Depois de um período no São Luiz, antes do Verão, está agora no Bairro Alto mais esta criação do Teatro da Cornucópia: o espectáculo vai buscar o seu título, “Música”, à peça de Frank Wedekind que serve de base ao conjunto, mas há mais lá dentro. Como veremos adiante, Luís Miguel Cintra cose um espectáculo com vários tecidos para dar uma vestimenta ao seu tamanho.
Pode ser que interesse para o caso: Frank Wedekind foi um dramaturgo alemão, que viveu entre 1864 e 1918, e que navegou alterosamente entre o direito, a literatura, o jornalismo, a publicidade, a filosofia, ou, mais prosaicamente, entre boémias várias com actores, palhaços, libertinos e outras alternativas ao que ele considerava a corrupta moralidade burguesa. Envolver-se, ainda no século XIX, em temas afins à liberdade sexual, trouxe-lhe longas batalhas com a censura. Ser, depois, acusado de insultar o Kaiser, não tornou o seu caso mais fácil. Fugir para Paris atrasou a punição, mas não a evitou: voltou e pagou com a prisão a ousadia. Acabou por alcançar algum reconhecimento, tendo desenvolvido uma escrita para teatro com soluções que fugiam do naturalismo. Começou a representar ao serviço das suas próprias peças e, pouco a pouco, rendeu-se à necessidade de aceitação e reconhecimento. Alguns dos seus textos mais tardios chegam a ser claramente moralistas.
“Música”, de 1906, é o texto-base deste espectáculo. Pelo tema (confronto entre a vida e a arte, a cantora que queria ser grande e acaba por se envolver sexualmente com o professor de música casado, o aborto como problema e como grande oportunidade social para a hipocrisia), “Música” não seria, hoje, um texto desafiante. Repete coisas que estão ditas e pensadas em múltiplas formas. Luís Miguel Cintra, na segunda vez que fui ver a peça, não fosse eu começar a inventar interpretações delirantes, disse, em tom de aviso discreto e amigável: “tem coisas que às vezes parece que vão por aí fora, que têm muita filosofia, mas, afinal, é mesmo só aquilo”. Certo, é mesmo só aquilo. Não obstante, este espectáculo coloca no mesmo palco e no mesmo tempo, além de “Música”, outra peça, “A Censura”, também de Wedekind, escrita ao mesmo tempo e como reflexão sobre a outra. “A Censura” dá uma série de entremezes, que pouco a pouco deixam de existir separadamente e passam a um regime de sobreposição com o texto principal. E, lá está, isto não tem filosofia nenhuma, mas este dispositivo, habitual em Cintra (fazer espectáculos com textos vários recombinados à sua maneira), acaba por acrescentar uma profundidade aos textos de partida. Ainda há, como epílogo, uma adaptação de “A Hora do Amor”, de von Horváth, porque, afinal, para o encenador trata-se do amor e daquele pensamento (aviso, precaução) final: “O homem mata sempre o que ama.”
Este espectáculo é intrinsecamente diverso e plural. Por ser um momento de criação de um dramaturgo complexo, como literato e como pessoa. Pela combinação de peças num objecto único. Por misturar tons muito contrastantes, entre o profundamente depressivo e o ligeiro e esperançoso. Mas, em larga medida, por criar momento de infinitas camadas em produção síncrona. Exemplo máximo dessa fusão de todos os planos num único ponto no espaço e no tempo – é o quadro em que a actriz Luísa Cruz, que representa na peça central o papel de vigilante na prisão, aparece num entremez a fazer o playback de uma ária, entre o artificioso do playback e a emoção do seu gesto, entre a delicadeza amorosa da ária e a figura pesada da vigilante prisional, entre o ridículo da figura deslocada entre dois mundos e o apelo da personagem à redenção pela verdade da sua presença, rimos por vezes e por vezes aderimos, balançando ali entre todas as emoções contraditórias deste espectáculo.
O encenador é um pouco anarquista como o autor do texto. Mas o encenador é um homem de fé. E não renuncia nem a uma coisa nem a outra. Porque, como procura explicar no seu costumeiro texto “Este espectáculo”, há imensas coisas na vida e a vida é todas essas coisas sem exclusão de nenhuma e na vida hão-de caber tantas diferenças que nenhuma vida particular abarca. E o encenador tenta sempre, cada vez mais, que caibam no palco muitas vidas de cada vez. Neste “Música” podemos variar bastante de humor, ao sabor do vai e vem dos empurrões em direcções diversas que nos são dados – e nisso se encena a complexidade da vida.
Luis Miguel Cintra andou décadas a construir um teatro metafísico – e aproxima-se agora, em espectáculos como este, de uma riqueza mais sensorial e afectiva, onde é mais complexo sentir do que pensar. Saí, na segunda ida ao Bairro Alto para mais este produto Cornucópia, a pensar que Cintra está, com este “Música”, mais perto do que nunca de um teatro para toda a gente. Não pensei gostar de dizer isto. Mas está dito e deixa-me uma interrogação para o futuro. Viva o futuro, pois.
“Música” está em cena até 9 de Outubro.
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25 de Setembro de 2016