14.2.16

Parabéns, Cristina Reis!



Boas notícias: «O Prémio da Crítica 2015 distinguiu a cenógrafa Cristina Reis, da Cornucópia, “pela arquitectura de cena que criou para o espectáculo Hamlet", anunciou este sábado a Associação Portuguesa de Críticos de Teatro.»

A mesma notícia explica: «O comunicado do júri sublinha “a admirável arquitectura de cena” que Cristina Reis concebeu para Hamlet, uma co-produção do Teatro da Cornucópia e da Companhia de Teatro de Almada. “Ainda que integrando-se no projecto criativo do encenador Luís Miguel Cintra, destacou-se não apenas pela expressiva configuração em palco do universo concentracionário, que a peça sugere, mas também pela plasticidade e valor icónico dos elementos cénicos que convocou”, argumenta o júri. “Jogando com soluções inesperadas e contrastivas”, acrescenta o comunicado, “a cenógrafa criou uma atmosfera de clausura na evocação do poder régio, sobrepondo as ameias de um castelo ao recorte de uma coroa real e trabalhando a geometria no desenho de vários adereços de cena”. Mas o júri também salienta que “esse rigor formal” coexiste com “elementos inesperados de parodização”, enunciando ao mesmo tempo “o brilho e os riscos do exercício do poder”.»

Concordo plenamente. Quando aqui dei conta da forma como vi o Hamlet encenado por por Cintra, escrevi:

«Como não sou crítico, embora goste de teatro e goste de escrever sobre o trabalho da Cornucópia, há muitos aspectos de cada espectáculo que não costumo comentar, como o trabalho dos actores ou o cenário. Mais uma vez desta vez, não vou dizer nada do atrevimento tão falado de escolher um actor de 22 anos para fazer a personagem Hamlet, em vez de um consagrado (com um resultado que me agradou francamente). Mas, uma vez sem exemplo, vou falar do cenário.

A Cristina Reis costuma encontrar fantásticas atmosferas poéticas para os espectáculos da sua companhia, com uma sensibilidade que ultrapassa a minha compreensão e só se entende por ela ser tão da casa que todos os seres inanimados que lá dormem lhe pagam tributo com a cumplicidade que só os objectos na sua quietude sabem como se faz. Senti, desta vez, que o cenário fez mais, foi mais activo; criou, não apenas uma paisagem e um solo onde pousassem as acções e se escorassem as intenções das personagens, mas, muito mais do que isso, uma máquina do mundo que labutou, secreta mas intensamente, para mover a verdade ali em causa e fazer acontecer. É um castelo, ou mais precisamente um esquema de um castelo, sem mudanças de cenário em quatro horas de acontecimentos, mas um castelo tão complexo como o mundo: com vários níveis, interior e exterior, salas e salões e janelas e escadas e passadiços e pátio e cemitério e longe e perto, com vários modos de acesso e circulação capazes de criar movimentos e formas de estar diferentes no que estaticamente podia ser igual, recriando numa casca de noz uma série rica de diferenciações espaciais e significativas essenciais a Elsinore. O castelo do mundo, da luta pessoal pela descoberta do próprio caminho, da luta contra os outros ou com os outros, está aqui todo dado naquela caravela voadora que é o cenário da Cristina Reis, que, se nos costuma dar poesia material, desta vez nos deu filosofia prática. Creio, aliás, que a diferença de intensidade que senti entre a primeira e a segunda partes do espectáculo (e senti-o das duas vezes que o vi) se deve à exploração mais intensa que a segunda parte faz das possibilidades dinâmicas do castelo.»


Só para dizer que a Cristina Reis merece tudo e mais.

4.2.16

postal para Vital Moreira.



Vital Moreira (de quem sou amigo e por quem tenho muita estima) escreve no blogue Causa Nossa que eu fiz "acusações públicas à União Europeia que seriam improváveis há pouco tempo", tomando isso como exemplo de "traços que destoam do tradicional posicionamento do PS no centro-esquerda moderado, aproximando-o dos partidos à sua esquerda".

Sintomaticamente, "ilustra" a acusação remetendo, não para a minha entrevista, apesar de ela estar disponível em linha sem restrições, mas para a leitura/recorte que dela faz o Expresso. Se calhar nunca chegou a ler o original, ou então escreveu o apontamento antes dessa leitura. Aliás, nisso não anda muito longe do que fizeram muitos políticos de direita e comentadores que estão sempre disponíveis para tratar quaisquer pronunciamentos de esquerda como se fossem, por princípio, atentados ao pudor. Isto é, e para sermos claros: é pobre, intelectual e politicamente, atacar uma entrevista sem se dar sequer ao trabalho de argumentar, quer dizer, identificar com alguma precisão o que se está a criticar e dar razões para essa crítica. Infelizmente, e com tristeza o digo, pela consideração que tenho por Vital Moreira, o apontamento dele não é menos abusivo do que o discurso de Paulo Rangel no Parlamento Europeu acerca da minha entrevista.

Infelizmente para a soberba com que alguns se arrogam o papel de sentinelas da ortodoxia pró-europeia, quem saiba ler a minha entrevista e esteja à vontade com o debate democrático não deixaria de perceber uma coisa simples: só um europeísta de esquerda convicto, como eu sou há décadas, se daria ao trabalho de fazer as críticas que faço ao funcionamento da União Europeia, nos pontos em que alguns dos que aplaudem a Europa (em palavras) tudo fazem para a destruir (em actos). Nunca tive medo, nem poupei nas palavras, quando divergi (e continuo a divergir) do eurocepticismo de outras esquerdas. Não aceito, por isso, lições de europeísmo, embora alguns julguem que só se pode ser europeísta aceitando o status quo. Ora, a meu ver, os que estão rendidos ao status quo são exactamente os candidatos a coveiros da Europa.

Um ponto importa: nada do que eu disse, designadamente naquela entrevista, constitui qualquer mudança relativamente à posição tradicional do PS face à Europa. O dispositivo subjacente às palavras de Vital Moreira é conhecido: os defensores da "situação" clamam contra os que têm posições diferentes das suas dizendo que "estão a mudar o que estava bem estabelecido". Fico à espera de que Vital Moreira seja mais concreto e diga com clareza onde é que as minhas palavras constituem mudança em relação à posição de sempre do PS. Porque não constituem.


3.2.16

obrigado, Paulo Rangel, por demonstrar na prática a minha tese.




Paulo Rangel acaba de referir o meu nome em plenário do Parlamento Europeu para atacar o PS e o governo português.

A tese dele é que a minha entrevista ao jornal "i" mostra que o PS não é um partido europeísta. Pois, isso só mostra que Rangel, empenhado a fazer claque contra Portugal, não sabe ler.

Não soube ler nada do que escrevi ao longo dos anos, onde sempre me situei na esquerda mais pró-europeia que existe (aliás, sempre em debate, nesse ponto discordante, com o PCP e o BE).

E também não soube ler a entrevista, porque se tivesse lido entenderia que só um europeísta convicto pode ter as preocupações que eu tenho quanto à democraticidade da União Europeia.

Mas os paulos rangeis deste mundo, no seu papel anti-patriótico, não têm de saber ler, porque o papel que desempenham não passa pela racionalidade do debate. (Já descontado o disparate de dizer que eu sou o principal conselheiro de quem quer que seja.)

Aliás, o comportamento de certas "personalidades" do PSD nos últimos dias só demonstra, na prática, que aquilo que eu disse na entrevista ao "i" é completamente verdade, uma mera descrição da realidade de como funciona a direita europeia no PPE: a única coisa pela qual se movem é o interesse dos seus próprios partidos, os partidos do Partido Popular Europeu. Na prática, o ataque contra o governo português, além de servir o objectivo geral de tentar interditar governos de esquerda na Europa, serve o jogo de tentar evitar um governo espanhol que deixe Rajoy de fora. As instituições europeias estão a ser usadas pelos sectores mais radicais do PPE para tentar salvar um governo de direita em Espanha: esse jogo de interesse partidário é mesmo o que os move.

2.2.16

«Corremos o risco de a Europa se transformar numa URSS sem KGB.»



(Para memória, transcrevo a entrevista que dei ao jornal "i" no dia 01/02/16, ao jornalista Manuel Agostinho Magalhães. As fotos são @Miguel Silva.)

Considerado um dos estrategas de António Costa, o deputado e dirigente socialista Porfírio Silva, de 54 anos, é membro do Secretariado do PS e da sua comissão permanente. É responsável pelas relações internacionais do partido e, na AR, coordena o grupo socialista na comissão de Educação. Filósofo, tem um interesse especial em robótica.

Porfírio Silva acaba de publicar o livro “E agora, Esquerda?”. A pergunta que justifica o título foi feita pelo autor «no dia em que a Comissão Política do PS deu mandato ao secretário-geral para explorar o que é que se fazia a seguir às eleições». E mantém-se atual. É uma pergunta que o deixa confortável, como também o deixa o “trabalho todos os dias” para encontrar soluções em conjunto com o PCP e o BE. Não é um “aborrecimento”, mas algo de “muitíssimo bom para a democracia”.


Há má vontade de Bruxelas com o Orçamento do Estado?

Para falar verdade neste caso, não posso ser brando. Sabemos que há responsáveis em Bruxelas que têm andado a chamar jornalistas para, em off, envenenar a comunicação social contra Portugal, mostrando documentos que deviam ser reservados e dando pretensas explicações que são afinal falsidades. Aqueles que foram tão pródigos em previsões falhadas, que foram recentemente criticados pelo Tribunal de Contas Europeu pela forma como geriram os programas de ajustamento, não deveriam ser tão lestos a prejudicar a cooperação que devia ser leal entre Estados Membros e instituições europeias. Funcionários públicos europeus, pagos para servir o bem comum europeu, não deveriam deixar-se instrumentalizar, não deveriam deixar-se transformar em armas de arremesso da direita europeia. Infelizmente, há algumas pessoas em Bruxelas que não têm noção das suas responsabilidades e que não sabem honrar o histórico de comportamento leal das instituições europeias. Não confundo as instituições com alguns funcionários, mas há de facto comportamentos pessoais que deixam mal as instituições. Mas há alguns sinais que não são os mais desejáveis. Por exemplo, se compararmos a forma como foram tratados os processos de dois bancos que tiveram que ser socorridos, um na anterior legislatura [o Novo Banco] e outro nesta [o Banif], vemos que há orientações diferentes dos serviços num caso e no outro. Não é aceitável.


Há um preconceito da União Europeia contra governos de esquerda?

Deixe-me colocar isso de outra maneira, de uma perspetiva mais geral. Dir-lhe-ia uma coisa com uma expressão relativamente forte. Nós corremos o risco de que a União Europeia se transforme numa União Soviética sem KGB. Claro que sem KGB, porque não há esse aparelho repressivo. Na União Soviética tínhamos um Estado com uma Constituição que reconhecia direitos aos cidadãos e um certo número de instituições. Se as coisas fossem como estavam na Constituição, e se as instituições funcionassem como estava previsto, havia condições para a existência de liberdade política e social. Porque é que isso não acontecia assim? Porque havia uma espécie de realidade virtual que controlava todos os aspetos, um partido hegemónico e uma ideologia total que transformava um sistema que podia ser pluralista num sistema dominado por uma única organização e um único ponto de vista. A União Europeia, apesar de reconhecer a diversidade dos países, de ter várias instituições, de contar com várias forças políticas, acaba na prática a ser gerida por uma ideologia dominante que não aceita alternativas e mesmo por uma espécie de novo partido dominante. Na prática, a direita europeia, organizada no PPE, acaba por controlar governos, acaba por ter uma força desmesurada na Comissão Europeia e também tem o seu peso no Parlamento Europeu, acaba por ter uma influência excessiva num certo tipo de serviços da Comissão Europeia, de modo que, a certa altura, é mais importante saber o que decidem os líderes do PPE nas reuniões preparatórias do Conselho Europeu do que esperar para saber o que decidem as instituições. E há outro ponto que é a burocracia.

Como se manifesta?

Um dos problemas do funcionamento do Estado soviético era uma burocracia em que a questão dos direitos e dos deveres acabava por ser reduzida a um funcionamento maquinístico. E nós, em algumas circunstâncias, temos isso nas instituições europeias. Quando um governante de um país quer dialogar politicamente com o comissário e o comissário faz descer a conversa para um diretor-geral e o diretor-geral faz descer a conversa para um diretor e o diretor faz descer a conversa para um funcionário que segue o dossiê, transforma uma discussão política - em que as escolhas dos países e as escolhas dos povos têm importância - para uma discussão técnica, burocrática, que no fundo é uma forma de esconder uma coisa: nós já temos a nossa opinião e não queremos discutir isso. O funcionamento democrático da União Europeia é ameaçado se houver esta tentativa sistemática de transmitir sinais negativos quando um país muda de orientação, designadamente quando faz uma escolha de esquerda.

Já sentiu isso, nesta fase inicial do Governo?

Eu sou deputado, não sou do Governo. Mas tenho algumas indicações de que alguma ortodoxia de pensamento pode impedir a necessária capacidade de compreensão para analisar a realidade como a realidade é e não com preconceitos.

O maior perigo para o Orçamento pode vir não da discussão interna à esquerda mas da aceitação da União Europeia. Isso dá que pensar?

Eu acho que dá que pensar. É sabido que tanto o PCP como o BE têm uma posição mais pessimista sobre a atitude que a União Europeia pode ter em relação a isso. Mas, com isso vivemos. O que nós não podemos é aceitar que sejam as próprias instituições europeias, às vezes os próprios serviços, a dar razão àqueles que dizem que há umas pessoas em Bruxelas que acham que as coisas têm que ser como elas pensam e não de acordo com as escolhas dos povos e de acordo com um cumprimento razoável das regras.

Chegou a Portugal uma missão da troika, para fazer uma fiscalização das políticas deste governo que inverteram um caminho de austeridade. É um cenário de exame. A troika ainda manda?

É natural que os credores queiram saber como é que as coisas estão a correr. Quanto a isso, nada a opor. O que não seria aceitável é que se voltasse a um clima em que de certo modo deixávamos de ter as instituições normais da União Europeia a funcionar e passávamos a ter uma espécie de instituição de emergência que era a troika, como se a troika definisse a nossa convivência comum no seio da Europa. Penso que isso não é o que está a acontecer, agora é importante que se entenda que uma parte importante do trabalho feito nos anos de ajustamento provavelmente teria de ser feito. Há outras coisas que foram mal feitas ou que foram más opções políticas ou que foram impostas na base de estudos insuficientes. Daí que se chegue à conclusão de que é preciso arrepiar caminho, que é aquilo que estamos a fazer. Eu não aceito diabolizar as instituições internacionais, não podemos é confundir os planos. Que venha uma equipa técnica conversar com as equipas técnicas do país para se informar de como as coisas estão a correr, acho normal. Que as equipas técnicas sejam tratados como se fossem soberanos de outro Estado, ou como se fossem os parceiros políticos de Portugal, isso não é correcto e não podem ser recebidos dessa maneira.

Falando agora dos acordos à esquerda, da chamada geringonça. O Porfírio Silva situa-se à esquerda no PS e está na moção de António Costa em que já está inscrita esta preferência de área política. O dia dos acordos é o mais feliz da sua vida política?

Não tenho tendência para fazer apreciações dessa natureza. Penso que a História dirá mais tarde que os acordos à esquerda foram um momento relevante da nossa democracia pós-25 de Abril. Mas há uma coisa que lhe queria dizer: nós temos que quebrar algumas barreiras mentais e culturais. Eu não fujo da palavra geringonça. Sim, a maioria parlamentar na qual o governo se apoia na Assembleia da República não é uma máquina perfeita e ainda bem que não é. Se o Dr. Paulo Portas tivesse lido um livro do filósofo Karl Popper, ‘A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos’, saberia que a ideia de perfeição numa comunidade política é uma ideia perigosa. É uma ideia totalitária. Estamos felizes que não tenhamos inventado uma máquina perfeita, uma máquina de guerra, que tenhamos inventado a tal geringonça, que não é perfeita, mas é um instrumento democrático. É um instrumento que nos obriga todos os dias a assumir o que os representantes do povo têm de ser. Em função do que disseram na campanha eleitoral e de uma situação política em que não podem fazer sozinhos aquilo que disseram que queriam fazer.


O BE cresceu nestas presidenciais e o PCP teve um resultado mau. Está preocupado com a relação entre os dois partidos?

Não penso que tenha acontecido nada nestas eleições presidenciais que mude substancialmente o nosso quadro de relacionamento.

O crescimento do BE pode ameaçar o PS?

O BE está hoje a fazer uma coisa que no passado nem sempre foi capaz de fazer, porque houve uma altura em que tinha um comportamento muito anti-PS. Hoje têm uma atitude mais positiva, continuam a marcar as suas diferenças, mesmo no Parlamento, em muitos dossiês, distinguem aquilo que concordam daquilo que discordam e penso que o eleitorado do BE que votou neles continua a achar interessante essa dialética - não concordam com tudo e não discordam de tudo. O que é que nós temos de fazer do lado do PS? Sermos capazes de manter a nossa posição de base moderada e com capacidade de diálogo com todas as forças da sociedade portuguesa, a nossa posição tradicional de partido do progresso, de partido de esquerda, que quer mudar as coisas a pensar nas pessoas e não por ideias abstratas acerca do mundo. E ser capaz de melhorar a sua relação com a sociedade, capaz de ter uma relação mais direta com os movimentos que mexem, com as pessoas que tomam iniciativas, que fazem coisas interessantes, que têm ideais para melhorar as coisas e sermos capazes de melhorar essa relação. É isso que temos de fazer, não é uma questão de termos medo deste ou daquele partido. Há um trabalho a fazer, efetivamente, e uma das coisas que pode ser boa para nós é o governo governar bem. Que obviamente pode mostrar que o PS, que tem uma posição importante nesta solução política, que no fundo assumiu a responsabilidade de governar em nome desta solução política, se o governo fizer um bom trabalho - e eu acho que para já está a fazer - isso ajudará as pessoas a entenderem que o PS continua a ser um partido importante para o país e para a esquerda.

O PS assinou um acordo com o PSOE com uma estratégia para exercer pressão na União Europeia no sentido de mudança de orientação política. O PSOE está em dificuldades em Espanha. A estratégia está em risco?

O documento que o PS e o PSOE elaboraram foi uma iniciativa de ambos os partidos, mas foi acolhida pelo conjunto do PS europeu. Esse documento, com o objetivo de criar um novo impulso para a convergência na Europa, diz basicamente o seguinte: nós, socialistas, concordamos que há determinadas reformas que é preciso fazer para melhorar a capacidade dos nossos países para responderem aos desafios presentes, designadamente precisamos da mais economia, precisamos de melhor funcionamento do Estado, precisamos de Finanças Públicas sãs, assentes em bons princípios económicos. Nós aceitamos esse desafio, agora, o que dizemos é: as reformas estruturais, as tais reformas estruturais, não podem ser uma receita que a direita inventou e agora quer que toda a gente aplique. Porque quando certas instituições falam nas reformas estruturais estão a pensar que nós temos de desregular o mercado de trabalho, que temos que diminuir salários. Está visto que isso não é solução para os nossos problemas. Mas há problemas que nós temos de enfrentar com muita determinação. Para Portugal, resolver o problema do défice de qualificações é uma reforma que nós entendemos como estrutural e queremos o apoio da UE para fazer isso. É preciso que o Estado seja mais eficaz e mais eficiente, é preciso que o Estado favoreça a sociedade e favoreça a economia, em vez de criar obstáculos. Queremos que a UE reconheça isso como uma necessidade de transformação estrutural e que nos apoie. O que este documento pede é que se permita aos países identificarem quais são as suas reformas de progresso que têm de ser feitas e não obrigarem-nos a fazer um prato que não é aquilo que nós precisamos de comer, segundo uma receita que alguém inventou noutro sítio. Queremos que cada país possa identificar quais são os seus obstáculos estruturais ao desenvolvimento e que possa atuar nessas áreas.

Como explica a derrota do PS e de toda a esquerda nas presidenciais?

Não quero desculpar os nossos resultados com os outros, mas é evidente que Marcelo Rebelo de Sousa beneficiou de anos e anos a fio de publicidade gratuita na televisão. Mas, enfim, deixando os outros e passando para nós. O PS começou por ter dificuldade, porque havia vários candidatos possíveis do PS que não quiseram ser candidatos - António Guterres, António Vitorino, Jaime Gama. Outra coisa que também não correu bem foi haver dirigentes do PS que, pela forma como criticaram  possíveis candidatos nossos, acabaram por inviabilizar o apoio do PS, como tal, por exemplo ao Professor Sampaio da Nóvoa. E depois, em terceiro lugar, o próprio surgimento de uma candidatura de dentro do próprio PS, uma militante distinta e ex-presidente do PS, que podia até ter um efeito interessante nesta disputa eleitoral, mas acabou por ser vítima de algumas pessoas que desde cedo quiseram usar aquela candidatura como um aguilhão contra a direção do PS, contra o próprio secretário-geral e quiseram fazer daquela candidatura uma candidatura de grupo. Eu quero acreditar que a própria Maria de Belém não era nada disso que queria. O que é certo é que aqueles que quiseram instrumentalizar a candidatura de Maria de Belém para pequenos interesses de grupo dentro do PS fizeram um péssimo serviço a toda a gente. O resultado foi este.

Foi bom não haver segunda volta para António Costa não ter de enfrentar Marcelo?

Podia ter havido segunda volta e era bom que tivesse havido. Não houve por causa dos episódios da última semana de campanha. Eu concordo com alguns apoiantes de Maria de Belém que disseram que achavam estranho que a notícia das subvenções [a sentença do Tribunal Constitucional] aparecesse naquela altura; eu também acho estranho. E registo que o único que ganhou com isso foi Marcelo Rebelo de Sousa. Estou absolutamente convencido de que se não tivesse havido esse episódio, naquele momento, Marcelo teria sido obrigado a ir à segunda volta.

Com António Costa, o PS perdeu as regionais na Madeira, as legislativas e as presidenciais. Quantas derrotas eleitorais consegue aguentar esta direção do PS?

Se o resultado for sempre o das legislativas, em que nós não chegamos lá da maneira que queremos, mas chegamos lá de outra maneira, e até fazendo mais qualquer coisa do que estávamos à espera de poder fazer, se for sempre assim, muito bem - vamos continuar.

O que deve fazer o PS neste congresso?

O PS neste congresso deve olhar para o futuro e deve saber que o partido é fundamental para a governação. Nós não podemos cometer o erro que já cometemos noutras ocasiões, que é dizer ‘agora estamos no governo, quem está no governo que faça o seu trabalho, quem está no Parlamento que faça o seu trabalho e o partido fica à espera, ou fica em segundo plano’. Não pode ser. Os partidos são um instrumento de cidadania fundamental. É através dos partidos que muitos cidadãos anónimos conseguem participar, conseguem ter voz, conseguem estar informados, conseguem dar a sua opinião, conseguem ajudar a mexer as coisas. E nós estamos absolutamente empenhados em que o partido saia do congresso consciente disso. Aliás, a reformulação da direção do partido, com a eleição da secretária-geral adjunta, Ana Catarina Mendes, a criação de uma comissão permanente, onde não há ninguém do governo, onde estou, é a tomada de consciência de que o partido é fundamental.

Era bom que Francisco Assis aparecesse neste congresso? Ele parece hesitante.

Tenho muito respeito pelo meu camarada Francisco Assis, intelectual e politicamente. Eu acho que o facto de ele se pronunciar livremente não o obriga a ser candidato a nada. Se ele quiser ser candidato, magnífico, se ele não quiser, também acho que o facto de ele escrever artigos, fazer intervenções e ter opiniões não o obriga a ser candidato a qualquer coisa.

Será positivo ter mais do que um candidato a líder do PS?

Eu acharia isso bem. Eu sou muitíssimo contra as unanimidades, que são uma forma de preguiça. São uma forma de não discutirmos nada, de não discutir o que há para discutir e, mais tarde, problemas que até podiam ser bem resolvidos, acabam por se tornar problemas complicados. Acho que deve haver quem discorde, quem tenha outras ideias; quem ache que o caminho deve ser outro deveria arranjar uma maneira de que houvesse uma moção, de que houvesse uma candidatura e de que houvesse um debate. Isso é que é saudável.


Parafraseando Marcelo, pode dizer-se que o Porfírio Silva é a esquerda da ala esquerda do PS?

Não, não pode. Eu estou no PS há 40 anos, inscrevi-me quando fiz 14 anos. Alguns interpretarão as minhas posições como mais à esquerda, eu devo dizer que me entendo a mim próprio como estruturalmente moderado. Penso que até sou um social-democrata moderado, no sentido em que os sociais-democratas foram sempre uma corrente da esquerda-esquerda.


(Publicação original da entrevista aqui.)