A apresentação do Relatório dos Economistas ao PS suscitou algumas reacções que ultrapassaram as minhas expectativas. Quero dizer: demonstraram, à direita e à esquerda, um grau de cagufa superior ao que se podia esperar. E, sendo a cagufa má conselheira (política), deu-nos a ver o seguinte (triste) espectáculo: um saudável exercício de melhoria da qualidade da democracia – um partido pedir ajuda para esclarecer melhor as balizas das suas possíveis propostas políticas, para não assumir promessas irrealistas – provocou uma onda de desconcertos à direita e à esquerda.
A direita
À direita, a desorientação mostrou-se precocemente. Ainda nem tinha bem acabado a conferência de imprensa de apresentação do Cenário Macroeconómico na sede do PS e já estava um vice-presidente do PSD (José Matos Correia) a atacar o relatório. Perguntado, reconheceu que não tinha tido oportunidade de ler o documento. Estamos esclarecidos: acham mau porque sim, acham mau mesmo sem lerem. Já sabiam que opinião tinham antes de conhecerem.
Depois, outros dirigentes da Coligação fizeram contas. Primeiro, Cecília Meireles dizia que as medidas que constam do cenário macroeconómico teriam um custo de três mil milhões de euros. Depois, Pires de Lima arranjou um desconto: 2,2 mil milhões. O rigor desta Direita a fazer contas está à vista.
Parece que a direita pensava que o PS se iria fiar nas contas dessa direita que promete para 2019 o que em 2011 prometeu para 2015 e não fez. Assim, surpreendeu-se com o exercício do cenário macroeconómico encomendado pelo PS e desatou a disparatar. Parece estupidez tanta leviandade, mas, enfim, eles lá sabem.
A esquerda partidária
Na esquerda partidária, infelizmente, a reacção também foi bastante primária.
Dirigentes do PCP e do BE dizem que o PS não pode acabar com a austeridade porque quer cumprir as regras da União Europeia. Esta linha de reacção desses partidos de esquerda evidencia que esses partidos caíram numa armadilha da direita. Explico-me.
A tese da direita sempre foi: se querem Europa, têm de aceitar o empobrecimento (a austeridade). Infelizmente, uma certa esquerda não encontrou melhor maneira de tentar reagir ao Relatório dos Economistas ao PS do que fazer coro com a direita, fazer coro com a tese central do "pensamento único": ou se submetem ou saem da UE (ou, pelo menos, do euro). Esse é o argumento do governo de direita, porque será que o PCP e o Bloco vão pelo mesmo caminho?
Já o PS não engole o pensamento único. Vamos ficar na Europa e no Euro e vamos acabar com a austeridade e o empobrecimento. Parece, aliás, necessário fazer um apelo aos outros partidos de esquerda para que encontrem uma linha de debate que não ressuscite a coligação negativa, com a “esquerda da esquerda” a fazer o mesmo discurso da direita.
A esquerda intelectual por trás da esquerda partidária
Tendo a esquerda partidária demorado umas 24 horas a reagir ao relatório dos economistas ao PS – louvo a cautela, mais saudável em termos democráticos, e mesmo em termos de honestidade intelectual, do que a já referida alocução de um vice-presidente do PSD – a esquerda intelectual que abastece alguma esquerda partidária, pergunto eu, terá sido mais produtiva quando decidiu aparecer?
Vejamos apenas um exemplo. João Rodrigues, no Ladrões de Bicicletas, um blogue que visito muito e com proveito, escreve um texto intitulado “
Passos de Costa”.
Começamos bem: há uma certa esquerda que tem saudades da coligação negativa (que levou Passos e Portas ao governo) e adora meter o PS e a direita no mesmo saco. Enfim, esse tique já nem merece comentário.
Aliás, aquele texto é de uma arrogância extrema. A Agenda para a Década é despachada como “mais uma década perdida”. As abordagens do PS são “política social-liberal” e “manipulação” (termo que o Autor considera “mais neutro” do que “a arte do enquadramento”, expressão que também aplica ao PS). Aquilo que não tem coragem de atacar deste modo, ataca de cernelha: o imposto sucessório é (meramente) simbólico e “ideal para colocar na lapela em Abril”. E, para terminar, “o socialismo está definitivamente cada vez mais vazio”.
Estamos espantados com tudo isto? Não estamos. A retórica de uma certa esquerda, que há muitos anos é uma retórica defensiva – dentro da linha “a melhor defesa é o ataque” – é uma retórica de dar pontapés no PS. Mas o mais grave não é isso. O mais grave é o concreto. Vejamos.
Estamos – devemos estar – preocupados com o fenómeno designado por “trabalhadores pobres”. Uns 10% dos trabalhadores não ganham o suficiente para terem um rendimento minimamente aceitável, ficando – mesmo trabalhando – em risco de pobreza. Inaceitável. Esta questão preocupa o PS na óptica da defesa da dignidade do trabalho – a mesma óptica pela qual temos defendido o aumento sustentado do salário mínimo. O Relatório dos Economistas ao PS propõe a criação de um complemento salarial anual, que constitui um “imposto negativo”, aplicável a todos os que durante o ano declarem um rendimento do trabalho à Segurança Social inferior à linha de pobreza. Este complemento salarial é apurado em função do rendimento e da composição do agregado familiar. Ao contrário do subsídio de desemprego, que tem condições de atribuição que excluem indivíduos com trajectórias mais precárias no mercado de trabalho (na realidade, o subsídio de desemprego exclui a larga maioria dos desempregados), o imposto negativo é atribuído de forma universal. Assim, os indivíduos com rendimento baixos dispõem de um mecanismo de combate à pobreza, através da promoção do emprego.
Reacção de João Rodrigues: isto é uma “perversa” “subsidiação pública dos baixos salários”. Francamente, este ataque feroz à subsidiação pública faz lembrar Paulo Portas a clamar nas feiras contra a subsídio-dependência. Isto é: vamos fazer a economia funcionar muito bem e logo desaparece a pobreza – e, entretanto, os pobres que esperem sentados, porque os perversos subsídios públicos nem pensar!!!
Outra peça do argumento (ia colocar aspas, mas contive-me) é que o Relatório dos Economistas ao PS promove uma “liberalização furtiva dos despedimentos individuais”. É muito simples: é mentira. Com o “mecanismo conciliatório”, que o Relatório propõe, o trabalhador mantém as mesmas garantias e não pode ser despedido sem justa causa. O conceito legal de justa causa não é alargado. Se o trabalhador considerar que foi alvo de um despedimento discriminatório tem sempre possibilidade de recorrer para os tribunais, ao processo normal, e nestes casos aplicam-se as regras atuais: indemnização e possibilidade de reintegração na empresa. O que o Relatório propõe é criar na lei um processo conciliatório que já hoje acontece em muitas empresas, mas de modo informal. A formalização desta negociação entre empregador e trabalhador protege melhor o trabalhador, até porque o empregador, para iniciar o procedimento conciliatório, tem de informar as estruturas representativas dos trabalhadores. O mecanismo conciliatório vai permitir aos trabalhadores acederem a indemnizações mais elevadas (e não sujeitas a imposto) do que aquelas que o Governo fixou. Além do mais, este novo mecanismo só estará disponível para contratos futuros, não para os actualmente em vigor. Nada disto é a pretensa “liberalização furtiva dos despedimentos individuais”, como escreve o Autor em apreço.
Mas, claro, o Autor tem sempre a opção – que usou – de ignorar a realidade do mercado de trabalho e passar por cima dos problemas concretos das pessoas como cão por vinha vindimada, como diz o povo. É que aquela via conciliatória para a desvinculação contratual está associada a algo muito importante: um ataque decidido à precarização das relações laborais. O Relatório dos Economistas ao PS faz isso propondo uma alteração legislativa que reduza muitíssimo o recurso aos contratos a prazo, limitando-o a situações de substituição de trabalhadores. Este combate à precariedade conta, desde já, com outra medida proposta no relatório: a taxa sobre a precariedade ou taxa sobre a rotação excessiva de trabalhadores. Essa taxa, paga pelas empregas que desempregam os seus trabalhadores mais do que a média do sector, obrigando-as a contribuir mais para o financiamento da protecção no desemprego, faz com que as empresas suportem os custos de abusarem dos despedimentos. Até agora, as empresas que mais despedem oneram a sociedade sem pagarem nada por isso. Isso tem de acabar, é o que propõe o relatório apresentado pelos economistas ao PS. Mas nada disto o tão de esquerda Autor se digna referir, esquecendo que a tal via conciliatória, que ataca sem mencionar, faz parte deste pacote de combate à precariedade. Na realidade, com umas frases muito rebuscadas, o que o Autor faz é sugerir que o problema não é bem este. Mas é. É que em Portugal, se somarmos os trabalhadores desempregados, desencorajados, sem contrato permanente e independentes economicamente dependentes, a taxa de precariedade aproxima-se dos 50% da população. E esse problema tem de ser atacado de forma decidida. Mas há quem, invocando os seus pergaminhos de esquerda, acha este combate desinteressante – e ache mais interessante atacar tudo o que cheire a PS.
E, claro, o mesmo Autor e o mesmo texto abominam que o relatório não proponha a saída do Euro. Evidentemente, os 12 economistas estariam bizarramente deslocados da realidade se viessem propor ao PS uma política de ruptura com a Europa. Porque essa não é a opção do PS, é sabido. A esquerda portuguesa que se julga mais de esquerda do que o PS não foi capaz de tirar nenhuma lição do impasse grego. Não aprenderam nada com os erros da estratégia do governo grego, que está a desperdiçar a oportunidade que o seu eleitorado lhe deu – oportunidade que o PS saudou.
E, afinal, por quê?
E, afinal, se gente tão de esquerda se comporta desta maneira, como podemos interpretar esse facto? Infelizmente, parece-me simples – e aqui volto ao princípio: é cagufa e a cagufa é má conselheira (política). Tantos anos andaram a viver do estribilho “o PS é de direita” (esquecendo tudo o que o PS fez pela criação e consolidação do Estado Social em Portugal), que agora ficaram chocados com a evidência de que o PS é capaz de convocar a inteligência nacional para construir uma alternativa real, de esquerda, ao “estado a que isto chegou”, aquela forma de Estado nomeada por Salgueiro Maia na noite de 24 para 25 de Abril de 1974. Em verdade vos digo: a vossa cagufa é um temor eleitoral, percebo, mas não devia justificar tanto primarismo nos ataques ao PS.
O Relatório dos Economistas ao PS é apenas uma etapa deste processo de construção de um programa de governo alternativo. Mas é uma etapa interessante e que potencia muito debate produtivo. Mas, claro, isso só para quem esteja mais interessado na alternativa do que em atacar o PS.