cintra em 2014 (mais precisamente a 9 de Março de 2014, dia das últimas representações de “Ilusão”, no Teatro da Cornucópia.) E neste poema abraço também a Cristina Reis e todos os outros que lá conheci - e também os que não conheci e, mesmo assim, pertenceram àquela casa.



«o mundo é um brinquedo sem dono»



(para o Luis Miguel Cintra, com Lorca ao fundo)


não é o dono, Federico, que complica:
que as cheias devastem as habitações
enquanto corpos secos povoam as terras,
que os animais do campo escrevam os contos edificantes
esquecidos pelos bichos das repúblicas,
que deve isso ao dono ou à sua ausência?
quem viu, Federico, que a ferida estava no brinquedo,
no próprio brincar sem folguedo, foi o Luis Miguel,
com peças várias da tua herança,
esquecendo por momentos a teologia do dono,
arriscando mesmo um certo panteísmo
para mostrar a diversidade dos jeitos,
a pluralidade dos modos em que somos
brinquedos quebrados, sim,
mas tão-somente das mãos e juízos uns dos outros.

é terrível a vida simples:
o mundo é um brinquedo sem o conforto do dono,
mas contigo nós atravessámos a cidade como navios do deserto
transportando a água que calou por momentos os calvários dentro de nós.




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16 de Dezembro de 2016

7.12.16

PISA 2015 - ou Passos, Crato e a iliteracia




A divulgação recente dos resultados de estudos internacionais, designadamente o PISA 2015, sobre literacia em áreas como Leitura, Matemática e Ciências vem, mais uma vez, confirmar tendências verificadas nos últimos 20 anos: a melhoria consistente do desempenho dos alunos portugueses nas três áreas avaliadas. A matemática, leitura e a literacia científica, Portugal teve uma melhoria de desempenho que, em dois domínios, elevou mesmo os alunos portugueses acima da média da OCDE.

Como afirmou o Comissário europeu com a área da educação, Tibor Navracsics: “Portugal é o único país da UE que tem melhorado de forma continuada o seu desempenho em PISA desde 2000”. Destacando essa melhoria progressiva, os relatores internacionais escrevem: “Entre os países da OCDE, Portugal tem melhorado mais de sete pontos a cada três anos, em média.”

Os defensores de Nuno Crato, e o próprio, vieram tentar apropriar-se destes resultados. Ora, essa apropriação é abusiva. Quando o PSD vem, pela voz de alguns dos seus principais responsáveis, tentar passar a ideia de que estes resultados se devem ao governo anterior, estão a tentar uma desavergonhada mistificação.

Em primeiro lugar, estes resultados mostram que a demagogia que acusa o sistema português de facilitismo é apenas isso: demagogia.
O sistema educativo que Crato, Passos e Marco António chamam facilitista é o sistema que conseguiu, em competências de leitura, trazer Portugal, de 470 pontos no ano de 2000 para 498 pontos em 2015. É o sistema que conseguiu, em literacia científica, trazer Portugal, de 459 pontos no ano de 2000, para 501 pontos em 2015. E que, no mesmo período, conseguiu que os alunos portugueses, a Matemática, progredissem de 454 pontos no ano 2000 para 492 em 2015. Em literacia científica e matemática acima da média da OCDE.
O progresso contínuo dos alunos portugueses, ao longo de tantos anos, desmente a tese do facilitismo, uma tese ideológica montada por Nuno Crato para justificar as ruturas que operou em relação ao relativo consenso anterior em matéria educativa em Portugal.

Mas, há que dizê-lo claramente, os que pretendem apropriar-se destes resultados a crédito do governo de Passos e Crato, têm, esses sim, um problema de iliteracia – não são capazes de ler os relatórios à luz da verdadeira história do que andaram a fazer.
Crato pretende que foram os exames nacionais de 4º e 6º anos, e as novas metas curriculares, que alavancaram estes resultados. Mas, se virmos quem são os alunos portugueses abrangidos pelo PISA 2015, percebemos imediatamente que aquelas pérolas da governação de Crato não têm nada a ver com estes resultados. Os alunos abrangidos por estes testes não foram atingidos por aquelas medidas de Crato. Veremos nos próximos anos se as medidas de Crato não tiveram mesmo o efeito contrário, atrasando o progresso que o país estava a trilhar. (Cf. As tentações de Crato e da direita perante os resultados do PISA.)

De qualquer modo, é sempre o trabalho concreto nas escolas, o esforço de professores e alunos, que permite avançar. As políticas públicas podem ajudar ou desajudar. Em duas décadas, os alunos portugueses têm progredido continuamente, melhorando os resultados nos testes internacionais. Nuno Crato, Passos Coelho e Marco António Costa não progrediram o suficiente para compreender quão desajeitada é a sua tentativa de apropriação de uma obra que nada se deve às entorses educativas que, por motivos ideológicos, tentaram introduzir na educação em Portugal.



7 de Dezembro de 2016

2.12.16

O BE, a visita do Rei de Espanha ao Parlamento… e a democracia



Já devemos estar todos fartos deste assunto, mas ele tem ainda uma “variante” que deve ser escalpelizada – porque se resvala muito facilmente para ideias perigosas acerca do que é uma democracia representativa.

Obrigo-me a recapitular, para depois chegar ao meu ponto.

Desde o primeiro momento fui muito claro quanto à forma que o BE escolheu para abordar politicamente a ida do Rei Felipe VI à Assembleia da República. Escrevi no FB:
«A propósito do acolhimento do Rei de Espanha hoje na Assembleia da República e das civilizadas manifestações de distanciamento produzidas por alguns deputados... Sou republicano - mas os reis não são todos iguais e acho que vale a pena julgar o papel histórico de cada um em concreto. Acho que a actual dinastia da monarquia espanhola merece crédito, até pelo contributo que deu para a democracia espanhola. E não esqueçamos que foi legitimada democraticamente. Continuo a pensar que uma república é mais democrática do que uma monarquia? Continuo. Mas isso não me impede de respeitar um rei que, julgo, respeita a ordem constitucional do seu país, que é uma democracia.»
O BE tomou uma posição política, da qual discordei politicamente: nada mais normal em democracia. E mesmo entre parceiros políticos que não deixaram de ser diferentes.

Contudo, rapidamente, em certos meios, a conversa resvalou para a “teoria” de que a atitude do BE tinha sido “má educação”. Alguns até elogiavam a postura do PCP (levantar-se, mas não aplaudir) para insistir que o BE tinha sido “malcriado”. Sem prejuízo do reconhecimento de que a atitude do PCP foi mais subtil, ou mais diplomática, é inaceitável que a posição do BE seja tratada como uma questão de “educação”. Desde logo, há que rejeitar a hipocrisia de alguns deputados que passam a vida aos berros no parlamento, a agitar os braços e a bater na mobília, tentando sobrepor essas manifestações ao uso das palavras – e que, de repente, apontam o dedo a outros deputados acusando-os de falta de educação... por ficarem quedos e mudos. É preciso ter lata.

Mas, deixando esses “de lata” de lado, subsiste o ponto: reduzir a questão política a uma questão de educação? Não aceito. Foi uma posição política. Discordo dessa posição política. Mas foi uma posição política. Têm direito a terem essa posição. É legítimo que tenham essa posição. Eu discordo. Mas não reivindico para a minha discordância nenhum privilégio, nem nenhuma superioridade moral. A diferença política deve ser isso: diferença política. Faz parte da democracia. Tentar deslegitimar aqueles que tomam posições políticas dentro do quadro democrático, não ferindo nenhum valor fundamental - é atitude em que não alinho. Todos os deputados cumpriram a elegância institucional de se levantarem à entrada dos convidados e quando foram executados os hinos de ambos os países. Não conheço nenhuma regra parlamentar que convide os deputados a aplaudir uma intervenção, ou a levantarem-se no fim de uma intervenção. Aliás, os deputados à esquerda do PS também não aplaudiram o discurso do Presidente da Assembleia da República, que foi um excelente discurso, de um progressista crítico mas europeísta, com uma crítica da globalização desenfreada mas numa perspectiva que eu chamaria internacionalista. Politicamente, dei mais importância à falta de aplauso da esquerda da esquerda ao discurso de Ferro Rodrigues do que à falta de aplauso ao Rei de Espanha. Mas, isso, parece que não foi notado por nenhum dos escandalizados com a situação.

Entretanto, outro argumento surge (designadamente nas “redes sociais”) e corre, no essencial e descontadas as variantes, assim: os deputados representam-nos a todos, os portugueses queriam receber bem os Reis de Espanha, os deputados do Bloco deviam ter representado essa vontade dos portugueses e “feito boa figura” e, com a sua atitude, não respeitaram a vontade dos portugueses: receber bem o Chefe de Estado espanhol.

Ora, aqui, calma, porque entramos num perigoso pântano. E, aí, temos de ser claros.
Cada deputado não representa toda a gente. Cada deputado tem que representar a posição que entende corresponder ao encontro da sua opinião e da opinião dos que o elegeram. Ou, até, que corresponde à sua avaliação da situação, mesmo que tenha consciência de que os seus eleitores não partilhariam o seu ponto de vista – já que o deputado não é um mero porta-voz automático dos eleitores, tem uma responsabilidade própria. É a diversidade da representação, daí resultante, que faz a democraticidade do parlamento. Alguém pretender que todos os deputados deviam fazer assim ou assado, porque todos me/nos representam, é pretender que algum particular (algum grupo, alguma instância) pode determinar qual é “a posição de todos” para lá da diversidade do todo. É que, em democracia, o todo é inapelavelmente diverso. Democracia é diversidade. E o parlamento representa essa diversidade. Não há nenhum ponto de vista exterior a essa diversidade que possa determinar o que é comum e todos tenham de respeitar. Exigir que este ou aquele deputado, este ou aquele grupo parlamentar, faça A ou B, porque essa seria “a vontade de todos” – é, tenham disso consciência ou não, um raciocínio que está fora da lógica democrática.

Alguns dizem que este assunto é da espuma dos dias. Não é. É nestes interstícios da vida democrática que entram os perigos, quando, em vez de assumir as divergências políticas, tratando-as como tal, tratamos de excomungar a diferença com argumentos que tentam domesticar a representação em nome de qualquer “unicidade”.


2 de Dezembro de 2016

26.11.16

Na morte de Fidel Castro



Fidel Castro acabou mal. Não por morrer, isso calha a todos, mas por não ter escapado ao destino de muitas revoluções no século XX (para não ir mais longe): acabaram em regimes opressores.
A liberdade e o respeito pelos direitos humanos são inegociáveis. Não há conciliação possível que um socialista democrático possa fazer sem respeitar essa fronteira: para nós, qualquer ditadura é horrenda, uma ditadura que se diga de esquerda é ainda mais dolorosa e mais nos envergonha. Não há socialismo sem liberdade, embora possa haver liberdade sem socialismo.
Dito isto, é insuportável a hipocrisia de alguns.
É insuportável a hipocrisia dos que esquecem o que era o regime que Castro derrubou. A hipocrisia dos que esquecem o que era a América que tanto pugnava pela liberdade em Cuba, mas ignorava direitos humanos básicos, por exemplo dos negros. Ou a hipocrisia dos que esquecem as conquistas sociais que Cuba realizou com a revolução. Conquistas essas que muitos países "livres" não garantiam e não garantem.
Algum destes factores desculpa a falta de democracia? Não, não desculpa. A perseguição aos opositores pacíficos, ainda por cima feita por meios violentos, é inaceitável. Mas, note-se, há quem não tenha autoridade nenhuma para se fazer defensor da liberdade dos cubanos: os que desculparam o facínora Pinochet, os que tinham palavras brandas para o apartheid sul-africano... ou mesmo os que desviam os olhos do bem actual proto-fascismo húngaro ou polaco.
Bem me lembro, quando a Polónia ainda era uma ditadura "comunista", e quando se organizavam sessões de solidariedade com o Solidariedade (sindicatos polacos com um programa político pró-democratização), que muitos aqui por Lisboa achavam isso um tanto arriscado e se encolhiam, deixando a solidariedade a pequenos partidos esquerdistas ou à Juventude Socialista, de que eu era dirigente nessa altura, tendo precisamente posto empenho nessas movimentações. Outros, mesmo de direita ou muito democratas, encolhiam-se porque não era conveniente. Não estava na moda ser um democrata radical. Mas, se calhar, alguns desses estão agora a bradar contra Fidel Castro depois de morto.
Infelizmente, os mortos relevantes dão muita ocasião a que os pequenos vermes levantem a cabeça e se façam muito tesos em matérias em que nunca tiveram sequer coluna vertebral.

26 de Novembro de 2016

24.11.16

As 3 bancarrotas socialistas



Há pouco tempo andava por aí um material de propaganda de um sector de uma juventude partidária de direita que propagandeava “as 3 bancarrotas socialistas” (1977, 1983, 2011), apontando para os momentos em que o FMI esteve em Portugal. Nesse caso, poderíamos pensar, era ignorância a alimentar um enviesamento político. Hoje, uma deputada do PSD, em pleno debate do Orçamento de Estado para 2017 em plenário da Assembleia da República, veio com a mesma conversa das 3 bancarrotas. Aqui, já não há desculpa possível. Porque, a este nível, não podemos tolerar que a desonestidade se confunda com a ignorância, deixemos sobre o assunto este breve apontamento.

De facto, o PS liderava o governo do nosso país em 1977. Portugal, devido ao difícil contexto internacional e à turbulência da revolução (sim, os fascistas não nos concederam a democracia, foi preciso derrubar a ditadura e fazer uma revolução, onde, naturalmente, nem tudo foi feito a régua e esquadro), teve de pedir a intervenção do FMI. Quem o fez foi o 1º governo constitucional, liderado por Mário Soares, onde era também ministro o Prof. Mota Pinto, fundador do PSD e seu futuro presidente. Ah, e também fazia parte desse governo o inefável crítico de tudo e mais alguma coisa, de seu nome Medina Carreira… O acordo com o FMI foi assinado já durante a vigência do 2º governo constitucional, igualmente liderado pelo PS, mas que contava também com o CDS na sua composição. Portanto, quanto à primeira “bancarrota socialista”, estamos conversados.

A segunda “bancarrota socialista” é de 1983. Foi o governo do chamado “bloco central” (uma coligação formal do PS e do PSD) que fez o novo acordo com o FMI. A realidade económica que a isso obrigou foi criada durante o governo anterior, o segundo governo da chamada “Aliança Democrática”, cujas principais forças eram o PSD e o CDS, com Pinto Balsemão como primeiro-ministro. Ministros das finanças da AD? Cavaco Silva, primeiro; João Salgueiro, depois. Esses governos da AD deixaram o défice da balança comercial em 10% do PIB, o desemprego acima dos 11% e a dívida externa em estado de alerta. Portanto, quanto à segunda “bancarrota socialista”, também estamos conversados.

Quanto ao processo de 2011, seria necessário mais espaço para analisar aqui a questão. Poderemos fazê-lo noutra oportunidade. Mas, para princípio de conversa, basta lembrar as palavras de António Lobo Xavier a 16 de Maio de 2013, no programa televisivo Quadratura do Círculo. Nessa ocasião, o histórico dirigente do CDS afirmou que foram o PSD e o CDS que forçaram a intervenção da troika em Portugal e que nem Merkel queria que o resgate tivesse acontecido assim. Segundo Lobo Xavier, PSD e CDS quiseram a entrada da troika em Portugal por razões de política interna, para pressionar o governo da altura (de José Sócrates). Lobo Xavier lembrou ainda que a ajuda europeia poderia ter ocorrido como em Espanha, sem Memorando e sem troika. (Como, aliás, também se fez em Itália.) Mas Portugal teve todo este aparato de “resgate” porque a oposição de então (PSD e CDS) assim o quis. Perguntado “quem quis?”, Lobo Xavier respondeu: “foi o aprendiz de feiticeiro”. E depois explicou quem fez o papel de aprendiz de feiticeiro: Pedro Passos Coelho.

Portanto, quanto às 3 bancarrotas socialistas, estamos conversados: essa teoria ilustra bem como a desonestidade política gosta de andar à boleia da ignorância.


24 de Novembro de 2016

17.11.16

Que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas?




A cumprir-se um ano de governo das esquerdas, assinalo dois pontos. Um sobre o passado, outro sobre o futuro.

Sobre o caminho percorrido, a normalização da democracia tornou-se parte das nossas vidas. Contra os que não acreditavam ser possível outra política social e económica, que viam direitos sociais e políticos como opostos a desenvolvimento do país, contra esses afirmou-se a possibilidade de “virar a página da austeridade” – que não é renunciar à frugalidade, mas é distribuir o esforço de forma socialmente mais justa e economicamente mais racional. Contra os que defendiam que só podíamos mudar de política em ruptura com a União Europeia (fosse para pugnar pela submissão, fosse para pugnar pela ruptura), este governo demonstrou que podemos mudar de política sem sair da UE e sem sair do Euro, mantendo uma relação política de defesa digna, urbana e firme dos interesses nacionais no quadro do interesse comum europeu. As vitórias sucessivas na frente europeia demonstram que o PS não é o Syriza: nem o primeiro Syriza, o do confronto proclamatório; nem o segundo Syriza, o de uma rendição dolorosa à realidade dos custos do isolamento político na cena europeia. Aos que julgavam impossível mudar de política sem romper com a União Europeia, respondemos com a normalidade democrática: o voto popular serve para escolher; das escolhas podem resultar mudanças de política, de maioria e de governantes; ninguém nos pode correr da Europa para fora por defendermos as escolhas dos portugueses, atendendo aos compromissos nacionais. Hoje, já nem se sublinha muito a importância da demonstração desta possibilidade – prova máxima de que “normalizámos” a democracia em Portugal, contra aqueles que a entendiam limitada (ou, até, tutelada).

Agora, adquirida a normalidade democrática, a Esquerda tem de ampliar horizontes. No princípio, todos se concentraram em provar que também nós somos capazes de dar uma maioria parlamentar e uma governação ao país. O PS, o PCP, o BE e o PEV responderam com determinação e realismo a esse desafio. Hoje, o debate começa a mudar e tem de mudar no sentido da ampliação estratégica. Não se trata tanto da forma (rever os acordos ou não rever os acordos à esquerda, alargar o governo aos partidos da maioria parlamentar ou continuar na fórmula de governo do PS), mas da substância política. Essa mudança de formulação estratégica coloco-a assim: que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas? Colocar a questão assim não depende da factualidade de esta maioria fazer ou não duas legislaturas. Colocar a questão assim é visar mais longe, sermos mais exigentes, tirarmos mais das nossas próprias forças ao serviço do país. Respondermos mais ao Plano Nacional de Reformas do que a cada Orçamento de Estado. Pensarmos em termos de Agenda da Década. Pensemos focados nas transformações estruturais: por exemplo, como reduzir duradouramente as desigualdades excessivas? como "virar a página" da precariedade laboral?

Este desafio para o futuro – que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas – terá de passar a ser “a questão” central dos socialistas na sua acção. E, creio eu, é de esperar que o PCP, o PEV e o BE também pensem assim. Reconquistada a normalidade democrática (em tão pouco tempo, tão profundamente que alguns já nem notam o facto), agora é preciso pensar cada vez mais estrategicamente. Pensar a partir do futuro das pessoas deste país.

17 de Novembro de 2016

16.11.16

Lucas, 6:41 (ou, a Direita na Educação)


A minha intervenção parlamentar, ontem, na audição do Ministro da Educação no âmbito do debate do Orçamento de Estado para 2017.



16 de Novembro de 2016

15.11.16

Emprego científico e académico: a questão da precariedade




Pretendo, neste texto, tentar clarificar alguns aspectos do estado actual da questão da precariedade do emprego científico e académico no nosso país. Começo por um enquadramento necessário e depois vou mais directamente à questão.


Os "Contratos de Legislatura" com as Universidades e Politécnicos


O Contrato entre o Governo e as Universidades Públicas Portuguesas, bem como o Contrato com os Politécnicos Públicos, celebrados em Julho passado, estabeleceram um quadro de estabilidade e previsibilidade no relacionamento com as instituições do ensino superior durante o mandato do actual governo, com efeitos positivos da maior relevância para o desenvolvimento do sistema de ensino superior e de ciência. Desde logo, garantindo a previsibilidade do financiamento. Mas, muito para além disso, garantindo a estabilidade em vectores-chave para o desenvolvimento estratégico das Universidades e Politécnicos.
Por exemplo, assumindo o compromisso de não voltar atrás na disposição inserta na Lei do orçamento para 2016 que permite às instituições voltar a contratar docentes, trabalhadores não docentes e investigadores. E, mais do que isso, criar um quadro legal e de apoios que permita às universidades contratar até 2019 pelo menos 2000 docentes e investigadores, e que permita aos politécnicos, no mesmo horizonte temporal, contratar pelo menos 1000 docentes e investigadores, assim estimulando fortemente o emprego científico e académico, rejuvenescer as instituições e, não menos importante, reduzir a precariedade dos trabalhadores científicos.

Importa saber a que ritmo está a avançar a implementação desta importante linha de trabalho. É claro que se trata de um processo que leva o seu tempo. De todo modo, o Conselho dos Reitores das Universidades Portuguesas informou, na Comissão Parlamentar de Educação e Ciência, que estima que estejam já em preparação uns 520 concursos, dos quais cerca de 200 para novos lugares de professores auxiliares e os restantes para posições mais avançadas na carreira, que poderiam, designadamente, atrair investigadores. Os representantes do CRUP sublinharam que esta significativa movimentação só se tornou possível, precisamente, pela margem de manobra estratégica, pela previsibilidade que os antes mencionados contratos devolveram às instituições.
Importa sublinhar, não apenas aquilo a que o governo se obriga no quadro deste Compromisso com o Conhecimento e a Ciência, mas também os objectivos que as instituições assumem neste quadro, dos quais destaco:
- a redução do abandono e insucesso escolar, numa batalha pela equidade que tem de ser travada, visando uma situação em que ninguém deixe o ensino superior, ou, mais difícil ainda, que ninguém deixe de ir para o ensino superior, por carência económica;
- alargar a articulação entre o ensino e a investigação;
- consolidar o emprego científico, deixando de recorrer a bolseiros para funções que são de trabalhadores científicos;
- estabelecer parcerias com o tecido produtivo, a par com a consolidação da ancoragem regional das instituições.

Estes Contratos, entre o Governo, por um lado, e as Universidades e Politécnicos, por outro, representam uma aposta na consolidação institucional, na cooperação, na previsibilidade, no sentido estratégico. Isso nota-se, não só pelos aspectos já referidos, mas também pela inclusão, no escopo destes contratos, dos objectivos da Política Nacional de Ciência Aberta e dos programas de responsabilidade cultural e social, bem como pelo Mecanismo de Entreajuda e Coesão criado para acorrer a eventuais situações de desequilíbrio financeiro em alguma instituição.
Estes contratos, que traduzem concretamente o Compromisso com o Conhecimento e a Ciência, revelam uma visão estratégica partilhada com as instituições que contrasta fortemente com o período de desestabilização institucional que vivemos anteriormente.


Emprego Científico: ataque estratégico à precariedade


Ora, queremos relacionar o que ficou dito acima com a questão do emprego científico e académico e o combate à precariedade.

Este governo optou, e bem, por atacar o abuso da figura do bolseiro de pós-doutoramento. As bolsas de pós-doutoramento continuam a existir e a ser atribuídas, mas para aquilo que deve servir uma bolsa: para prosseguir uma formação avançada. Em princípio, com uma duração limitada a 3 anos. Num plano diferente, o trabalhador científico doutorado deve ter um contrato, não uma bolsa. Esta orientação insere-se na linha geral de combate ao trabalho precário, que faz todo o sentido também para os trabalhadores científicos.

Trata-se, há que dizê-lo claramente, de distinguir as situações de formação e de emprego. De acordo com este princípio muito importante, foi dado esse passo essencial de tornar os contratos de trabalho o vínculo normal para o trabalho científico pós-doutoral. Repito: deixando de abusar da figura do bolseiro para ocupar lugares de trabalhador científico.

O DL 57/2016, de 29 de Agosto, constitui uma das vias de ataque a este problema, ao aprovar um regime aplicável à contratação a termo resolutivo de doutorados para investigação científica, desenvolvimento tecnológico, e gestão e comunicação de ciência. Este regime prevê contratos com o horizonte de 6 anos. Mas, sublinhe-se, contratos, com todos os direitos associados a um contrato, já não bolsas, que, por exemplo, careciam de uma protecção social adequada.
Cabe notar que o regime transitório, previsto no artigo 23 do mencionado DL, prevê desde logo a abertura de concursos para contratação de doutorados que estejam há mais de 3 anos a desempenhar funções em instituições públicas ou a ser financiados por fundos públicos. Mas, muito para além deste mecanismo transitório, o que está em causa, repito, é reconhecer os trabalhadores científicos como trabalhadores científicos, deixando de os tratar como bolseiros.
E, cabe ainda referir, contratando-os com base, não em métricas muitas vezes desadequadas ao seu campo de trabalho, mas com base no conteúdo das suas publicações científicas e na sua apropriação académica, científica, económica e social.

Ora, a verdade é que tem sido produzida alguma confusão em torno desta questão. Quer dizer, do papel destes contratos.

Tem sido dito: são contratos até 6 anos, não é uma solução de carreira. Pois não. É preciso compreender os vários segmentos do problema - e não misturar tudo.
O desenvolvimento das carreiras não se faz por estes contratos. Estes contratos são um progresso – deixam de ser bolseiros, passam a ter contratos – mas o desenvolvimento das carreiras faz-se pelos lugares a abrir pelas instituições.
E, como já foi dito antes, estamos a falar de um compromisso, até 2019, de pelo menos mais 3000 docentes e investigadores, entre Universidades e Politécnicos. Aí é que entra o segmento de desenvolvimento das carreiras. Claro que, como já dissemos anteriormente, este processo está ainda numa fase de arranque e aceleração – os Contratos foram assinados em Julho passado e Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Agora, o que não se pode, é confundir as coisas. Deixar de abusar da figura do bolseiro e dar contratos a termo resolutivo, com todos os direitos inerentes a um contrato, a quem faz trabalho científico, é um passo importante. Que, por sua vez, abre caminho para o outro passo, que é a entrada numa carreira, por via do grande número de concursos que as instituições se comprometeram a abrir nesse movimento de contrato de horizonte estratégico com o governo.


(Este texto é uma reescrita de parte de uma intervenção parlamentar que produzi no dia 11/11/2016, na audição do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no quadro do debate do Orçamento de Estado para 2017.)


15 de Novembro de 2016

9.11.16

Trump e nós: o fim da globalização feliz




Vi pouca televisão entre o jantar de ontem e o telejornal das sete da manhã de hoje, quando soube da vitória de Trump nas presidenciais americanas. Mas ouvi ontem à noite Francisco Louçã produzir a frase mais certeira sobre estes acontecimentos nos EUA, antes do desenlace. Dizia ele que, quaisquer que fossem os resultados das eleições, isto era o fim da globalização feliz – e esse fim acontecia precisamente nos Estados Unidos.

Tem toda a razão. Porque esta luta política, como outras que se andam a travar, é o preço da abordagem à globalização dirigida pelos “de cima” contra “os de baixo”. Quer dizer, uma abordagem à globalização onde os que ganham com o desmantelamento das barreiras se unem à escala global (internacionalismo dos beneficiados) para uma liberalização desenfreada e para uma maciça destruição de direitos “justificada” pelas vantagens prometidas a longo prazo de uma abertura o mais ampla possível à concorrência. O internacionalismo dos beneficiados empurra os perdedores para os guetos nacionais, que assim se tornam “naturalmente” nacionalistas. Como tive oportunidade de escrever há semanas, a propósito da “polémica Mariana Mortágua” na Conferência Socialista em Coimbra, os sociais-democratas tivemos também responsabilidade nesse processo, designadamente quando fomos demasiado ingénuos face à liberalização dos movimentos de capitais, que serviu também para enfraquecer a política face aos novos poderes fácticos do dinheiro.

“O fim da globalização feliz”: tem toda a razão, porque não é o fim da globalização, apenas o fim da ideia de que a globalização é naturalmente boa e boa para todos. Os Descobrimentos portugueses também produziram ganhadores e perdedores, mas o seu efeito não deixou de se impor. E os que simplesmente tentaram travá-la, em modo de mera resistência, não tiveram grande sucesso. A globalização é uma política, não é um fenómeno natural, não é inevitável como os terremotos. Mas não é facilmente controlável, porque criou as suas próprias instituições (os famosos “mercados”) e se agarrou inteligentemente aos meios materiais apropriados à sua característica global (a rede electrónica mundial que corre mais depressa e é muito mais versátil do que as caravelas portuguesas dos Descobrimentos). Só uma resistência coordenada entre muitos, que se ponham de acordo em construir alternativas ao pior da globalização, pode conseguir alguma coisa. É por isso que a União Europeia é indispensável para fazer face à globalização injusta e garantir na nossa região a massa crítica suficiente para mostrar a viabilidade de outro tipo de relações internacionais. É por isso que a União Europeia tem de mudar, para fazer o que lhe cumpre em garantir a esta região do mundo que não abandonamos os direitos sociais e cívicos em nome das promessas incumpridas da globalização. A União Europeia tem de construir uma Europa Social e só desse modo pode fazer sentido.

Esse fim da globalização feliz seria um facto qualquer que fosse o resultado das eleições: tem toda a razão. Se Trump perdesse, por muito ou por pouco, isso não apagava a realidade de um povo farto do sistema. Tão farto que pode suportar os excessos de um candidato por ele ser, apesar de tudo, o único que, com a violência que o assunto requer, aponta o dedo aos podres da casta dos instalados (que é um fenómeno diferente de uma elite democrática). A distinção esquerda/direita, que continua a fazer todo o sentido, está a ser atropelada pela distinção dentro/fora do sistema. E a distinção dentro/fora do sistema coincide cada vez mais com a distinção globalismo/nacionalismo. Nesse cruzamento, a esquerda acomodada ao sistema tem culpas, porque os instalados de esquerda não são menos cúmplices do que os instalados de direita (seja essa cumplicidade consciente ou inconsciente). Caracterizo o populismo como uma forma de fazer política onde as decisões complexas são apresentadas como decisões simples, desse modo levando as pessoas ao engano quanto à possibilidade de sair de uma determinada encruzilhada perigosa sem riscos. Condeno sem hesitações esse populismo. Mas, estou certo, temos de ser mais “populares” em raciocinarmos e em agirmos mais próximo da vida concreta das pessoas, abandonando desculpas demasiado sofisticadas para pedirmos sempre sacrifícios presentes em nome de futuros brilhantes demasiado distantes e voláteis.

Essa globalização feliz acaba precisamente nos EUA, o país idealizado como o principal ganhador dessa liberalização desenfreada e irrestrita. Tem toda a razão. É essa idealização que marca o carácter simbólico desta vitória de Trump. Mas não sejamos injustos para os americanos. Temos na Europa, e mesmo na União Europeia, governos protofascistas, que põem em causa o Estado de Direito, como a Hungria ou a Polónia. E vamos lá ver que governo teremos em França daqui a pouco. Não nos desculpemos com os americanos, pois isso seria apenas prolongar a nossa cegueira.

Talvez Trump venha a ser menos mau do que ele próprio prometeu. Mas isso serão acidentes da política quotidiana. O essencial é que a sua vitória, com o discurso que fez, mostrou que andamos demasiado distraídos. E que tardamos em perceber que cavámos, não só a direita mas também a esquerda, um insuportável fosso entre as pessoas concretas e as instituições democráticas.

O que fazer? Começando na Europa, construir uma nova política que junte a social-democracia e as outras esquerdas (o que alguns chamam esquerda radical) para trazer para o centro da democracia “os de baixo”, os que tardam em sentir na sua vida concreta os benefícios da democracia. Tal como recusámos o “socialismo de miséria” (quando não aceitámos que, em nome do socialismo ou do comunismo, se fizesse a igualdade tornando todos semelhantemente pobres), recusemos também a “democracia de miséria”: uma democracia onde os deserdados podem votar mas permanecem afastados da vida que uma sociedade decente lhes devia dar.



9 de Novembro de 2017

3.11.16

União Europeia e Europa Social.



A Confederação Europeia de Sindicatos adoptou, no final de Outubro, uma posição sobre o trabalho que há a fazer na União Europeia: “Plataforma da CES sobre o Futuro da Europa”.
A dita Plataforma assume a defesa da necessidade de mudanças profundas no funcionamento e nas políticas da União Europeia: é preciso apostar na criação de emprego e no investimento (o Plano Juncker tem de ser dirigido para os países e os sectores que mais precisam, mobilizando mais recursos); o Pacto de Estabilidade e Crescimento deve ser modificado, para que os investimentos decisivos (em infraestruturas, na economia verde, na inovação e na investigação, na educação e na formação, nos serviços públicos) não contem para as metas do défice e da dívida; o mandato do Banco Central Europeu tem de ser modificado, para que inclua o objectivo do pleno emprego, e, a par do Eurogrupo dos Ministros das Finanças, deve ser criado um Eurogrupo dos Ministros do Trabalho; tem de haver coordenação fiscal entre os Estados-Membros, para evitar a fuga ao fisco e para garantir uma fiscalidade equitativa para pessoas e empresas; deve ser criado um Semestre Europeu Social, para dar a devida atenção aos Direitos Sociais, deixando o foco exclusivo no plano financeiro e adoptando recomendações, aferição competitiva (benchmarking), legislação e financiamento também para os direitos sociais.
A Plataforma da Confederação Europeia de Sindicatos, a que pertencem as portuguesas UGT e CGTP, sublinha a necessidade de acção ao nível europeu em vários domínios: mudanças climáticas, fornecimento sustentável de energia, economia digital, automação, processos de reestruturação desencadeados pela globalização. E não esquece a necessidade de reforçar a liberdade de circulação de pessoas, melhorar a portabilidade dos direitos à protecção social dos que passam as fronteiras, de uma mais justa agenda europeia para a emigração e uma política de asilo mais humana. Porque nada aí se pode fazer com efectividade apenas ao nível nacional.
Os sindicatos europeus, pronunciando-se sobre o futuro da Europa, não esquecem – e ainda bem – a necessidade de restaurar a participação dos parceiros sociais (designadamente os sindicatos) na vida social, recuperando a negociação colectiva, porque por aí se distinguia positivamente o Modelo Social Europeu nos seus melhores tempos. E exigem melhorias no funcionamento democrático da União Europeia.
Todos, à esquerda, se reveem globalmente nesta abordagem, independentemente de uma ou outra divergência. A União Europeia não irá a lado nenhum se não for uma Europa Social. Mas essa não é a única faceta a destacar neste pronunciamento dos sindicatos europeus. Sublinho a aposta da Confederação Europeia de Sindicatos na União Europeia, sem ceder a tentações nacionalistas. Afirmam claramente: “Juntos somos mais fortes – económica, social e democraticamente”. E não deixam de afirmar que “uma União Europeia e um mercado único baseados na cooperação, solidariedade e justiça social” são uma necessidade para que sejamos capazes de “competir no mundo com um modelo social e economicamente sustentável”.
Aí é que está o ponto: temos de mudar a Europa, mas não destruíndo-a. Temos de mudar a Europa para ela cumprir as suas promessas. O que só pode cumprir sendo uma Europa Social.



3 de Novembro de 2016

27.10.16

financiamento dos partidos.



Temos de falar disto, porque o debate público sobre o financiamento dos partidos evidencia quão persistente é entre nós o pensamento salazarista.

O financiamento público dos partidos é o único caminho para livrar essas instituições das malhas do financiamento privado. Tal como foi uma reivindicação histórica da esquerda que os deputados fossem pagos pelo Estado, para evitar que só os ricos pudessem ser eleitos, também deve haver meios para que os partidos não fiquem dependentes da boa vontade de quem tem dinheiro.

Coisa diferente é o custo das campanhas eleitorais: deve baixar. Não só para poupar dinheiro público, mas também para fazer mais política de conteúdo e menos política de espectáculo.

Já agora: por muitas responsabilidades que tenham os partidos nas coisas que não correram bem, cabe sublinhar que não há nenhuma experiência histórica de democracia sem partidos. Os partidos prestam um serviço público. Como tal, deve ser sempre melhorado esse serviço e melhorados esses partidos. Mas não se percebe que aqueles que rejeitam (e bem) que o Estado pague escolas privadas em concorrência com a escola pública queiram, ao mesmo tempo, que os partidos fiquem dependentes do financiamento privado.

27 de Outubro de 2016

26.10.16

Educação Física e Filosofia.



Educação Física e Filosofia. Duas questões mais parecidas do que possa parecer. Leiam com atenção este texto da Bárbara Wong: Oh, não! A Educação Física conta para a média… Acaba assim - e cito:

Agora, o Governo decidiu e bem que a nota de Educação Física volta a contar para a média final do secundário. Bem, porque nem a disciplina, nem os seus professores são de segunda. Aliás, a disciplina é de primeiríssima e deveria ser cada vez mais importante porque contribui para que tenhamos filhos com mais saúde, logo, a longo prazo e se se mantiverem os hábitos adquiridos nestas aulas, hão-de ir ao ginásio por sua iniciativa, combinar uns jogos de basquete ou de futebol com os amigos, não terão tantas doenças, envelhecerão mais saudáveis, etc, etc.

Mens sana in corpore sano. E por falar em mens sana, para quando a Filosofia até ao final do secundário em todos os cursos? Sim, porque esta também não é de segunda e contribui para termos meninos menos acríticos e com mais valores. Para uma sociedade melhor. Fica a sugestão.

PS: Eu nunca soube dar um pino, fazia mal a roda, tinha medo do salto sobre o cavalo e, no meu tempo, não se aprendia a dançar, uma pena.

Duas notas, de momento só sobre a Educação Física.
Primeira, claro que "Educação Física" não é "Desporto Escolar": não é para "premiar campeões", não é para dar má nota a quem não consiga um triplo salto mais longo do que a Patrícia Mamona ou não marque mais golos do que CR7. É para educar a nossa relação com o corpo, a coordenação, os bons hábitos dessa base material do ser que não vale menos do que a mente. E quem pergunta "mas os que têm um problema físico vão deixar de entrar em medicina por causa da educação física?" - esses lembrem-se de que não se trata de premiar o desempenho desportivo, mas o empenho na cultura física necessária à formação integral do ser humano. E isso precisam todos, qualquer que seja o físico que tenham. Sendo certo que é preciso repensar as modalidades e as práticas de avaliação da Educação Física, mas...
Segunda nota: se não contar para a avaliação, a Educação Física será "posta à sombra" e desvalorizada. Temos de remar fortemente contra o tal "afunilamento curricular" que pretendia que só interessava o Português e a Matemática.

E da Filosofia falamos outro dia. Mente sã em corpo são!

26 de Outubro de 2016


*** ADENDA***

 
Acrescento esta nota depois de ler algumas das reacções a este texto.

A Educação Física não interessa para alunos que vão para o Ensino Superior fora de áreas de Desporto?! Mas, então, a coordenação sócio-motora, mobilidade e estabilidade corporal não serão necessárias em qualquer profissão - ou melhor dito, em qualquer vida saudável?

A obesidade já deixou de ser um problema? Ou estará mesmo a precisar cada vez mais de ser combatida nos seus fundamentos, que estão ao nível da falta de educação física, de educação para o equilíbrio alimentar e para estilos de vida saudáveis? Ou já se esqueceram dos discursos que fazem acerca dos excessos da vida sedentária? Serão esses problemas só daqueles que vão para cursos de Desporto?

Era bom que ninguém, traumatizado/a com más recordações da "ginástica" de há 40 anos, deixasse de pensar em que mundo vive e o que pode significar "educação" nos dias de hoje.



23.10.16

O beco do PSOE.



Olhando para a situação do PSOE face ao país, ocorre-me o seguinte. Faltou a Sánchez um elemento fundamental de compreensão dos desafios que enfrentava, o que faz uma grande diferença face ao que ocorreu em Portugal.
António Costa, em Portugal, disse claramente desde a noite eleitoral que não inviabilizava o governo da direita se não tivesse uma alternativa. Sánchez, pelo contrário, desligou as duas variáveis fundamentais da equação, ao afirmar que não deixava passar Rajoy sem ter garantida uma alternativa. Desse modo, Sánchez fez com que fosse o PSOE a pagar a grande factura do impasse, aparecendo como responsável por não haver nem governo à esquerda nem governo à direita - quando, na verdade, está longe de ser o único responsável. Mas ilibou o Podemos das suas responsabilidades, ao ser pouco prudente e ao não ter sido claro nos seus limites.
Sánchez também falhou a compreensão do tempo: note-se que o PS só embarcou na moção de rejeição do programa de governo de Passos Coelho II depois de ter assinados os acordos das esquerdas, o que estabeleceu um limite temporal claro para a assinatura desses acordos.
Agindo com pouco esclarecimento, Sánchez acabou por colocar o PSOE num beco onde a saída que vai impôr-se como recurso (deixar passar Rajoy) é um enorme risco - apesar de ser o que alguns sempre quiseram. Infelizmente, apesar do processo português ter sido anterior ao processo espanhol, Sánchez não quis ou não soube compreender o que se passou por cá - talvez por ter passado ao lado da complexidade do que por cá se fazia. É uma pena, porque teria sido importante ter um governo de esquerda em Espanha.

23 de Outubro de 2016

19.10.16

Desigualdades Socioeconómicas e Resultados Escolares



(O texto que se segue foi produzido pelo Ministério da Educação, nesta data, a propósito do estudo “Desigualdades Sócio-económicas e Resultados Escolares II”. Parece-me de interesse relevante para compreender alguns aspectos da realidade da educação em Portugal - essa é a razão para o colocar aqui.)



A Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEEC) acaba de publicar o estudo “Desigualdades Socioeconómicas e Resultados Escolares II”, que foi jáapresentado em reunião do Conselho das Escolas. O documento surge na sequência dapublicação, em fevereiro último, da primeira parte deste trabalho (relativa aos alunosdo 3.º ciclo).

Neste estudo são relacionados os resultados escolares dos alunos com as qualificações académicas das suas mães e com o nível socioeconómico dos agregados familiares,apurado através do escalão da Ação Social Escolar, desta vez utilizando os dadosrelativos aos alunos do 2.º ciclo do ensino público.

Na generalidade, as conclusões relativas aos alunos de ambos os ciclos são semelhantes, sendo de destacar:

  • No total nacional, o nível socioeconómico dos agregados familiares é um preditor do sucesso escolar, na medida em que os alunos oriundos de famílias de baixos rendimentos apresentam taxas de sucesso mais baixas;
  • No total nacional, as habilitações académicas das mães são um preditor do sucesso escolar, na medida em que os alunos que têm mães com menores qualificações apresentam taxas de sucesso mais baixas;
  • Persiste, ainda assim, uma variação regional e local nos resultados apresentados, sendo detetáveis assimetrias entre distritos e conjuntos de escolas, evidenciando que, para os mesmos níveis de rendimentos dos agregados e de qualificações das mães, é possível encontrar taxas de sucesso mais elevadas em alguns distritos e conjuntos de escolas;
  • Esta observação mais uma vez evidencia que há outros fatores que influenciam o sucesso escolar dos alunos, fatores esses que interessa explorar, e que contrariam a relação causa/efeito entre o contexto socioeconómico e o sucesso escolar dos alunos, genericamente comprovado.

Sabendo, como este estudo também revela, que o sucesso escolar é condicionado por fatores externos, o papel da Escola é crucial. Assim, a colaboração e responsabilidade da comunidade, a nível local e regional, são essenciais à construção do sucesso escolar e ao compromisso com o ensino e a valorização da aprendizagem. De facto, neste âmbito, importa sublinhar uma das afirmações constantes da nota introdutória do estudo agora apresentado:

“as estatísticas apresentadas no estudo sugerem também que o nível socioeconómico não equivale a destino, ou seja, não determina de forma inapelável o desempenho escolar dos alunos. […]. Existem portanto outros
fatores importantes em jogo, além do nível socioeconómico, fatores que importa investigar localmente e de forma mais aprofundada” (p. 3).


Nesse sentido, os resultados obrigam a que se continue a centrar a ação naquela que constitui uma das funções primordiais da escola pública: o nivelamento de oportunidades entre crianças oriundas de diversos meios socioeconómicos e a promoção da mobilidade social.

A intervenção tem, pois, de continuar a ser o resultado de uma combinação coerente entre políticas educativas, de formação e de âmbito social alargado. Só assim é possível, como tem sido feito, promover o apoio aos primeiros sinais de dificuldade, numa lógica de proatividade assente no princípio de que são as comunidades educativas que melhor conhecem os seus contextos, dificuldades e potencialidades.

É, por isso, importante um compromisso social em torno do sucesso escolar e a necessidade de uma apropriação coletiva que conduza a uma estratégia concertada de melhoria dos resultados, assente num recentrar da ação na melhoria das aprendizagens.

Deste modo, destacam-se algumas medidas já em curso:

  • .O convite às escolas para elaborarem planos de ação estratégica com o objetivo de que sejam elas próprias a construir soluções locais tendo em vista a melhoria das aprendizagens dos alunos. Deste convite resultaram 663 planos num total de 2936 medidas;
  • A dinamização de formação contínua de apoio à elaboração dos planos de ação estratégica e à sua implementação que, com a colaboração dos Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE), se prevê que envolva 35.000 docentes em dois anos;
  • A promoção do envolvimento das Comunidades Intermunicipais (CIM) na dinamização destes planos. Desta forma, é potenciada a convergência entre as iniciativas das CIM no domínio da Educação e os planos elaborados pelas escolas, tendo como finalidade a melhoria das aprendizagens, a diminuição do insucesso e do abandono escolar;
  • O reforço dos mecanismos de acompanhamento individualizado dos alunos, em concreto, através da implementação do Programa de Tutorias no Ensino Básico, que abrangerá cerca de 25 mil alunos, num total de 10 mil horas semanais.


(O Estudo “Desigualdades Sócio-económicas e Resultados Escolares II” pode ser
consultado no site da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência)

19 de Outubro de 2016

16.10.16

a sociedade do ruído.



Temos ideias feitas sobre muitas coisas correntes. Às vezes, as ideias feitas são erradas. Outras vezes, estão certas mas não temos modo fácil de as testar. De vez em quando, é possível confirmar pequenas coisas.

A crítica (uma das críticas) que muitos fazem às "redes sociais" é que elas são pasto para a superficialidade numa forma extrema. Sendo certo que colhemos muita informação relevante nas ditas redes, é fácil descartar aquela crítica dizendo que "há de tudo, como na mercearia". Só que, na realidade, a febre com que muitos se comportam nas ditas redes pode ser ilustrada de muitas maneiras.

Acabei de fazer um teste. Não no ambiente frequentemente agressivo do Twitter, mas no mais pacato Facebook. Publiquei a imagem acima, acompanhada da seguinte mensagem: «Os comentários a este "anúncio" são bem o retrato de muita coisa que se passa no FB... Há quem diga que é mentira, que a mudança de hora não é este fim-de-semana, que já bastam as mentiras dos políticos... Quer dizer, muito mais "opiniães" do que gente a ler e a interpretar o que lá está.» Quer dizer: o texto, basicamente relatando o que tinha visto na página de outra pessoa, já apontava para a armadilha, não a explicando, mas assinalando a sua existência. Mesmo assim, muitos comentários vieram fazer a caridade de me expplicar que a hora não mudava este fim-de-semana... Julgo poder concluir que muita gente não percebeu o jogo da imagem... e que, do mesmo modo, muita gente nem leu o texto de acompanhamento (ou não o entendeu).

Dispenso-me grandes considerações. Sem excessiva teoria, este pequeno experimento mostra o jogo de aparências em que vivemos nestas "redes de nodos esburacados", nodos pelos quais passa muita informação que não deixa nada de consistente. Qualquer dia explicarei melhor como enquadro isto no problema "redes vs. instituições".

16 de Outubro de 2016

15.10.16

Nobel da Literatura 2016.


Para bom entendedor meia palavra não basta.























(Post inspirado num trabalho do Observador e usando parcialmente a sua própria selecção.)

10.10.16

uber, táxis... e opções complexas.



Não sou um fanático das novas tecnologias sem critério. Não quero que voltemos a destruir as máquinas, por elas ameaçarem a ordem presente, mas as máquinas podem vir melhorar as coisas ou servir principalmente para as piorar. Não depende das tecnologias, depende de nós e das nossas decisões.
Vejo que uma plataforma electrónica pode ajudar a prestar melhor serviço - e tanto que estamos necessitados de melhor serviço de táxi! Há taxistas excelentes, mas continuamos à mercê da sorte ou do azar de apanhar um perfeito imbecil que acha que nos está a fazer um favor e que pode tratar-nos como um saco de lenha. É preciso acrescentar transparência, controlo, inteligência e flexibilidade ao serviço de táxi ou o que se lhe aparente. E as plataformas online têm meios que podem servir para isso. E o serviço de táxi tem de aprender com essas possibilidades.
Mas uma plataforma electrónica como a UBER também pode servir para precarizar ainda mais uma profissão. A técnica é velha: transforma-se toda a gente em "trabalhador por conta própria", pode até chamar-se-lhe "empresário" para que ele não possa pedir certos direitos, faz-se com que o "patrão" desapareça atrás da tecnologia e, a partir daí, é o salve-se quem puder. O mercado passa a ser "mais livre", todos podem lançar-se à aventura, ninguém cuida do que acontecerá quando forem mais os prestadores de serviços do que os clientes e quando for difícil monitorizar as práticas.
Era capaz de ser bom aproveitar o aparecimento de plataformas como a UBER para modernizar todo o sector dos que prestam serviços similares. Principalmente a pensar na qualidade do serviço. Eu, por exemplo, gostaria de ficar com um registo electrónico das viagens, para demonstrar a irracionalidade de certos percursos que nos são propostos. Gostaria de saber quem é o condutor e de o poder referenciar. São exemplos. Exemplos de possibilidades que, bem aproveitadas pelos táxis, poderiam renovar o interesse pelo serviço e limpar o campo, deixando a maioria de gente decente e atirando para canto os que dão má fama ao sector. Isso seria útil para todos.
Agora, uma coisa é certa. Um dos espinhos que tem de ser arrancados é a possibilidade de alguns, em nome da profissão, fazerem de uma classe uma tropa de choque, comportando-se como se tivessem direito a sequestrar o espaço público e a ameaçar a liberdade e segurança das pessoas.
Pelo menos enquanto não passarmos de vez aos automóveis sem condutor...

10 de Outubro de 2016

6.10.16

o erro de Assis.



Mais uma coluna de Francisco Assis sai hoje no Público.

Brevemente, Assis refere-se a um artigo que publiquei há dois dias. (Clicando aqui pode aceder ao texto desse artigo.)

Escreve Assis:

«Porfírio Silva, homem de inequívoca densidade intelectual, dedicou-se a escrever um texto a todos os títulos surpreendente. Depois de um congresso do BE marcado quase exclusivamente por uma algazarra antieuropeia — que teve o seu corolário patético na proposta de realização de um referendo sobre a permanência de Portugal na UE em função da eventual aplicação de sanções ao nosso país —, e nas vésperas de um conclave comunista que não deixará, por certo, de fazer do projecto europeu o bombo da festa da inflamada vozearia marxista-leninista, vem apelar a uma convergência de posições das várias esquerdas sobre a União Europeia. Ou estamos no campo da candura ou já chegamos ao domínio do delírio. Não é que Porfírio Silva não tenha razão naquilo que diz — o problema é que aquilo que ele pretende está em contradição quase patológica com a realidade.»

Obviamente, o que tenho a criticar no que Assis escreve não é que ele me critique. Contrariamente ao próprio Assis, nunca me queixei por ser criticado por outros camaradas. Não sou daqueles que gostam da sua liberdade de expressão, e de poder criticar, mas têm ataques de urticária quando os outros exercem a mesma liberdade. Portanto, nada contra que Assis me critique.

Contudo, Assis denuncia-se a cometer um erro essencial. Assis critica o meu artigo como se o meu artigo fosse um texto de um comentador. Eu estaria a descrever a realidade - e a realidade descrita por mim não seria nada do que eu via.

O erro - crasso - de Assis é que eu não sou um comentador. Eu não faço comentário político. Eu não sou repórter, relator, observador. Nada disso.

Eu faço política. Defendo o que acho que deve ser. Proponho pelo que devemos lutar. Faço combate político. Portanto, o meu artigo, tal como tudo o que escrevo como político, é uma determinação de trabalhar para que aconteça. E, sim, muito daquilo que um político empreende é sobre uma realidade que não existe - mas que queremos fazer acontecer.

O erro básico de Assis é não perceber que eu, como deputado e dirigente do PS, não me limito a descrever a realidade. Razão pela qual não escrevo como cronista. Escrevo como militante por causas e por caminhos em que acredito.

É surpreendente que Assis, sendo também deputado eleito pelo PS, não perceba a diferença. Esse é um erro politicamente muito relevante.

(Para ler na íntegra o artigo de Assis, pode clicar aqui.)

6 de Outubro de 2016

o cientista Marco António Costa.



Marco António Costa veio afirmar que o estudo "Desigualdades de Rendimento e Pobreza em Portugal", coordenado por Carlos Farinha Rodrigues, seria um “inaceitável embuste”. A deputada Teresa Morais veio também atacar o estudo, dizendo que é enviesado. Devemos dar os parabéns a Marco António Costa e a Teresa Morais por terem recentemente desenvolvido novas competências científicas e de investigação, a ponto de se terem tornado pares científicos dos autores do estudo, capazes de o avaliarem seriamente?

Isso seria um notável avanço na qualificação da política. "Seria" - mas não me parece que seja. Afinal, esses políticos não usam, para fundar o que dizem sobre o estudo, as metodologias que usariam os que estudam propriamente. Nem por um minuto se detêm a pesar o facto de os autores usarem as metodologias correntes em instituições internacionais de referência (como a OCDE ou o Eurostat) quando estudam estes mesmos problemas.

O que querem é outra coisa. A cientista Teresa Morais, seguindo as pisadas do cientista Marco António Costa, quer que o editor aplique "um filtro"! A deputada do PSD avisa a Fundação Francisco Manuel dos Santos para que tenha cuidado e não publique estudos com conclusões inconvenientes... Apelo à censura? Caramba, onde esta gente chega.

Sim, porque não se trata, certamente, da qualidade científica do estudo. A qualidade científica não é medida pelos comentários dos deputados, mas sim pelo historial dos investigadores e pelo escrutínio dos pares, dos outros cientistas, de quem queira e possa trabalhar no mesmo plano e com métodos escrutináveis. A direita portuguesa mais oficial está a pegar na moda de escolher qual a investigação que interessa em função das suas opiniões. Qualquer dia estão a defender que o criacionismo é tão científico como a teoria da evolução.

Não devia surpreender. A Direita não é toda igual, e não quero com isto ofender a Direita decente. Mas a Direita que temos a mandar nos seus partidos (pelo menos no PSD, de quem falamos neste caso) é assim: despreza o conhecimento, despreza a investigação e só gosta de propaganda. Quando o saber pode ser usado para a propaganda, até podem fazer de conta que gostam. Mas, no fim de contas, não querem saber do conhecimento para nada e preferem a política dos chavões. E, é sabido, adoptam a seguinte linha: quem não tem vergonha, todo o mundo é seu.

A alguma direita custa a aceitar que os cientistas não são avaliáveis pela primeira ave que decide "opinar" sobre o seu trabalho: porque eles têm CV, percurso, estão inseridos em instituições, são avaliados por outros cientistas, se escreverem disparates serão penalizados por isso. Já era tempo de deixarem de confundir a lama que atiram com argumentos verdadeiros. E, já agoram, respeitarem a liberdade de investigação e o conhecimento como elemento essencial na compreensão pública do bem comum.


5 de Outubro de 2016 (Viva a República!)