Em Dezembro passado, numa mensagem subscrita por Luis Miguel Cintra, a companhia Teatro da Cornucópia anuncia um novo projecto: curta de verbas para, neste ano de 2014, fazer alguma coisa além das programadas co-produções com os Teatros Nacionais de S. João e D. Maria II e com o Teatro Municipal S. Luiz, vai apelar a uma fórmula em desuso. A fórmula é designada, com uma terminologia “comercial” que aparenta fazer jus aos nossos dias, “uma troca de serviços”. A companhia, sem verba para contratar profissionais, oferece a não profissionais de teatro um estágio e a possibilidade de actuarem como actores “em moldes profissionais” no Teatro do Bairro Alto, em troca de trabalho não remunerado como actores. A troca permitiria levar à cena, durante duas semanas e meia, um espectáculo encenado por Cintra. Na mensagem inicial já estava claro o objecto de trabalho: um texto que resulta, como já muitas vezes aconteceu na Cornucópia, de uma construção a partir de vários textos. Neste caso, textos de juventude de Federico Garcia Lorca, escritos entre os seus 21 e 24 anos e publicados apenas em 1994, tecidos em torno da peça “Ilusão”, que dará título ao espectáculo.
A mensagem-anúncio pedia entre 12 e 30 pessoas. Cintra chegou a confessar que lhes passou pela cabeça: “e se não aparece ninguém?”. O problema real, finalmente, não foi esse: mostraram o seu interesse em participar cerca de 160 pessoas. O encenador teve, claro, de seleccionar – mas, ao mesmo tempo, em lugar de apenas cortar a oferta à medida da procura (era uma “troca de serviços”, dizia ele…), admitiu à experiência muito mais gente do que estava nos planos iniciais (umas 60 pessoas, quase dos 7 aos 77, como no Tintin) e ampliou o texto, usando mais material do próprio Lorca, de forma que só deu mais respiração à “ilusão” e tornou o espectáculo numa “grande produção” num certo sentido: não é habitual ver, naquele palco, tanta gente numa só apresentação.
Sobre o espectáculo propriamente dito falarei proximamente, como costumo (quando tenho tempo) acerca dos espectáculos da Cornucópia. Entretanto, cabe sublinhar que esta iniciativa é uma forma de resposta à crise, aos cortes, à depressão colectiva, ao miserabilismo, a um certo cinismo em que por vezes nos refugiamos quando o ar se torna pesado. Não é um sermão sobre a crise, é uma forma de viver sem deixar que a crise faça de nós tudo o que lhe apetece.
O anúncio deste projecto assumia sem rebuços a consciência de ele constituir “um enorme risco”. Note-se, apenas por exemplo, que as expectativas de jovens estudantes de teatro (habituados, com razão, a verem as “borlas” como formas de exploração) são de todo diferentes de gente mais velha que não procura uma nova carreira, mas “apenas” mais conhecimento, mais cultura, mais experiência: gente que procura que a diversidade do mundo lhe passe pela carne. Ver teatro a crescer a partir de palavras escritas há tempo, escoradas no imaginário e na cultura do encenador Cintra e da cenarista e figurinista Cristina Reis. Correr este tipo de risco é uma forma de dar a cara: Luis Miguel Cintra fará parte dos intérpretes neste espectáculo, o que julgo não esteve previsto desde sempre, valorizando uma espécie de “companhia instantânea” que, sendo um tanto virtual, não deixa de ser muito concreta agora que está quase a entrar na sua fase de borboleta. Sairá do casulo para estrear a 20 de Fevereiro e ficará em cena até 9 de Março.
Mantenham-se atentos: aqui continuarei a falar deste projecto.