13.7.16

dignificar o emprego científico.



O Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior esteve ontem na Comissão Parlamentar de Educação e Ciência, onde tive oportunidade de lhe colocar duas questões sobre emprego científico. O Ministro Manuel Heitor deu respostas muito importantes, que, por isso, aqui resumo.

Primeira pergunta: em que ponto estão as negociações do novo regime jurídico de estímulo à contratação de investigadores doutorados?

Resumo da resposta. As negociações estão a correr bem, espero que o regime para estes novos contratos esteja a funcionar a partir de Setembro. Mas é preciso ver numa perspectiva mais ampla o que estamos a fazer para dignificar o emprego científico. E, aqui, há quatro aspectos a salientar.
Primeiro, a Lei do Orçamento de Estado para 2016 abriu o acesso às carreiras. Após 5 anos de total castração da possibilidade de acesso às carreiras, hoje temos, em todas as universidades públicas portuguesas e politécnicos, concursos abertos para acesso à carreira.
Segundo, o novo regime de contratação de doutorados (em negociação, como dito antes) complementa essas carreiras, porque estes novos contratos vão depois ligar às carreiras.
Terceiro, o programa de estímulo financeiro à ciência terá o enquadramento, isto é, as exigências regulamentares necessárias à promoção da dignidade do emprego científico, quer nos apoios a conceder via FCT para esses novos contratos, quer no que chamamos “arranjos colaborativos” entre o sector público e o sector privado, financiados ao abrigo dos fundos estruturais. O financiamento será feito em condições de promover a dignidade do emprego científico.
Quarto: futuramente, a avaliação das unidades de investigação (em discussão pública a partir de Setembro) irá consagrar as condições de dignificação da actividade científica. Isto quer dizer que, nos critérios de avaliação das unidades de investigação, constarão as condições em que os investigadores são contratados, de forma a que se consiga evitar, e se possível anular totalmente, o abuso de bolsas para jovens que não são realmente bolseiros. Temos de acabar com o abuso da figura de bolseiro e a avaliação das unidades de investigação contribuirá para isso: espero que deixe de ser possível uma unidade de investigação ser avaliada com “excelente” ou com “muito bom” se tiver qualquer abuso da figura do bolseiro.

Segunda pergunta: como é que o MCTES está a dar seguimento à recomendação da Assembleia da República sobre a prorrogação do período transitório para a conclusão do doutoramento?

Resumo da resposta. O regime transitório vai ser prorrogado – mas vamos fazer muito mais do que isso.
Depois de uma série de consultas com as instituições, o MCTES vai abrir, até ao final da semana, as negociações com os sindicatos sobre este assunto, com total sentido da urgência na resolução deste assunto. Estamos a fazê-lo em total articulação com o Ministério das Finanças.
Estamos a considerar, não apenas as pessoas abrangidas pelo regime transitório, mas muitos outros casos que temos de resolver, por serem elementos essenciais do corpo docente, que contribuem para capacitar as instituições politécnicas. Valeu a pena o esforço iniciado em 2006 pelo PROTEC, que capacitou cerca de 2000 docentes do ensino politécnico. Tirando daí as necessárias lições, agora temos de integrar quer os que estavam no regime transitório quer os que não estavam.
Demorou a estudar o problema, porque tivemos de identificar uma vasta panóplia de situações diferenciadas, que queremos resolver. Agora estamos em condições de partir para a negociação da solução, desde logo prorrogando por um ano o prazo para a conclusão do doutoramento. Mas queremos fazer muito mais do que isso. Queremos integrar todos aqueles que já acabaram o doutoramento, mesmo que não estivessem abrangidos pelo regime transitório. Estamos a trabalhar nisso, sem esquecer o quadro de constrangimentos financeiros, trabalhando com os sindicatos e com as instituições do ensino superior, para encontrar soluções que se possam concretizar financeiramente num prazo razoável.
Estamos a ir muito além do que nos foi recomendado pela Assembleia da República.




3.7.16

OS SOCIALISTAS E OS TOFFLERS.




(O texto que se segue foi publicado na edição de 14/04/1985 do Diário de Notícias - há mais de 30 anos, portanto - e era subscrito na qualidade de membro da Comissão Nacional do Partido Socialista. Referia-se à recepção entusiasta de Alvin Toffler, que acabara de publicar A Terceira Vaga. Nesse entusiasmo estavam envolvidos nomes importantes do PS de então. Republico por ocasião do passamento de Toffler. Nem tudo perdeu actualidade desde então...)


OS SOCIALISTAS E OS TOFFLERS



Nos últimos tempos, e particularmente em dias recentes, temos sido invadidos por uma verdadeira encenação toffleriana, que incluiu a vinda a Portugal do "profeta" americano. Talvez não fosse mau reflectir um pouco sobre o fenómeno - e o fenómeno não se circunscreve, nem é, se calhar, essencialmente apenas o discurso do próprio Toffler, mas inclui também a sua divulgação e massificação entre nós.



Futuro: um discurso neutro?

A primeira coisa que se nos oferece à reflexão é a aparente neutralidade do discurso toffleriano. Fala-se de futuro, de modernização, de transformações - como se todos estivéssemos sintonizados quanto ao conteúdo e significado desses termos: mais, como se esses termos não tivessem conteúdo e significado potencialmente conflitual.
Ora, tal não e, simplesmente, possível. O futuro - a nossa visão do futuro - depende antes de mais do nosso presente. Se o nosso presente é feito dos nossos circunstancialismos, as nossas aspirações e as nossas opções - e elas são diversas e contrastantes -, como podem os "nossos futuros" ser os mesmos?

A pretendida neutralidade do discurso toffleriano insere-se na estratégia da "morte das ideologias", que é para nós uma estratégia reaccionária. Se ideologias no seu sentido lato - percepção e acareamento com o mundo - as há diversas, ideologias em sentido restrito - racionalização da forma de agir em resposta ao mundo - tem de as haver também. E existem. Portanto, neutralidade e morte das ideologias como estratégia reaccionária, já que consiste em mascarar a existência e o valor dos diversos quadros éticos e optativos, com o objectivo de impor a ideologia dominante.
E a táctica actual da ideologia dominante consiste em fazer crer que o futuro é só um e não depende de opções que nós possamos tomar - para que as nossas opções não interfiram nesse tipo de futuro que nos querem "oferecer".


Um novo optimismo histórico

O discurso toffleriano acerca do futuro corporiza um novo optimismo histórico, pós-marxista mas fatalista como o marxismo.
O marxismo, e particularmente as suas versões panfletárias e militantes, ofereceram a várias gerações a garantia da necessidade histórica do socialismo - o socialismo, pela própria lógica do destino, teria de vir. A história encarada de forma fatalista, o fatalismo visto de forma positiva.
Toffler & Cª também inventaram um futuro para nós, mas não se limitaram a dizer-nos que ele há-de vir; intimam-nos a trabalhar para isso. E não são brandos: toffleriano futuro ou nada, sem terceira opção. Ou futuro informático, em berços de novas tecnologias, ou passadistas e retrógrados, fósseis e acabados.
Como se em cabos de fibras ópticas viesse uma nova sociedade; em botões de computador, novas mentalidades; em écrans repletos de informação, a igualdade de oportunidades e o direito à diferença.
O que os toflerianos nos não dizem - e escondem - é quem nos vende a tecnologia e quanto ganha com ela. Como não nos dizem que os microcomputadores instalados em nossa casa nunca terão acesso ao computador do Pentágono; nem nos explicam o porquê da espionagem tecnológica entre Leste e Oeste; nem prevêem daqui a quantos anos um camponês moçambicano terá o seu microcomputador... e em que é que isso contribui para evitar que morra de fome.
É que os novos produtores de felicidade - tal como todos os anteriores - vão vendê-la caro.



Socialismo, para quê?

Sem querer, de forma simplista, bater na tecla da intervenção social, da participação e do militantismo, não podemos deixar de sublinhar que toda esta encenação toffleriana assenta e potencia toda uma apologia do individualismo. Nesse aspecto, retoma os erros dos que anteriormente estabeleceram um esquema de raciocínio assente no binómio colectivismo/individualismo, como termos que se excluíssem. E nisso o individualismo não difere radicalmente dos excessos inerentes ao colectivismo. Ambos não percebem quanto a individualidade pode ser solidariedade num contexto de direito à diferença.
O tofflerianismo é a trombeta do fim dos projectos de valorização do homem, que só podem ser o próprio homem lançado na vida e no mundo e nos outros. Combate a tradição, não por ser anticonservador, como pretende fazer crer, mas porque a tradição tem memória das batalhas, das experiências e das pequenas vitórias que já se viveram e que, por amor, se continuam fazendo. Prepara um homem ainda mais anónimo, angustiado, nu e só na praça pública, discursando alto acerca das vantagens do indivíduo contra o social.
Tudo isto com a marca do socialismo partidário português, para consumo dos seus dirigentes e como cábula de um projecto presidencial, enquanto valores da tradição socialista - de que não vemos razão para nos envergonharmos - são claramente negados por estes apóstolos do futuro sem rosto e quimicamente puro. Para eles o socialismo (como, aliás, qual quer outra coisa que devesse ser alternativa) ou não existe ou é inútil, se não adverso.

Caberia então aos socialistas - se o soubessem - não se envergonharem de o ser. Competir-lhes-á (ainda) aceitar os desafios da modernidade: sem dogmatismo e sem sectarismo, mas também sem medos e sem acatamentos passivos, acríticos e consumistas de encomendas alheias.

Porfírio Silva, 14/04/1985, Diário de Notícias