Não gosto de Putin, daquilo que ele abriga, da sua concepção de democracia. Para ele, a democracia é um formalismo para inglês ver, compatível com todos os desmandos, com todos os truques que acabam por levar à prisão ou à morte os que (jornalistas, empresários, artistas, políticos) não ecoam as suas virtudes de czar, um jogo de espertezas exemplificadas com a troca de lugares entre governo e presidência com Medvedev. Putin trata de reciclar o sonho da grande Rússia, que dispensa delicadezas democráticas e se alimenta mais de qualquer tipo de grandeza que esteja disponível para compor imaginários: o czarismo ou a União Soviética, para ele vale o mesmo, desde que justifique o apelo da história (a história é sempre a imaginada, não aquilo que aconteceu, porque já ninguém vive no que aconteceu, todos vivemos naquilo que queremos crer que aconteceu).
Não gostava do anterior governo da Ucrânia, da forma como mantinha o poder pela rédea, à custa da manipulação do judiciário e do penitenciário para manter longe a oposição; não gostava da sua subserviência a Moscovo, da sua corrupção em segunda mão. E, naturalmente, não gostava do seu desdém pela Europa, mas isto são ciúmes de europeu, não interessa.
Não gosto do poder que resultou de mais uma “revolução” ucraniana, da “democracia directa” com “eleições na praça”, alimentada pela força e pelo medo imposto por grupos extremistas; não gosto do papel aí desempenhado por nacionalistas radicais e simpatizantes de alguma forma de fascismo; não gosto de um poder “novo” que, tudo parece indicar, está dependente de forças que serão tão ou mais opressoras do que os poderes anteriores.
Não gosto de perseguições “étnicas”, não gosto de invasões de países soberanos.
Em suma, não gosto de nada do que se passa para aqueles lados.
Nem sequer gosto da forma atabalhoada como “o Ocidente”, União Europeia e Estados Unidos, se meteram no assunto, incapazes de reconhecer (ou agir como se reconhecessem) a complexidade dos interesses em presença.
Contudo, infelizmente, as potências ocidentais tendem (cada vez mais, a cada crise que passa) a comportar-se como crianças irresponsáveis, guiadas pelo apetite do momento (neste caso, quer dizer “guiadas pelos clamores das opiniões publicadas” e pelo cálculo de interesses próprios mais ou menos imediatistas). De repente descobre-se que o regime X está podre. Quer dizer, o regime pode até ser o mesmo há décadas, mas, de repente, há uma revolta e, num ápice, os apetites democráticos aguçam-se e o ditador Y torna-se odioso da noite para o dia. Quem quer que esteja a atirar pedras na rua contra tamanha abominação – é bom, e revolucionário, e prometedor e carece do apoio imediato de todo o universo e arredores. Não interessa que as pedras contra o ditador sejam atiradas em nome de outra ditadura, de outro totalitarismo, de outros negócios escuros. De momento, chama-se-lhe revolução e gritamos pela sua vitória. Em regra, passados meses esquecemos o assunto e o povo em causa que aguente as consequências. Nos casos mais complicados, passados meses estamos a fazer contas de cabeça à evidência de que a situação do povo em causa não melhorou ou até se tornou mais complicada.
Podia esperar-se que os governos das potências e as organizações internacionais fossem menos ingénuas que a “voz do povo”. Podia esperar-se que houvesse, em cada crise, um esforço para atender aos diversos e contraditórios interesses em presença. Um esforço para perceber que as diferentes forças representam, em cada caso, pessoas reais e tragédias (presentes ou anunciadas) que não são menos tragédias por serem menos “populares” nos media ocidentais. Queríamos que as organizações internacionais tratassem mais do método para encontrar saídas organizadas (permitindo a mínima desgraça possível) do que do método para castigar o mais mediaticamente possível o “culpado” designado pelos gritos dos comentadores. Quer dizer: esperávamos que houvesse, ao nível internacional, alguma autonomia das instituições face ao clamor da rua. Mas não: o método do barulho, que já rege a política em muitos dos países “democráticos e ocidentais”, passou a reger também as relações internacionais. E tudo segue para tragédia, uma “revolução” a seguir a outra.
O povo da Ucrânia tem direito a uma melhor democracia e a uma vida melhor. Mas os russos que vivem na Ucrânia têm direito, também, a não serem discriminados (nem negativa, nem positivamente). E a Rússia tem interesses como potência que, até certo ponto, são legítimos e não podem ser tratados com desdém. Não porque gostemos dos bonitos olhos de Putin, mas porque a realidade é muito dura e não se faz só de palavras. Para perceber isso – para que as instituições com responsabilidade internacionais percebessem isso, e aqui penso especialmente na União Europeia, seria necessário que os líderes internacionais não tivessem sido exportados do refugo das políticas nacionais, onde se habituaram a trabalhar para a imagem imediata e não para a vida boa dos povos.