Itália em greve geral contra as reformas laborais de Matteo Renzi.
Não me custa a admitir que um governo de esquerda enfrente greves, porque entendo o uso da greve como um direito dos trabalhadores. Para usar uma expressão antiga, actualmente os governos de esquerda não são “governos de classe” (embora, frequentemente, os governos de direita sejam “governos de classe”, governos dos “de cima”). Mesmo sendo de esquerda, um governo, tendo de governar na procura do interesse comum, pode, num ou noutro momento, desagradar a sectores do mundo do trabalho – e estes respondem, por vezes, com greves. Nem sequer sou tentado por aqueles ataques às greves que as denunciam como causando transtornos e prejuízos – pois, se as greves não causassem transtornos e prejuízos, como poderiam ter efeitos? Também os trabalhadores, perdendo o salário correspondente ao tempo de greve, são penalizados. É claro que uma greve, quando é percepcionada pela generalidade das pessoas como injustificada ou desproporcionada, pode descredibilizar a própria luta – mas cabe aos trabalhadores e suas organizações fazer essas opções, cabendo aos demais cidadãos (e ao Estado) fazer o respectivo juízo.
Contudo, o que se passa em Itália questiona-me. Não é por a actual greve geral reunir centrais sindicais de esquerda, de direita e independentes. Também isso me parece normal - e nem é, por si só, demonstrativo de que lado está a razão. Já me preocupa que o governo de Itália, aparentemente (fiando-me apenas nas notícias), embarque na ideia de resolver o problema do emprego criando mais precariedade. Porque espalhar a precariedade, sendo uma “solução” habitual no instrumentário de uma certa direita, não é nunca uma solução favorável ao trabalho digno – e, a prazo, não contribui para aumentar a qualificação das pessoas, necessária à qualificação das empresas e dos serviços, necessária ao desenvolvimento sustentado. Não conheço adequadamente as reformas que o governo de Itália quer aplicar, mas se elas se inspiram na ideia de responder ao desemprego com precariedade, não posso concordar e só posso achar errada e lamentável essa opção.
No entanto, mais do que tudo isto, preocupa-me o que, aparentemente, é a justificação dada pelos líderes italianos para estas opções. Segundo a notícia, Matteo Renzi está a atacar a concertação social e quer acabar com a tradição de os representantes dos sectores do trabalho serem chamados à discussão das leis. Terá mesmo afirmado: "Se os sindicatos querem negociar, então façam-se eleger para o Parlamento". Francamente, uma tal declaração, parece-me, não apenas absurdamente reaccionária, como francamente contrária às necessidades de renovação da democracia – e, até, prejudicial a uma via de progresso económico aliado ao progresso social.
A história tem demonstrado que a esquerda, quando se agarra dogmaticamente à letra das suas declarações de princípios, arrisca perder a noção da realidade e deixar de cumprir o seu papel na evolução das sociedades. Mas, também, a história tem demonstrado que a esquerda, quando se esquece dos seus valores e princípios mais fundamentais, se torna irrelevante até à auto-anulação. E, também nesse caso, deixa de ser capaz de cumprir o seu papel. O mais triste neste contexto é que nem seria preciso ser muito progressista para perceber o papel da concertação social efectiva e exigente numa sociedade que aspira ao progresso: andam por aí tantos a dizer mal da Alemanha, mas bem poderiam, por exemplo nesta matéria, olhar para esse lado e aprender alguma coisa.
Tudo isto me torna ainda mais convicto de que, por cá, anda bem o PS em apostar em melhor concertação social estratégica, em negociação colectiva sectorial mais efectiva, em compromissos transparentes negociados a prazo de uma década, para que seja mais o que nos une do que o que nos divide.