17.11.15

Defender a democracia representativa.


Kostis Velonis, Life without Tragedy, 2011
(fotografado na exposição No country for young men, BOZAR, Bruxelas)


[Um texto meu publicado hoje no Diário Económico.]


O presidente do grupo do Partido Popular Europeu no Parlamento Europeu, Manfred Weber, escreveu no Diário Económico um artigo sobre a situação política em Portugal, intitulado “Populismo radical”, que não pode passar sem uma resposta breve, mas clara.

Esclareça-se, desde logo, que nada tenho contra o facto de nacionais de outros países da UE se pronunciarem politicamente sobre o nosso país: não procuro refúgios soberanistas, penso a Europa como um espaço político aberto, sem fronteiras para os combates de ideias. É pelo conteúdo que o artigo é preocupante.

Quando Manfred Weber fala de “atirar pela janela a tradição democrática de Portugal”, para comentar o que por cá se está a passar, temos de lhe dizer: por cá temos uma democracia representativa onde as soluções de governo dependem do Parlamento. Não concebo que, na visão da sua família política, a democracia seja outra coisa. Conhecendo, como não duvido que conheça, as fórmulas políticas subjacentes aos governos dos Estados-membro da UE, actualmente e no passado recente, terá de reconhecer a absoluta normalidade democrática da solução política liderada pelo PS em Portugal. Com um pouco mais de informação, e um pouco menos de enviesamento partidário, seria até talvez capaz de reconhecer o valor do acordo à esquerda em termos de aprofundamento da democracia representativa.

Não posso precisar onde Manfred Weber anda a informar-se sobre Portugal, mas vejo evidências de insuficiência nas suas fontes. Quando escreve “torna-se evidente que o Partido Socialista atravessa um vazio ideológico e trilha um caminho populista”, fica claro que as falsas evidências enganam muito quem quer ser enganado. Aconselharia o sr. Weber a ler o programa de governo do PS, antes e depois dos acordos à esquerda. Decerto, lendo-o, verificará que se trata de um programa social-democrata, moderado, à altura das tradições e das responsabilidades da família política socialista no contexto nacional e europeu. O PS, pelo papel que tem desempenhado e desempenha na democracia portuguesa, não tem lições a receber sobre empenhamento democrático.

Aliás, quando o Partido Popular Europeu aspirar a dar lições sobre democracia no espaço da União, bom será que comece por explicar as responsabilidades da sua família política, por exemplo, na deriva autoritária a que assistimos com preocupação na Hungria.

A arrogância infinita dos que pensam que a Europa é deles, de alguma direita que pensa que para haver democracia só ela pode governar, essa arrogância é que é um perigoso tique antidemocrático. É também contra essa arrogância que temos de defender uma democracia representativa completa.


Porfírio Silva, Secretário Nacional do PS



[o artigo de Manfred Weber encontra-se aqui]


14.11.15

Hamlet, Cintra


(Fotografia de Rui Carlos Mateus)




O mundo é estranho. Estava zangado comigo por ainda não ter conseguido escrever sobre o Hamlet que, trazido de Shakespeare para português pela vida poética de Sophia, Luis Miguel Cintra encenou na e para a Cornucópia. Começou, ainda em Julho, no Festival de Almada, e eu não consegui ver. Estreou no Teatro do Bairro Alto, e consegui ver. Regressou a Almada, e voltei. (Há muito que tive de reconhecer que perco muito do que Cintra quer dizer se não vir os seus espectáculos mais de uma vez.) Entretanto, chegara o anúncio de que Cintra termina a sua (noção desconfortável para o próprio) “carreira de actor” com esta peça e, portanto, sobe amanhã ao palco pela última vez. E eu ainda não encontrara tempo para alinhar as ideias que trazia na cabeça sobre este senhor Hamlet. Inesperadamente, os atentados terroristas de ontem, 13 de Novembro, em Paris, provocaram a anulação da conferência política do PSOE, em Madrid, que decorria hoje, Sábado, tornando inútil a minha deslocação e abrindo uma clareira de horas bastantes para escrever estas parcas reflexões que ora partilho quase só por uma homenagem pessoal ao Luis Miguel, e às nossas diferenças.

Como não sou crítico, embora goste de teatro e goste de escrever sobre o trabalho da Cornucópia, há muitos aspectos de cada espectáculo que não costumo comentar, como o trabalho dos actores ou o cenário. Mais uma vez desta vez, não vou dizer nada do atrevimento tão falado de escolher um actor de 22 anos para fazer a personagem Hamlet, em vez de um consagrado (com um resultado que me agradou francamente). Mas, uma vez sem exemplo, vou falar do cenário.

A Cristina Reis costuma encontrar fantásticas atmosferas poéticas para os espectáculos da sua companhia, com uma sensibilidade que ultrapassa a minha compreensão e só se entende por ela ser tão da casa que todos os seres inanimados que lá dormem lhe pagam tributo com a cumplicidade que só os objectos na sua quietude sabem como se faz. Senti, desta vez, que o cenário fez mais, foi mais activo; criou, não apenas uma paisagem e um solo onde pousassem as acções e se escorassem as intenções das personagens, mas, muito mais do que isso, uma máquina do mundo que labutou, secreta mas intensamente, para mover a verdade ali em causa e fazer acontecer. É um castelo, ou mais precisamente um esquema de um castelo, sem mudanças de cenário em quatro horas de acontecimentos, mas um castelo tão complexo como o mundo: com vários níveis, interior e exterior, salas e salões e janelas e escadas e passadiços e pátio e cemitério e longe e perto, com vários modos de acesso e circulação capazes de criar movimentos e formas de estar diferentes no que estaticamente podia ser igual, recriando numa casca de noz uma série rica de diferenciações espaciais e significativas essenciais a Elsinore. O castelo do mundo, da luta pessoal pela descoberta do próprio caminho, da luta contra os outros ou com os outros, está aqui todo dado naquela caravela voadora que é o cenário da Cristina Reis, que, se nos costuma dar poesia material, desta vez nos deu filosofia prática. Creio, aliás, que a diferença de intensidade que senti entre a primeira e a segunda partes do espectáculo (e senti-o das duas vezes que o vi) se deve à exploração mais intensa que a segunda parte faz das possibilidades dinâmicas do castelo.

No seu habitual texto “Este Espectáculo”, Cintra, indo pela tese de ser o Tempo o protagonista de Hamlet, repete que o Tempo e a Morte são o mesmo tema. Insistindo sempre que não percebe nada da filosofia, Cintra volta a ser aqui muito heideggeriano, pensando o “ser do homem” como “ser para a morte” num plano de sentido essencial. Contudo, e porque Cintra não é de todo um pensador individualista (coisa que, a meu ver, Heidegger foi), relevo a sua aproximação entre o tema da morte e o tema da efemeridade da vida. Ora, se a aproximação ao tema do tempo pelo lado da morte nos pode encerrar no indivíduo (o indivíduo que morre), já a aproximação pelo lado do efémero deixa espaço, em meu entender, à entrada em jogo dos outros: morrendo eu ou não, o que persiste para além do efémero é o que fica nos outros, o que lancei à terra dos outros e aí germinou. E, para mim, faz sentido pensar que Cintra, que tanto batalha contra uma civilização do efémero, prefira trabalhar no Tempo por esse lado, precisamente a frente de batalha em que podemos vencer a Morte, vencendo o efémero para lá da morte.

(Aparte. Aliás, não há só esse escoar do tempo absoluto a que tanto nos prendemos. O grande e heterodoxo evolucionista Stephen Jay Gould escreveu, num dos ensaios inseridos em O Polegar do Panda, que não devíamos ser tão fascinados pelo tempo astronómico, absoluto, newtoniano, que numa concepção do mundo racional e objectiva nos parece o único válido, mas não é: devíamos dar mais atenção ao tempo biológico. Que é um tempo interno, orgânico, ligado ao ritmo do corpo. Assim, por exemplo, todos os mamíferos duram aproximadamente a mesma quantidade de tempo biológico, quer dizer, tendem a respirar cerca de 200 milhões de vezes e os seus corações a bater cerca de 800 milhões de vezes numa vida individual. Umas espécies vivem mais do que outras? Sim; os animais mais pequenos vivem mais depressa, os animais mais corpulentos mais devagar; a taxa metabólica, o “fogo da vida”, diminui relativamente com o aumento do tamanho: “Os pequenos musaranhos movem-se freneticamente, comendo durante quase toda a sua vida de vigília para manterem o fogo metabólico à taxa máxima de todos os mamíferos; as baleias azuis deslizam majestosamente, com os batimentos cardíacos mais lentos de todas as criaturas activas de sangue quente.” Em tempo astronómico, os mais rápidos vivem menos tempo, os mais pesados mais tempo: mas, “visto de dentro”, o que corre mais apenas está pressionado pela sua pequenez.)

Ora, o efémero, mais do que a morte, interessa tudo ao tema maldito de Cintra, a política. Tema, porque Cintra sente uma responsabilidade política, pelo menos a responsabilidade de detestar e combater uma certa política, sob o nome, por exemplo, de “política do possível”, que normaliza os espectáculos de teatro a formatos contabilizáveis para efeitos de dinheiros. Tema maldito, porque para Cintra toda a política está manchada pelo poder – e poder é poder de oprimir. Escuso de repetir (já falámos disso neste espaço) que discordo fortemente de Cintra nesse ponto, mas isso não importa agora nada. O que importa é que, repito, há uma questão da política em Cintra, questão que volta neste Hamlet.

Gonçalo Frota, num texto publicado no Público a 17 de Setembro p.p., regista Cintra a dizer que o contacto de Hamlet com a morte o “liberta da possibilidade de ser rei, adquirindo uma lucidez completamente diferente”. Pois que o poder é prisão, é embotamento dos sentidos e da razão, para os outros e para o próprio. Eunice Tudela de Azevedo, naquela das críticas a este espectáculo que mais me aproveitou entre a estreia e a repetição em Almada, evoca a leitura freudiana do texto e exemplifica com dois momentos. Primeiro, a tentativa de Hamlet para subjugar sexualmente a própria mãe (depois da cena da trupe de comediantes). Segundo, mais um substrato permanente do que um momento, a relação de homo-erotismo latente entre Hamlet e Horácio. Ora, em comentário a esse texto, Cintra lança uma outra luz sobre o sentido dessa relação: Horácio, em ser “um Homem que não quer conhecer poder”, é um contrário de Hamlet. Mais decisivo ainda: esse é o contrário “que sempre dialoga com o pensamento de Hamlet”. Uma e outra vez, aqui outra vez, Cintra percorre o mundo à procura de algo, de quem, que seja capaz de desconstruir o poder, as relações de poder, a vontade de poder.

Os espectáculos com dramaturgia de Cintra são sempre homenagens laboriosas à palavra, à linguagem, ao Verbo que fez e faz o mundo e trabalha todos os sentidos que podem na vida ser dados ou tirados. Estas quatro horas são, ainda e outra vez, um sopro de palavra na vida do pensamento. Um quase integral de uma obra maior da história do teatro, um clássico naquele sentido de continuar a interrogar-nos de modo tão actual passados tantos séculos. E isso tem uma razão, que se dá em palavras do próprio Luis Miguel. Numas palestras que proferiu no âmbito do Festival de Almada, trazidas neste 2015 para livro (Cinco Conversas em Almada), Luis Miguel Cintra diz “Os actores devem ter como principal objectivo tornarem-se pessoas interessantes”. E explica: o que o espectador vê da plateia não é a personagem: é o actor, mascarado, a fazer ora isto ora aquilo, de peça para peça. O que o espectador vê é essa pessoa que é actor; se essa pessoa for banal, só pode aborrecer olhar para ela; se essa pessoa for interessante, é mais provável que seja prazeroso olhar para ela e ver o que faz. Por isso é que o actor deve trabalhar para ser uma pessoa interessante.

E assim se explica o grande actor que Luis Miguel Cintra é.



13.11.15

"O PS e a dívida".



Em editorial no DN de hoje, intitulado “O PS e a dívida”, Nuno Saraiva escreve:
«Hoje, porém, o responsável pelas relações externas do PS vai mais longe. Ao DN, salvaguardando que "toda a estratégia do programa do PS é dentro da União Europeia", acrescenta que não quer dizer "que não se estude". Numa altura em que o país está suspenso da decisão de Cavaco Silva sobre a indigitação ou não de António Costa como primeiro-ministro, era bom que o PS não descarrilasse e conferisse pretextos ao Presidente da República para ter dúvidas e hesitações sobre a sua solução governativa. Ao contrário do que se possa pensar no Largo do Rato, a retórica europeia sobre o Tratado Orçamental não mudou. A doutrina, concorde-se ou não, continua a ser, sem transigências, a que foi definida por Schäuble e Dijsselbloem.»

Há um aspecto retórico nesta peça que tem o seu interesse: não dizendo quem é o tal responsável pelas relações externas do PS (dá o caso de ser eu, Porfírio Silva), Nuno Saraiva sente-se assim escusado do exercício de comparar a sua leitura de uma frase minha com aquilo que sempre disse e escrevi sobre a matéria. De facto, quando alguém se dedica ao exercício de extrair de uma frase todo um manancial de consequências que vão contra aquilo que a mesma pessoa disse repetidas vezes em vários textos e declarações, é razoável que nos espantemos com a veia interpretativa.

Mas, já que o editorialista não acha que tenha de se preocupar com isto, então vejamos as minhas declarações ao mesmo DN publicadas na edição de hoje. É na página 4. Começa, logo no primeiro parágrafo, por enquadrar: está-se a falar de um ponto do acordo entre o PS e o BE, relativo à constituição de um grupo de trabalho para avaliação da sustentabilidade da dívida externa.

Aí se diz que eu disse que “Toda a estratégia do programa do PS é uma estratégia dentro da União Europeia”; que isso não quer dizer que “não se estude” a sustentabilidade da dívida (lembrando, como exemplo, um dos estudos produzidos nos últimos anos sobre o assunto, aquele em que participou Pedro Nuno Santos); que o PS tem uma “posição claramente pró-Europa”, embora os socialistas sejam “críticos de alguns aspectos do funcionamento da União Europeia”, como “a arquitectura do euro” ou a falta de equilíbrio na União Económica e Monetária. Aí se escreve também que eu disse que “isto não é tabu em lado nenhum”, porque esse debate existe nas várias famílias europeias “à direita e à esquerda”, tal como disse que “o PS tem uma solução integrada em que tem em conta o enquadramento internacional e os processos de política interna”. E, nessa ligação entre a política interna e a política europeia, ainda sou citado assim: o PS não pretende “converter os outros partidos” com que assinou posições conjuntas: “Há é uma oportunidade de fazer outra política alternativa sem rutura”.

Dito isto, o que posso dizer do que Nuno Saraiva escreveu, para ser o mais imparcial possível, é que se trata de “uma tempestade num copo de água”. Seria ainda mais claro se Miguel Marujo tivesse mencionado outro aspecto que lhe sublinhei, a saber: António Costa sempre disse que não faz sentido colocar a exigência de renegociação da dívida à cabeça. Mas, mesmo sem isso ter aparecido, não há matéria nenhuma nas minhas declarações publicadas pelo DN que justifique a pretensão do editorialista, que é a pretensão de que eu abri qualquer linha de novidade na nossa posição sobre a dívida. Se nós concordamos vir a fazer um grupo de trabalho para estudar a questão da dívida, como o próprio editorialista escreve, qual é a novidade de dizer que a questão pode ser estudada?

Com toda a franqueza, se a ideia é dizer que alguém está a dar desculpas ao Presidente da República, seria melhor procurar-se qualquer coisa de substantivo, em lugar de inventar novidade ou diferença onde ela inexiste absolutamente. Se, pelo contrário, a ideia é o já batido mantra de que não se pode discutir aquilo que os bonzos da ortodoxia querem que não se discuta, aí o caso é mais sério: a tentativa de evitar que a política discuta todos os assuntos que possam influenciar as decisões políticas – essa é uma tentativa que passa ao lado da democracia. Que passa ao lado do que a democracia exige de nós.

Já para não falar da afirmação, também de Nuno Saraiva, segundo a qual “a retórica europeia sobre o Tratado Orçamental não mudou”. É que, aí, é preciso não ter sequer reparado que o presidente da Comissão Europeia já não é Durão Barroso para insistir em não ver as fissuras abertas na ortodoxia que vinha desse tempo. Aí, é preciso ter perdido de vista que, ainda antes de Juncker ter introduzido a leitura inteligente e flexível do Tratado Orçamental, já António Costa tinha defendido a mesma linha, usando a mesma expressão. Mas, enfim, essa matéria realmente substantiva fica para outro dia.

Não nos esqueçamos: para podermos escolher, temos de estudar os caminhos. Quem queira impedir que estudemos o mundo, ou desconhece a complexidade do mundo ou desconhece a complexidade da democracia. As ditaduras são mais simples - mas não estamos acomodados a essa maldita simplicidade.



9.11.15

A política do "natural".



Há adversários do acordo à esquerda que são razoáveis: argumentam, explicam o que acham que pode correr mal, indicam o que poderia ser preferível numa solução inclinada à direita, apontam incertezas, discutem o conteúdo do acordo, e por aí adiante. Isso é a democracia a funcionar. Ainda bem que isso existe. Não é o meu caminho, mas ainda bem que há outras visões do caminho.

Também há apoiantes do acordo à esquerda que são irrazoáveis, fazendo de conta que o caminho não tem dificuldades, pedindo para amanhã este mundo e o outro (como se a esquerda fizesse milagres), desatendendo os desencontros entre culturas políticas diferentes e os escolhos que surgirão por falta de hábito de colaboração política entre PS, PCP e BE. O tempo fará que todos compreendamos melhor as dificuldades que aí vêm, tal como também o tempo nos mostrará que este acordo tem potencialidades e benefícios para o país que nem nós suspeitávamos. Aprender é bom.

Mas há um tipo de irrazoabilidade, vinda de alguns acérrimos opositores do acordo à esquerda, que me parece particularmente aberrante. Traduz-se na ideia de que este acordo é "contra-natura". Certos partidos teriam uma "natureza boa" (democrática, dialogante, leal) e outros partidos teriam uma "natureza má" (antidemocrática, sectária, desleal). Misturar essas "naturezas" seria algo tão detestável ou impraticável como fazer o leão copular com a libelinha. Alguns, mais do tipo missionário a pregar aos incréus, talvez pretendam mesmo que misturar "naturezas" partidárias "incompatíveis" será pecaminoso.

Claro que este "argumento" sobre as "naturezas" dos partidos nos convidaria logo a carrear factos simples para impugnar a suposta "bondade" de alguns personagens dos partidos supostamente bons. Mas nem vou por aí.

O que quero mesmo dizer é isto: a marca distintiva das sociedades humanas - as instituições - distingue-se precisamente por não serem "natureza". Penso que foi Geoffrey M. Hodgson a escrever que percebemos que alguma coisa é institucional, em vez de ser natural, quando as sociedades encontraram maneiras diferentes para implementar a mesma função. Por exemplo, há diferentes sistemas monetários para implementar a função moeda como equivalente geral de trocas - e a libra não é intrinsecamente natural enquanto o euro seria contra-natura, por exemplo. Isto é: é característico do tipo de liberdade, ou margem de manobra, que as instituições trouxeram às sociedades humanas, que as nossas opções não estejam fixadas por uma "natureza", estando disponíveis caminhos alternativos (diferentes entre si) que nos cabe construir e escolher.

Ora, tentar fixar (ou limitar) o comportamento de uma organização humana com o recurso à ideia de "natureza" dessa organização mostra uma radical incompreensão da característica institucional da nossa civilização e da liberdade que isso nos dá. Aliás, o discurso da "natureza" do partido X ou Y, e do carácter "contra-natura" de um acordo entre certos partidos, é, precisamente, uma tentativa de restringir a liberdade: a liberdade de escolha que as instituições democráticas nos dão, a liberdade de fazermos caminhos e de não nos limitarmos ao que estava dado. Isto é o que alguns não percebem, quando confundem história humana com história natural.

MEMÓRIAS. BERLIM, 1989, UM DIA COMO ESTE, UM MURO COMO QUALQUER OUTRO.




Na noite de 9 de Novembro há 26 anos, o governo da então chamada República Democrática Alemã anuncia de forma desastrada (por não corresponder exactamente ao que queriam fazer, que era uma liberalização cautelosa das saídas para o estrangeiro), anuncia, dizíamos, que os cidadãos desse país poderiam atravessar as respectivas fronteiras (de dentro para fora...) livremente. Em consequência, logo nessa noite, cerca de vinte mil alemães de leste atravessaram o posto fronteiriço de Berlim Leste para Berlim Oeste. No dia 11, as máquinas começaram a abrir mais passagens através do muro da vergonha, já que os postos normais não davam vazão à enchente dos que queriam experimentar o sabor dessa nova liberdade. Logo foram anunciadas conversações para a abertura da simbólica Porta de Brandemburgo, que só viria a tornar-se uma ampla passagem entre dois mundos em Dezembro desse ano. No fim de semana seguinte à abertura, cerca de dois milhões de alemães orientais visitaram Berlim Ocidental.
Tive a sorte de estar nessa Berlim esfuziante por esses dias. Tinha ido à conferência "Security in Europe: Challenges of the 1990's", organizada pelo Politischer Club Berlin e pela Amerika Haus Berlin,  que decorreu entre 15 e 17 desse mês, tendo ficado mais uns dois ou três dias. A conferência acabou na tarde de sexta-feira (17) e, desde aí até ao regresso no domingo, deambulei como uma esponja pela cidade que era nessa altura o centro do mundo. Havia, além do povo que estava a fazer a sua história, uma multidão de jornalistas por todo o lado, especialmente postados em frente à Porta de Brandemburgo, por haver então a expectativa de esse local histórico ser aberto imediatamente.
Descobri há algum tempo duas folhinhas que escrevi na altura, "do lado de lá", no meio da agitação. Estão a ficar roídas pelo tempo. Antes que desapareçam, transcrevo-as para este arquivo-pessoal-público.

Folha 1. "Aqui é a Marx-Engels Platz, em Berlim Leste. Hoje são 17 de Novembro de 1989. O Muro já tem aberturas mas ainda falta muita coisa. Aqui está a ocorrer uma manifestação (ou concentração) de estudantes (pelo menos parecem, pela sua juventude, apesar de também haver gente mais velha). Vim para aqui directamente da estação de metropolitano, onde comprei o meu visto e troquei os obrigatórios 25 DM por 25 marcos da DDR. Do lado de lá vale, não 1 para 1, mas 1 para 10 ou ainda mais. Há o pequeno pormenor de que tenho a máquina fotográfica da Guida ao ombro, mas não consigo tirar nenhuma fotografia. Até o azar pode ser histórico... Outro pormenor é que está um frio danado, que entra por todo o lado apesar de estar com dois pares de meias calçados, camisa, camisola de gola alta, casaco de inverno e gabardina. São aqui 15.50H."
Folha 2. "No mapa, tenho aqui uma indicação sobre a Igreja de S. Nicolau, no centro histórico de Berlim. Fui para entrar, vi que se pagavam entradas e que havia um museu. Como não estou com grande tempo para museus, fui perguntar se também se pagava para ver a igreja. Resposta: «Isto não é uma igreja. Isto é um museu.» Entendi: estamos, realmente, no Leste. São 16H 13M."

Memórias das minhas ingenuidades, pois. Como se vê, ainda havia muita coisa por mudar. Eu não falava uma palavrinha de alemão, mas recolhi um comunicado da SPARTAKIST - Herausgegeben von der Trotzkistischen Liga Deutschlands, com o título "Für eine leninistisch-trotzkistische Arbeitpartei!". E em baixo de página: "Für den Kommunismus von Lenin, Luxemburg und Liebknecht!". Ainda tenho uns jornais, uns autocolantes, uns "alfinetes de peito", desses dias. E, claro, umas pedrinhas pequeninas que eu próprio rapei do muro, à unha, enquanto outros já andavam em cima dele com picaretas.

O mundo, realmente, mudou muito. Nem tudo correu bem, como se sabe. Só que ninguém, sabendo do que fala, pode desprezar o valor da liberdade - haja o que houver, com todos os defeitos que as democracias possam ter. Isso sentiu-se naqueles dias (e ainda se sente) em Berlim. Claro, ainda há quem, por cegueira ideológica, ache que tudo não passou de uma operação das forças reaccionárias conspirando por todo o mundo. Por hoje, a esses nada a dizer.

(republicação)

(Como pode ser verificado, há vários anos que publico sempre este apontamento neste dia. Faço-o, este ano, mais uma vez. Para que saibam que o meu amor à liberdade é permanente e não padece de circunstancialismos. Nem contradiz o meu forte e determinado empenho no acordo das esquerdas que está a ser concretizado nestas horas: foi já hoje, de madrugada, que a Comissão Política do PS aprovou a rejeição do programa do governo da direita e o acordo à esquerda para suportar um governo de iniciativa do PS. Votação: Sim: 69; Não: 5, Abstenções: 0.)



8.11.15

"O PS é o partido moderado de que o país precisa neste momento."




A jornalista Liliana Valente, do Observador, entrevistou-me na passada quarta-feira (04/11/2015) sobre o actual momento político. O texto resultante foi publicado no Sábado, 7. Deixo-o aqui, para memória. A entrevista foi publicada com o título "Ninguém espera que desenhemos agora quatro orçamentos". Eu escolhi, para aqui, outro título, menos de actualidade e mais conforme com o que é permanente no meu pensamento.

***

As negociações foram iguais com PCP e BE? Nunca houve uma reunião entre os três partidos…

Somos todos partidos diferentes, com culturas diferentes, histórias diferente, com programas diferentes que eram diferentes antes destas conversações e vão continuar a ser diferentes. Há assuntos que não são completamente coincidentes naquilo que tem de se trabalhar em cada um dos casos.

Portanto vamos conhecer acordos diferentes?

O que vai acontecer é que há uma base para um programa de governo em que todos aqueles que estão envolvidos nesse trabalho concordam que essa é a base para um programa de governo. O que está em causa é como é que se constrói um programa de governo. Sabemos desde o princípio que a base desse programa de governo é o programa eleitoral do PS, porque foi o programa que teve mais votos. Também sabemos desde o princípio que há pontos que são importantes para os outros partidos e condições sobre as quais não vamos estar de acordo, nem sequer vale a pena discutir. E, portanto, a geometria é variável. O que interessa é que temos de chegar a uma situação em que o programa do governo que seja apoiado pelos vários partidos seja coerente, do ponto de vista de todos, e seja satisfatório do ponto de vista de todos.

Como vai o PS garantir que o acordo responde às exigências do Presidente da República? É possível que Cavaco Silva não dê posse a um governo de esquerda?

Tenho tendência a pensar que quem tem responsabilidades institucionais exerce essas responsabilidades no melhor interesse do país. Julgamos que o melhor interesse do país é que haja uma solução de governo que seja sólida, seja consistente, seja duradoura e, obviamente, seja maioritária na Assembleia da República. Isso corresponde a um desafio lançado pelo Presidente na comunicação que fez ao país aquando da marcação das eleições. Seria estranho que, estando nós a fazer aquilo que é normal em democracia – procurar uma solução no Parlamento – e estando a corresponder ao desafio insistente do senhor Presidente da Republica de que ‘é tempo de compromisso’, que isso correspondesse a uma solução aceitável constitucionalmente e não o fosse no critério do senhor Presidente da República.

Mas o Presidente da República elencou uma série de pressupostos que têm de ser cumpridos, como o respeito pelo Tratado Orçamental, a NATO, as regras da União europeia, da união bancária. Como vai o PS blindar esse acordo?

Tenho uma certa resistência em falar da ação política do Presidente como se ele fosse adversário ou inimigo de algum partido. A partir do momento em que no PS estamos a trabalhar para uma base de estabilidade para a legislatura, entendemos que estamos a trabalhar numa base que é desejável para o Presidente da República.

PCP e BE aceitam esses pressupostos?

Nós temos pela frente a necessidade de satisfazer várias obrigações do Estado. Temos por exemplo que satisfazer as obrigações do Estado no que diz respeito a pensões e salários. Devemos cuidar, satisfazer as obrigações do Estado no que diz respeito aos serviços públicos essenciais, que as pessoas esperam que o Estado garanta. Temos de pensar nos compromissos europeus que o país assumiu, temos de pensar na necessidade de relançar o desenvolvimento em ciência, inovação, educação e cultura. E aquilo em que estamos a trabalhar é para desenhar uma trajetória orçamental, em termos de défice e de dívida que garanta o cumprimento dessas obrigações fundamentais do Estado. E que tenha o acordo dos partidos envolvidos.

Que trajetória será? Jerónimo de Sousa já falou na possibilidade de deixar o défice subir até aos 4%, 5%…

O que o secretário-geral do PCP disse tem muita racionalidade. Porque o que ele disse foi: porque é que é 3% e não é 4%? O que ele quer dizer: quando se definiram as regras, devia haver um racional para essa definição e isso podia ser discutido e a opção poderia ter sido outra. E é verdade. Podia ter sido outra. O que o secretário-geral do PCP disse é racional. As regras podiam ter sido outras, o desenho podia ter sido outro, nós próprios dizemos que continuaremos a participar no seio da UE e no quadro da Zona Euro em todas as discussões que se vão tendo acerca de como se podem melhorar as regras. Não há nada contra que nós continuemos a analisar criticamente o enquadramento que existe. Agora, o enquadramento que existe é aquele que existe e nós nunca fomos favoráveis a uma perspetiva quixotesca que seria ‘nós vamos lá e convencemos os outros todos de que é preciso mudar isso imediatamente’. Não temos essa perspetiva. Sabemos que, acerca do que se deve fazer a longo prazo, os vários partidos têm ideias diferentes acerca da estratégia, tática e fundamentos. Isso é perfeitamente assumido. Os partidos não mudaram todo o seu programa, nem toda a forma de estar na política portuguesa e europeia, de um momento para o outro – e isso está claro para nós.

Admite que o défice pode derrapar este ano e no próximo? Isso vai trazer problemas adicionais.

Boa pergunta para fazer ao governo. Há muitos sinais de que algumas perspetivas que foram avançadas do que iria acontecer no conjunto do ano talvez não sejam muito realistas. Não vou entrar nisso. Não devemos ser alarmistas, mas também não devemos ser ingénuos. O que acontece é que quem está a pensar assumir as responsabilidades de governar o país tem de estar preparado para as eventualidades. Não para aquilo que gostaríamos que acontecesse, mas para aquilo que realmente vier a acontecer. E portanto enfrentaremos as situações que houver a enfrentar.

O PS admite rever o défice de 2016?

Não vou falar sobre o conteúdo do acordo. Parto do principio de que é a melhor técnica negocial.

Mas há garantias gerais que podem ser dadas…

Isso está a ser discutido e não vou dizer como está a ser discutido. Será proposta uma trajetória orçamental que contenha uma estratégia para o conjunto da legislatura. O nosso horizonte é o horizonte de uma legislatura, o que significa que o acordo não contém nenhum prazo inferior à legislatura. Dizer ‘ah, é para um orçamento, dois orçamentos’. O que se pode dizer é que certamente ninguém espera que nós vamos agora desenhar quatro Orçamentos do Estado. Ninguém espera. O mundo não é uma máquina, a realidade política não é determinística e, portanto, governar não é seguir um plano muito detalhado, desenhado previamente. É ter rumo, objetivos, balizas e ter método para enfrentar as contingências e para enfrentar as circunstâncias inesperadas. É isso que o acordo terá. O PS disse antes das eleições quais eram as suas perspetivas acerca da estratégia de consolidação orçamental. Também dissemos e explicamos que não temos a visão das finanças públicas que a direita tem. Entendemos que as finanças públicas se tornam sustentáveis com uma boa economia, com rendimentos das pessoas e das famílias, com crescimento, capacidade para a empresas investirem. Esta é uma estratégia diferente. O que o acordo terá de conter é qual é a estratégia, a linha, a trajetória orçamental que os subscritores do acordo pretendem aplicar e terá o método para se conseguir.


Está garantido o compromisso do PCP e BE para as medidas que forem necessárias para assegurar essa trajetória?

O compromisso é o método. Se nós estivéssemos a discutir o programa de governo de direita penso que não seria muito difícil adivinhar que sempre que houvesse uma dificuldade a receita havia de ser ou cortar nas pensões ou nos salários ou aumentar os impostos. Não será esse o método que vamos adotar. Pelo contrário. Certamente que será parte desse método a questão de saber como teremos de resolver as circunstâncias supervenientes sem cortar nos salários, sem cortar nas pensões e sem ir logo aos impostos sobre o rendimento.

Essa é uma garantia dada ao Presidente?

Não é uma garantia dada a ninguém. É o acordo entre as partes. Não estamos a falar de imposições nem de exigências. Mas de partidos que de boa-fé têm determinados objetivos – sabem que alguns são comuns e que noutros há diferenças ou divergências. Têm de conseguir definir a maior base possível de convergência para que seja possível governar o país. Ou deixando para outras núpcias as divergências ou arranjando maneira de as resolver.

Deixar para outras núpcias quer dizer o quê? Vai ser uma negociação orçamento a orçamento?

Pode ser o reconhecer de que há certos problemas do país que não vamos resolver nesta legislatura e que se calhar terão de ser resolvidos noutra altura, noutro governo, de outra maneira e com outra maioria.

Pergunto de outra maneira: quais são as garantias que o PS vai dar de que o acordo é sólido? Vai determinar as linhas gerais ou vai dizer, à semelhança de outros acordos de governo de que se comprometem a votar em solidariedade moções de censura confiança, etc…

Não vamos desenhar agora quatro orçamentos. Haverá uma trajetória que nós acordaremos e haverá um método para respeitar essa trajetória num horizonte de uma legislatura. O método e a trajetória têm de compatibilizar várias coisas, várias obrigações do Estado. Esta ideia de que podemos pensar em algumas obrigações do Estado como se estas fossem as únicas, e esquecer as outras, está errada. Uma questão essencial que distingue o que aconteceu na última legislatura e o que queremos que aconteça nesta, passa por aí. Não podemos pensar que as únicas obrigações do Estado dizem respeito ao défice…

De quais está a falar?


Dos compromissos constitucionais, de pensões, da necessidade para as pessoas e para a economia de haver previsibilidade, de não estarmos permanentemente na incerteza de que pode mudar tudo num mês, de que se vai ter mais cortes. Isso é importante e marca uma mudança de estratégia.

Tendo em conta a radicalização atual, o PS põe de parte negociar no futuro com PSD e CDS?

O PS é o partido moderado de que o país precisa neste momento. Esta direção do PS, desde que o secretário-geral é António Costa, começou por dizer uma coisa muito simples, mas que aparentemente é muito difícil de perceber para muitas forças políticas: Portugal precisa de se focar em grandes convergências de fundo, a chamada agenda para a década, que diz que não podemos estar a mudar de políticas a cada quatro anos. Não conseguimos fazer nada de profundamente relevante se, em áreas como a ciência, educação e inovação, estivermos sempre a mudar as nossas políticas. Porque é preciso continuidade e, para haver continuidade, é preciso que os partidos de direita e de esquerda e os parceiros sociais sejam capazes de se focar em convergências de fundo de longa duração. As divergências que podemos ter só fazem sentido em termos de contribuição para o desenvolvimento do país se tiverem como pano de fundo convergências mais fundamentais. Esta forma crispada, esta forma radical, agressiva de alimentar o debate é contrária a isso e nós batemo-nos contra isso.

Marco António Costa disse que o PS fez uma escolha e isso fechou por completo a possibilidade de votar qualquer coisa que venha do governo de esquerda. Isto fecha porta por completo a negociações quer com PSD e CDS?

Um partido que é responsável não anuncia uma posição de bota-abaixo sistemático, de ‘connosco não contem’. Tenho dificuldade de perceber isso em democracia. E mais. Francamente, custa-me a compreender isso associado a um certo tipo de discurso que se acantonou no espetro político à direita, onde se fala de golpe de Estado, de ilegitimidade, de usurpação, de falta de respeito pelos resultados eleitorais, onde se fala disto tudo para falar de negociações dentro do Parlamento, onde se usam estes termos para falar de conversações entre partidos eleitos democraticamente, deputados e grupos parlamentares eleitos democraticamente que estão a responder à necessidade de compromisso que o Presidente da República enunciou. Estes partidos toleram no seu espaço político um discurso agressivo, radical, em que parece que se quer mobilizar a rua para desautorizar o Parlamento eleito democraticamente – e isso preocupa-me.

A opinião de Francisco Assis tem fragilizado este caminho de António Costa?

Sempre entendi e continuo a entender o PS como uma grande casa plural. Não é agora, por estar na direção, que vou mudar de opinião. Nunca me verá a fazer uma coisa que se fez anteriormente, que foi usar o lugar de membro da direção do partido, ou usar as escadarias do Rato, para chamar desleais ou traidores àqueles que discordavam. Posso discordar imenso de um camarada meu, mas nunca lhe chamarei desleal nem traidor por ter opinião diferente das minhas. Tenho de lembrar que a Comissão Política, sem votos contra e com duas abstenções, deu mandato ao secretário-geral para prosseguir as negociações e concluir um acordo com o BE, PCP, e PEV, para concluir um acordo de base para a governação. Não há aqui ninguém que tenha açambarcado a construção da linha política do partido. O partido continua a ter órgãos, nunca deixou de os reunir.

Dito isto, tenho pena de verificar que por vezes há alguma coincidência entre alguns argumentos de militantes do PS e de argumentos da direita. Percebo mal que veja a direita replicar argumentos que surgem de dentro do PS ou a dar ideias a camaradas meus para argumentarem.

Há uma pergunta que tem de ser feita - e sem lhe responder temos uma análise incompleta da situação: com que cara íamos nós apoiar o governo da direita, fazendo o contrário do que dissemos em campanha, que foi assegurar repetidamente que não iríamos suportar um governo da direita e que queríamos ser alternativa?

Assis defende um apoio ao governo PSD/CDS…

Francisco Assis, que conheço há muitos anos, é um político brilhante, pensador fantástico, às vezes entusiasma-se com a sua própria retórica, o que é normal. A lógica do brilho intelectual também é entusiasmarmo-nos com a nossa própria argumentação. Chama a atenção para pontos importantes, para o posicionamento do PS na sociedade portuguesa. É importante. Eu concordo que em todas as circunstâncias nós temos que preservar a autonomia do PS. Não somos nem a esquerda da direita nem a direita da esquerda.

Os três partidos, PS, PCP e BE, ganham com este acordo?

Com variações eleitorais, todos os partidos subiram e desceram mais ou menos ao longo do tempo, mas o sistema político português tem sido bastante estável. E o PS corresponde a um setor do eleitorado, diferente daqueles que responde a conduta tradicional do PCP e do BE. O país pode ganhar com essa solução. Se o país ganhar, ganharemos todos. Tenho a esperança de daqui a quatro anos já não haja ninguém que diga que isto é um golpe de Estado, que já não haja ninguém que diga que este governo era ilegítimo.

Também tem esperança de que possam ir os três coligados?

Não me parece. Acho que o PS tem a sua identidade. O PCP é um partido com muitas décadas, não vai ser consumido por nenhum outro partido; o BE é mais jovem, mas é um partido que tem sabido colocar algumas questões novas na sociedade portuguesa. Todos temos os nossos papéis. Não tenho a conceção hegemónica da vida política. Não aspiro a que o PS tenha 80% do eleitorado. Acho que isso até seria mau. O que é preciso é que haja partidos diferentes.

Os órgãos do PS reúnem-se este fim de semana. São suficientes para ratificar um acordo ou é preciso um referendo?

Os órgãos do partido estão em plenitude das suas funções. São expressão da pluralidade do partido e estão em condições de tomarem todas as decisões que devam tomar. E penso até que são a forma mais apropriada de discutir esse assunto. Não estamos só a discutir se o PS deve ou não aproximar-se deste ou daquele partido. Estamos a discutir qual a solução política em concreto, o que vamos acordar, não é ‘façam lá um acordo qualquer’. Esta análise e decisão faz-se dentro de um órgão de deliberação coletiva. Um referendo é um sim ou não, mas um sim ou não a quê? Estamos a falar de coisas muito mais profundas e sérias. Quando estamos a falar de um acordo que existe, de um texto que vai ter de ser analisado na sua profundidade, parece-me melhor que haja um órgão de decisão coletiva do partido que o analise, em lugar de o pôr ao voto sim ou não da generalidade dos militantes.


(original aqui)