1. Entre os militantes e simpatizantes do PS, os partidos da “esquerda da esquerda” não são muito populares. É compreensível: muitas vozes do PCP e do BE repetem, sempre que podem, que o PS não é de esquerda, tese na qual se aplicam com este ou aquele critério que serve o seu intento de donos da fronteira e de certificadores da pureza do material, o que, obviamente, desagrada à generalidade dos socialistas. Uma forma particularmente repugnante dessa teoria consiste em dizer que não tem havido diferença assinalável entre os governos da direita e os governos do PS – o que, sendo tão fácil de verificar objectivamente que é falso, obviamente nos incomoda. Se essas pretensões de uma certa esquerda da esquerda fossem só excitações teóricas, talvez elas até nem fossem obstáculo de maior – mas, infelizmente, foi uma coligação negativa, dos partidos da esquerda da esquerda com o PSD e o CDS, que escancarou o caminho ao actual governo. E, isso, muitos portugueses, não apenas socialistas, não esquecem e ainda amargam duramente.
2. Ora, compreendendo eu as razões para essa alergia dos socialistas ao comportamento político da esquerda da esquerda, por qual razão continuo eu a dizer que o PS deve procurar um novo relacionamento político com militantes e simpatizantes – e organizações – de causas que se posicionam tradicionalmente à esquerda do PS? Por várias razões, que, tendo já explicado várias vezes, aqui resumo.
Primeiro, porque (como se afirma na moção de António Costa ao XX Congresso do PS) o facto de, durante tanto tempo na nossa democracia, sectores significativos do eleitorado não se envolverem na partilha das responsabilidades de governar, representa um empobrecimento da democracia. Sem estar agora a querer apurar responsabilidades para esse facto, julgo que seria tempo de concretizar um princípio que também se explicita na referida moção: é na sua pluralidade que o Parlamento representa o país. Quem se preocupa com a saúde da democracia tem de estar interessado em que a representação funcione, quer dizer, não exclua sistematicamente sectores da população. E só um irresponsável (ou alguém demasiado enclausurado na lógica das máquinas político-partidárias) não se preocupará com a necessidade de renovar continuadamente a saúde da democracia.
Segundo, por aquilo que representam os partidos dessa esquerda da esquerda. O PCP continua a dar expressão, quer partidária quer sindical, a sectores importantes da sociedade portuguesa, os quais, mesmo que não sejam já maioritários, representam uma parte das forças com que temos de contar para desenvolver com equidade o nosso país. Uma revalorização do trabalho e das organizações dos trabalhadores na economia e na sociedade deveria contar com os comunistas. Talvez esse processo em certos aspectos até tenha de ser feito apesar dos comunistas, mas, globalmente, seria mais alargado e mais profundo se fosse feito com os comunistas e com os sindicatos. O BE, apesar de se ter rapidamente esclerosado, prometia juntar vozes dispersas tentando a renovação de um certo ideário radical que extravasava em muito os partidos que originariamente se juntaram para criar o Bloco. Embora muitos, por excessiva ortodoxia na análise, desprezem o papel do BE por causa do seu carácter “pequeno-burguês”, ele bem poderia contribuir (ter contribuído) para uma mobilização de uma necessária inteligência alternativa dos desafios que se colocam hoje à democracia.
Terceiro, porque o acantonamento sistemático de uma fatia importante do eleitorado de esquerda fora do campo da governação cria uma vantagem estratégica à direita, facilitando a formação de governos com base no PSD. O PS, como todos os grandes partidos da família social-democrata, socialista e trabalhista, é um partido social e ideologicamente plural, onde coexistem, em equilíbrio dinâmico, abordagens diferentes a muitos problemas cruciais da governação. O facto de haver sempre aliados disponíveis à direita e nunca haver aliados disponíveis à esquerda, que é o que temos tido, prejudica a mobilização de forças interessadas nas bandeiras da igualdade e da equidade, por exemplo em áreas pesadas da governação que tocam as opções de política económica e fiscal. Desse modo, o facto de PCP e BE insistirem num cordão sanitário contra o PS, protege o “mercado eleitoral” desses partidos, mas em prejuízo da possibilidade de efectivar políticas mais próximas dos seus programas – e para as quais o PS também precisa reforçar o suporte social.
Ora, num tempo como o que atravessamos em Portugal e na Europa, que é um tempo de urgência, todos estes factores deveriam clamar por outro tipo de abertura nas relações entre o PS e a esquerda da esquerda. Isso deveria facilitar a construção de políticas menos condicionadas pelo pensamento único do austeritarismo e mais capazes de resistir ao domínio dos mercados e dos “poderes fácticos” sobre a cidadania. Ao mesmo tempo, numa perspectiva história, seria tempo de, quarenta anos depois, saldar as contas de uma inimizade política forjada nos confrontos do PREC, que, julgo, já não são os confrontos relevantes para os dias de hoje. Mesmo que alguns não tenham feito o seu percurso.
3. Não ignoro que algumas das bandeiras políticas da esquerda da esquerda tornam extremamente difícil que o PS entre numa convergência que faça sentido em termos de governação. A nossa pertença à União Europeia é, talvez, o caso mais difícil. O PS, que tem sido “o partido da Europa”, não alinha em soberanismos, nem em qualquer forma de nacionalismo mais ou menos disfarçado, porque o PS sabe que qualquer opção nacional que tornasse Portugal mais periférico seria paga muito duramente pelos portugueses. O PS, sendo crítico da orientação que tem sido seguida pela UE, não confunde os planos: tal como não pensamos abandonar Portugal quando é governado por maus governos de direita, também não pensamos abandonar a UE por ela ser governada pela maioria de direita que tem sido sufragada sucessivamente pelos europeus. O discurso antieuropeu é fácil, mas não leva a nenhuma solução. Sair da UE só poderia deixar-nos mais abandonados na globalização feroz que ainda pesa. O melhor para Portugal é ser uma voz activa na Europa e lutar com determinação pelos nossos direitos na comunidade – e, para isso, o PS não pode governar com qualquer plataforma antieuropeia. Quer isto dizer que o PS deve desistir deste debate com a esquerda da esquerda? A meu ver, não. Quer, antes, dizer que o PS tem de fazer o combate político de mostrar que temos razão nesse ponto – e que não têm razão os que nos querem empurrar para aventuras eurocépticas. É para isso que serve a política: para dar combate pelas nossas ideias e valores, deixando o povo decidir.
4. Tão forte tem sido a resistência do PCP e do BE a qualquer relação normal com o PS que, hoje, insistir nesta questão parece “pregar no deserto”. Tanto assim é que resulta mais interessante falar das movimentações que procuram novos caminhos no espaço da esquerda da esquerda, nomeadamente do processo que agora envolve o LIVRE, a Associação Fórum Manifesto e a Renovação Comunista, com vista a uma candidatura nas próximas legislativas. Pelo meu lado, na medida em que evito dar palpites sobre o que se passa nas outras casas políticas, não tenho pronunciamentos a fazer sobre o que possa resultar, em termos de propostas, desse esforço. Mas, isso sim, espero que esse processo tenha efeitos sobre o conjunto da esquerda. Quero dizer, para ser claro: por muito valioso que seja o processo que envolve aquelas três forças políticas (e não duvido de que possa ser de elevado valor acrescentado), o mais interessante que daí poderia resultar seria, não um método extraordinário para salvar o mundo (há muito que deixei de acreditar em milagres), mas um desbloqueamento do sistema político. Esse suplemento de democracia para a nossa república poderia vir de uma nova situação em que todos os partidos lutassem para ter uma oportunidade de concretizar as suas propostas, governando, em lutar de haver partidos que, sistematicamente, apenas querem ser oposição e preservar o seu cantinho de influência. Infelizmente, a esquerda tem sofrido dessa falta de ambição. Mas não só a esquerda.
5. Na verdade, não é só a esquerda que está precisada de outra cultura de responsabilidade política, onde se esqueçam um pouco as velhas tácticas e se assuma de peito aberto o valor da diversidade democrática. Também à direita se nota alguma esclerose, com muita gente que range os dentes, mas poucos que arrisquem assumir posições discordantes dos senhores do momento. Onde estão os democratas-cristãos que foram enterrados na sombra do populismo portista? Onde estão os social-democratas que se dizia ainda sobreviverem no PSD? Na verdade, com a minha abordagem a uma “democracia com todos”, onde todos sejam candidatos a concretizar as suas ideias pelo bem comum, sem que a ortodoxia costumeira alinhe as tropas num modo demasiado fixo que não serve as novas necessidades democráticas, não penso apenas na esquerda. Embora, naturalmente, me preocupe mais com os meus do que com os do outro lado da rua, por assim dizer. Mas, finalmente, o que estou é a pensar que a democracia não pode fechar-se nas mãos de cada vez menos, sob pena de não resistir às tormentas do tempo presente.
6. Dito isto, e porque, afinal, o meu ponto de vista particular é o de um membro do Partido Socialista, tenha de reafirmar: o PS é uma grande casa plural e só com essa pluralidade pode ter um papel relevante na democracia portuguesa; nunca me expulsaram por defender aquilo que hoje aqui escrevo; também não vai o PS expulsar, nem de qualquer outro modo tentar apoucar, aqueles de entre nós que continuam fechados no conceito obsoleto de “arco da governação”. E é assim, plural, que tem o PS de continuar a ser. Mas isso não pode impedir o PS de fazer o trabalho que tem a fazer.
7. Julgo que, neste contexto, vale a pena citar um parágrafo da moção que António Costa apresenta ao XX Congresso Nacional do PS:
«É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país. Nenhum conceito que vise limitar o alcance da representação democrática, como o conceito de “arco da governação”, pode servir para excluir sistematicamente certos partidos das soluções de governo. Ao mesmo tempo, o facto de sectores significativos do eleitorado não se envolverem na partilha das responsabilidades de governar, representa um empobrecimento da democracia. O momento do país exige da representação democrática, na pluralidade dos seus atores, uma capacidade para compromissos alargados, transparentes e assumidos – até para estimular e acompanhar o indispensável compromisso social.»
E, tudo isto, por quê? Porque há muito a fazer, depois do desastre social, institucional e político criado neste país por esta maioria. Porque à precariedade e à incerteza permanentes, temos de responder com confiança e mobilização. E, para isso, é preciso mudar de actores, de estratégia, de políticas.