Somos muitos. Não, não é apenas que todos, juntos, sejamos muitos. É que cada um de nós é muitos. Eu sou muitos, tu és muitos, ele é muitos. A unicidade do “eu” é uma invenção, um mito, um engano que parece cativante, uma reconstrução intelectual. Essa multiplicidade do “eu”, as várias camadas de cada ser que se creia individual, permanente, uno: aí habita a crueza (a beleza?) da realidade. Talvez um dos mistérios do catolicismo que – paradoxalmente – faça mais sentido seja aquela ideia, bizarra para todos os não crentes, de que Deus é uno e trino ao mesmo tempo. Eu, que me conto entre os não aderentes, não vejo nada de extraordinário nesse mistério: se também nós somos um e muitos, sempre e simultaneamente e mutavelmente…
É nesse cada um sermos muitos que reside uma das sementes desta “Ilusão”, o novo espectáculo do Teatro da Cornucópia, encenado por Luis Miguel Cintra, que faz um texto a partir de vários textos do jovem Federico Garcia Lorca. Duas irmãs, num interior burguês, têm memórias, sonhos, medos – e nós vemos essas suas ilusões, esses recantos do seu interior, tomarem forma a três dimensões espaciais e numa linha de tempo que flui ali à nossa frente. É importante perceber que, como diz África logo no início, “Este palco é o teatro maravilhoso do nosso mundo interior”. E, claro, percebido isso, não nos espantarmos por também nós habitarmos o mundo interior de Luísa e Mercedes, as tais duas irmãs, que, embora as possamos ver em vários (seis) corpos, podem afinal ser só uma: verdadeiramente, não há medos nem aventuras interiores que sejam tão originais que não estejam sempre a ser vividas por outras pessoas que nem conhecemos, ou tenham sido ou venham a ser vividas por outras que já morreram ou ainda não nasceram. Se não compreendermos isso, pensando que são só nossos os nossos sonhos, estamos tão nus e tão frios e tão sós no mundo.
Cintra, ao montar os textos de Lorca, acrescentou uma frase de Tchekov (A Gaivota): “Estou de luto pela vida, sou infeliz”. E, aí, podendo parecer que nos fechava no nosso eu-ser-muitos, acaba por nos abrir ao nós-sermos-muitos aqui e agora, ligando-nos a uma rede complexa de planos que fazem a presente situação da nossa comunidade. No meio da proliferação de “arte sobre a crise”, que por aí anda (aos tropeções, por vezes, como escrevi a propósito de Coriolano no TNDMII: Coriolano: Shakespeare e a nossa crise), “Ilusão” é uma outra voz: uma voz que não nos diz como pensarmos, nem esclarece qual a nossa posição, nem faz por nós o trabalho de mostrar onde está a difícil fronteira entre o claro e o escuro. Há um “pormenor” da adaptação que Cintra fez aos textos de Lorca que exemplifica essa recusa da fala imediatista, que podia até tornar mais “popular” o espectáculo, mas não cabe neste palco. Na cena das “sombras” (almas), tirada de um poema em forma de peça ou de uma peça em linguagem poética, a certa altura há uma alma que cai à Terra para encarnar. Na versão original, em castelhano, essa alma é identificada: é a alma de um ministro que cai na Andaluzia. Hoje, em Portugal, isso daria uma vontade de rir espontânea ao espectador da Cornucópia (podemos vingar-nos rindo?!). Claro que Cintra pode ter evitado este excerto só porque não acrescenta nada e localiza demasiado o texto, mas, de qualquer modo, esta excisão poupa-nos às contingências sem grande valor e é assim todo o texto: descobrir o valor do que está fora da moda e preferir o terreno das alegrias com rumo.
O mundo é polifónico. E esta “Ilusão” também. Há aqui espaço (cenas) para a esperança e a doçura e a alegria talvez ingénua e talvez infantil; para a desordeira natureza (a fisicalidade dos corpos, os instintos) e para a natureza que simplesmente é, sem bem nem mal; para a morte e para esse engano de culpar a morte quando a morte ajuda a medir a vida; para a esperança ferida; para o medo; para o tédio da banalidade da vida; para a revolta. Há uma personagem (o lenhador Antão) que diz: “estamos num momento em que as pessoas não sonham, e se sonham não acreditam no que sonharam”. Desalento? Nem pensar. No texto que LMC escreve sempre sobre cada espectáculo, sempre intitulado “Este Espectáculo”, o encenador, desta feita, confessa-se longamente. E uma das coisas que confessa é esta: “Este espectáculo nasceu sobretudo de um desejo de alegria”. Já escrevi, há anos, que não vou à Cornucópia para me distrair, ou para ficar alegre – e justificava-me dizendo que vou ao Teatro do Bairro Alto para participar do teatro mais depuradamente metafísico que há em Portugal. Para ver teatro filosófico. Suspeito que Luis Miguel Cintra, se lesse alguma dessas críticas, não gostaria. Paciência. Mas o que mais importa agora é que Cintra me obrigou a aprender que não há nada de menos metafísico na alegria; que não há nada de menos espiritual na alegria – e que eu não compreendia isso por erro meu. Verei se comecei a compreender...
A dialéctica entre a dureza do frio e a beleza mágica da neve (mas não é fria a neve?) é a dialéctica dos vários aspectos que qualquer face do mundo sempre nos desafia a experienciar: o positivo e o negativo não são dados brutos que se nos impõem, sendo antes uma relação entre coisas e pessoas, entre múltiplas coisas e muitas pessoas, onde a nossa mão pode modular o valor – porque o valor não é “um facto da natureza”, mas uma relação em que investimos a nossa liberdade e o nosso compromisso. Há quem transforme o frio em neve – e desses precisamos para não sermos devorados pelos que transformam a neve em frio.
Postas as coisas como as tenho estado a pôr, pode pensar-se que este espectáculo só olha para o interior das pessoas. Talvez um interior revoltado, mas o interior. Seria como estarmos na posição do Príncipe, que diz a páginas tantas: “Vi todas as cabeças abertas como romãs e cabeças com os cérebros murchos como as flores debaixo de um sol de oiro.” Será que esta “Ilusão” é apenas um olhar para dentro, para dentro das cabeças? De modo nenhum. Esta “Ilusão” é também profundamente política. O candeeiro de petróleo que aparece no palco (e dá a cara pelo espectáculo, no cartaz) é o mesmo candeeiro de Guernica. Isso faz a passagem da temática individual para a temática colectiva, para a guerra, o sofrimento, a política e os que lhe fogem de forma aberta (o artista que se recusa ao empenhamento) ou disfarçada (por exemplo em nome de “valores mais altos”, que podem dar o pretexto para a hipocrisia), para a contestação possível e para os que se lhe referem com o desprezo dos idealistas um pouco distraídos. Onde tudo isto aparece da forma mais directa é na cena do teatro dos animais, nesse expediente tão conhecido da literatura que consiste em fazer dos “irracionais” o nosso espelho. É também aí onde primeiro aparece o encenador dentro da encenação.
Como muitas vezes acontece, tanto no teatro como na vida cá fora, nesta "Ilusão" há falas sérias ditas a brincar e folguedos (ou desculpas esfarrapadas) atiradas com uma deslocada pretensão de seriedade (habituem-se, porque o mundo não vos é dado com os sentidos todos em ordem e "fazer um mundo" é árduo). "O mundo é um brinquedo sem dono" (como pretende a sombra de Sócrates) ou é "a caixa dos brinquedos" dos deuses (ou de Deus)? Ou somos, humanos, brinquedos de outros humanos, nem mais nem menos? Esta "Ilusão" não responde. Abre, contudo, a cada espectador, uma porta. A sua porta. A sua possibilidade. Ou será mesmo uma responsabilidade?
Esta “Ilusão”, um projecto especial da companhia Teatro da Cornucópia acerca do qual já escrevi aqui (Uma “Ilusão” na Cornucópia), dá-nos a ver o que anda dentro de nós. Nem sempre é bonito de ver aquilo que nos passa pela cabeça: por vezes espreitamos à janela e fugimos, como fazem algumas das mulheres desta peça em certos momentos, olhando para o que fantasiam. Mas temos aqui uma oportunidade de o fazer sem que nos queiram dar lições. Esta “Ilusão” não é um sermão sobre a crise, é uma forma de viver sem deixar que a crise faça de nós tudo o que lhe apetece.
Há quem proteste contra os sonhos, que vêm meter-se na nossa vida e complicar tudo. Como diz o Gigante: “Isto é intolerável! Eu sou um homem honrado e é terrível para mim pensar que eu, que nunca me meti em casa de ninguém para não incomodar, agora venham esses sonhos fugitivos brincar para a minha chaminé. Os sonhos bem podiam ter ficado fechados lá nas suas covazinhas, que ninguém os chamou.” E, de facto, os sonhos podem acabar mal. LMC, num tom de lamento, diz ser este “um espectáculo ainda do século XX”. Mas, por quê lamentar-se disso: são do século XX os sonhos que já sabemos como acabam mal, são do século XX os sonhos que nos traíram e que levaram a nossa menina e a devolveram morta. Se tudo o que está neste espectáculo podia habitar a nossa imaginação, por que evitar que estejam neste espectáculo os nossos sonhos nados, criados e traídos no século passado? Enquanto magicamos os novos sonhos, quem sabe.
Contudo, esta “Ilusão” dá-nos a oportunidade de sonhar de mãos dadas e sem opressões. Lorca queria ultrapassar o teatro burguês. Lorca podia não ser grande a escrever teatro, mas deu material para Cintra, afinal, deixar de se preocupar com o teatro burguês de uma maneira lindíssima: com este teatro poético. Um teatro poético em tudo, incluindo na forma de pecar, um pecado para o qual atraiu cerca de 60 não profissionais: «O nosso pecado para a política que nos oprime é justamente aquilo que levantámos como bandeira: existir sem fins “lucrativos”.» Mas, atenção: suspeito que, para Cintra, “a política que nos oprime” não é de hoje, sendo, antes, em grande medida, a própria essência da política. Nisso talvez discordemos. Talvez por eu ser, pecaminosamente, mais utópico do que o encenador. Afinal, uma coisa muito "à século XX".
(Estreia: quinta-feira, 20 de Fevereiro. Fica em cena até 9 de Março. Como é habitual nos meus comentários sobre teatro, mas desta vez por razões mais específicas e pessoais, não entro no plano da apreciação da interpretação. Mais informação no sítio da companhia: Teatro da Cornucópia.)