30.10.13

o carrilhismo.


É justa a indignação que por aí vai com o recente comportamento de Manuel Maria Carrilho em questões familiares. A violência doméstica, do homem contra a mulher, da mulher contra o homem, da mulher contra a mulher, do homem contra o homem, dos filhos contra os pais, dos pais contra os filhos, em qualquer formato ou modalidade, por palavras ou actos, é uma infâmia. É levar a exploração violenta para o âmago do sítio onde nos queremos mais abrigados. É o cúmulo da incivilidade, é a selva em acto. Sobre isso, que a justiça consiga fazer o seu trabalho exemplarmente é o que desejo, sem antecipar por minha recriação qualquer condenação que não me compete antes de apurados os factos e as responsabilidades. Sim, porque deverá estar em causa muito mais do que as palavras inaceitáveis de um tipo que tem no CV "professor universitário" e "ministro".
Mas vale a pena pensar no atraso com que chega este escândalo à comoção da opinião pública. A verdade é que Carrilho anda há muito tempo a espalhar veneno e lixo neste país, tratando a honra dos outros como mero combustível dos seus interesses de imagem e de condição. Muitos foram os que toleraram esse comportamento e acolheram ao palácio da publicidade as manobras de Carrilho. Quando deu jeito, os contorcionismos de Carrilho foram admitidos como coisa normal. Por quê? Porque, em geral, os alvos das suas picadas eram políticos. E, claro, cuspir em políticos é, para muitos, aceitável. Agora, depois de terem alimentado o ego da víbora, estremeceis? Que lata, meus senhores.
Carrilho já era um cretino quando só conspurcava os políticos. Mas nessa altura o povão achava graça. Agora perceberam o que a casa gasta. Já não era sem tempo. A ver se, de futuro, topam a maior distância a pinta das aves de rapina da decência pública. É que isto não é coisa de revistas cor-de-rosa, nem assunto de saias: é uma questão de higiene pública.

25.10.13

O meu socratismo.


As palavras e as coisas /
 « Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.» (Brecht)


1. Se há coisa que me dá volta às tripas é ser sugado para uma “bolha comunicacional”. Explico-me. O mais recente “regresso de Sócrates”, que no plano da objectividade imediata não passa de uma “photo opportunity” a propósito do lançamento de um livro, transforma-se em mais uma comoção nacional, onde o próprio colabora ao lado dos que juraram metê-lo no inferno. Tento não entrar nesse filme. Mas perco: acabo atraído para a bolha e irritado por isso, mas compelido a reflectir sobre a pedra que rola encosta abaixo e que não se detém por causa da nossa irritação. Vou, então, fazer, pelo menos para mim, o meu ponto da situação acerca do meu “socratismo”: não por causa do passado, mas por causa do futuro.

2. É sabido que defendi, por vezes com unhas e dentes, os governos Sócrates em alguns dos momentos de maior contestação. Também coloquei reservas de fundo quanto ao método seguido em grandes dossiês (em geral, motivado pela minha ideia persistente de que os poderes devem levar a sério aquele trabalho de concertação que coloca carne nos ossos da democracia) e nunca me coibi de expressar discordância quando assim o entendi. Mas, globalmente, é justo classificar-me, nesse período, como um “socrático” voluntário. (Continuam disponíveis no meu blogue todas as “provas” acerca desse período.) Os poucos que conhecem um pouco mais do meu passado político (um percurso, mais do que discreto, apagado, apesar de ter começado quase há 40 anos), teriam razões para se espantarem com esse meu posicionamento. Então, por quê este socratismo? (Seria mais próprio colocar aspas, “socratismo”, porque não sigo pessoas, mas causas; mas não vou dourar a pílula.)

3. O meu socratismo tem, basicamente, duas razões.
Primeira: entendi que Sócrates tinha uma visão para o desenvolvimento do país que era um empurrão importante para deixarmos o miserabilismo nacional e visarmos mais alto. Não vou entrar nos pormenores, mas em domínios como a educação ou a saúde, a energia ou a ciência, para dar apenas exemplos, o futuro fará o seu juízo. Um país habituado ao queixume precisava de um choque desses, mesmo que o desenho concreto das políticas pudesse ter – tivesse, claro – defeitos; mesmo que o chavão do “choque tecnológico” nunca me tenha convencido (como escrevi em tempo) por deixar demasiado na sombra o importante “choque democrático” que era indispensável para tornar o projecto viável.
A segunda razão para me ter envolvido no combate cívico do lado do socratismo foi a campanha de ódio desencadeada contra Sócrates por uma “coligação” formidável que não olhou a meios para atacar a pessoa do então primeiro-ministro. Não vale a pena voltar a esmiuçar o processo, mas nunca, desde o 25 de Abril, tanta calúnia visou pessoalmente um político, de forma tão concertada, tão persistente, tão agressiva, tão sem escrúpulos, como aconteceu contra Sócrates. Esse facto tornou-se, para mim, uma razão em si mesma para o meu socratismo: a batalha cívica contra a possibilidade de uma campanha de ódio pessoal decidir um processo político. Foi essa política do ódio que, finalmente, deu cobertura à coligação negativa, tornando aceitável que a direita e a esquerda da esquerda parlamentar se unissem para mostrar a Sócrates a porta de saída.

4. No plano estritamente político, e com consequências para o que se passa hoje, o meu socratismo teve também a ver com a resposta nacional à crise. A crise, que começou por ser um terramoto criado pelas aldrabices do sistema financeiro, foi depois transformada em crise das dívidas soberanas, tendo a factura acabado por ser entregue a alguns povos, embrulhada numa teoria austeritária que serve certos interesses bem embebidos no poder real do mundo globalizado de hoje. Sem vir agora ao caso uma análise detalhada aos méritos e às cegueiras de Sócrates nesse processo, há três factores que relevo.
Primeiro, a direita, a começar pelo PSD de Manuela Ferreira Leite, começou por dizer que o cancro era uma pequena constipação. A política do ódio serviu, e ainda serve hoje, para esconder a enorme responsabilidade dessa tese absurda no inquinar do debate acerca da resposta que teríamos de dar à crise. Há por aí tantos arqueólogos do pecado original da nossa situação actual, mas quase todos fazem por esconder debaixo do tapete a irresponsabilidade que, por motivos eleitorais, destruiu no ovo a possibilidade de uma verdadeira resposta nacional a essa emergência, o que ainda pagamos com língua de palmo.
Em segundo lugar, a direita, desta vez pela voz de Passos Coelho, alcandorou-se ao poder montada na mentira de que a austeridade não era necessária e de que, desde que se corresse com Sócrates, tudo se resolveria com água de malvas e massagens suaves.
Em terceiro lugar, a ilusão de que Portugal pode, sozinho, fazer o suficiente para sair da crise, foi a tese que deu sustento quer à mentira de Ferreira Leite quer à mentira de Passos Coelho. Escondendo que o essencial não dependia de nós (para justificar o fogo de barragem sobre Sócrates), escondendo que a afinação da imagem de Portugal no plano internacional era difícil e exigia um enorme esforço de concertação interna entre todas as forças políticas e sociais (para justificar o isolamento de Sócrates e uma oportunas eleições para “ir ao pote”) e não hesitando em provocar uma crise política que nos lançou definitivamente no caminho do “resgate”, a direita, em momentos essenciais coadjuvada pela esquerda da esquerda, colocou o seu ódio a Sócrates acima dos interesses de Portugal.
As consequências desse comportamento irresponsável continuamos a sofrê-las hoje, porque é o mesmo erro que continua a poluir as relações entre a maioria e a oposição no que diz respeito à necessidade, ao conteúdo e ao formato de um compromisso nacional amplo (e não fechado a um clube, como imagina Cavaco) que precisamos para tentar encontrar uma via de saída para a crise. Se a vida não teria sido fácil com a aprovação do PEC IV, o seu chumbo marcou o momento em que as oposições, acicatadas por Cavaco Silva, borraram toda a pintura de um diálogo nacional que teria sido possível e necessário para não estarmos a sofrer o que estamos a sofrer. Por muitos erros que Sócrates tenha cometido nesse processo, como todos os líderes mundiais cometeram por não haver experiência de tal cenário, a irresponsabilidade dos que agiram politicamente por ódio a Sócrates e por mero oportunismo eleitoral é incomensuravelmente mais censurável.

5. Até aqui tentei explicar donde vem, em retrospectiva, o meu socratismo. É, digamos assim, um socratismo comparativo: com todos os seus erros e defeitos, Sócrates teria que fazer muito mais patifarias para se aproximar do nível de culpa política que têm a direita e, até certo ponto a esquerda da esquerda, no estado a que isto chegou. Quanto ao seu feitio irascível, que muitos invocam para explicar desentendimentos com este e aquele, os dados que tenho aconselham-me a acreditar nisso – mas isso para mim é irrelevante: se alguém tomou uma decisão política errada por atritos pessoais com outro agente político, isso só demonstra que devia evitar a política e dedicar-se à pesca. Tomar decisões e atitudes políticas de enormes consequências para o país por despeito pessoal é uma indignidade. Uma indignidade que, aliás, julgo ter sido praticada, em primeira instância, pelo próprio PR, o vingativo e umbiguista Cavaco Silva.
E, agora, que é feito do meu socratismo face aos últimos acontecimentos? Tentarei responder a essa questão em dois passos: primeiro, a partir da “bolha comunicacional” dos últimos dias; segundo, na perspectiva do futuro da nossa “casa comum”.

6. Quanto ao que a “bolha comunicacional” dos últimos dias releva para o meu socratismo: vejamos.
Em primeiro lugar, para enquadrar: considero abjecta a aspiração, assumida mais ou menos publicamente por muitos, de calar Sócrates. Num país onde há uma promiscuidade generalizada entre comentário político e política, um coro de virgens tentou impugnar e sonhou com a censura de um espaço de comentário político de Sócrates na TV pública. Esse incómodo, além de ser a melhor prova de que Sócrates tem sobre o país um ponto de vista que pode manter aberto um contraditório útil, mostra que o vale-tudo é a estratégia geral da política do ódio contra o “animal feroz”. A ideia era: Seguro toma conta do PS (impede o PS de defender qualquer aspecto da governação de Sócrates) e, fechando qualquer outra via comunicacional, consegue-se impedir o anterior PM de dar o seu testemunho sobre a história recente. O aspecto mais troglodita deste plano de batalha é a risota sobre o termo “narrativa” usado pelo Sócrates regressado: finos intelectuais da nossa praça repetem acefalamente que “narrativa” é uma historieta, uma mentira, uma fábula – não sabendo, ou fazendo de conta que não sabem, há quantas décadas (pelo menos desde Lyotard e as “grandes narrativas”) que “narrativa” é praticamente um termo técnico para discutir a relação entre diferentes planos de interpretação e acção no mundo. Esta exploração da ignorância, da ignorância atrevida, se se mostrar pagante neste caso poderá, de futuro, ser receita para muitas outras guerrilhas. Por isso temos de a contrariar.
Em segundo lugar, Sócrates chocou os bem-pensantes da aldeia por esse atrevimento de escrever um livro de teoria política. Ou de filosofia, não interessa muito para o caso, tirando que esse gozo com a “filosofia” engrossa por muitos desses intelectuais julgarem secretamente que ser filósofo é ou uma inutilidade que devia ser proibida (como o outro que acha irrelevante o estudo da história nas faculdades) ou um estatuto divino reservado a autores mortos há mais de duzentos anos. Seja Vasco Pulido Valente, que volta e meia publica provas da sua ignorância enciclopédica, mas não se coíbe de falar do “livro” de Sócrates (entre aspas); seja António Lobo Xavier, que costuma ser (ou estar) mais sóbrio, mas vai reconhecendo que não leu o livro de Sócrates enquanto opina que não é possível que contenha qualquer teoria sobre a tortura, porque o autor é um recém-chegado à "filosofia". O mesmo Lobo fala de Science Po como se fosse uma escolinha de bairro, quando na verdade é uma escola de renome. A arrogância sem limites já não é política nem comentário: é, apenas, a confissão do nível a que desceram estes notários do ódio mais rentável de que há memória em Portugal. Repito: esta exploração da ignorância, da ignorância atrevida, se se mostrar pagante neste caso poderá, de futuro, ser receita para muitas outras guerrilhas. Por isso temos de a contrariar.
Em terceiro lugar, a entrevista de Sócrates ao Expresso, uma entrevista com muita substância política, foi digerida, tanto pelos que a leram como pelos que a não leram, pelo lado da linguagem (ligeira, descuidada ou desbragada, conforme as leituras) usada pelo entrevistado e preservada pela entrevistadora. Neste ponto digo, à cabeça, que Sócrates usa nessa circunstância um tipo de linguagem que eu não usaria numa entrevista ou em qualquer forma de comunicação pública. Além de, pessoalmente, prezar algum cuidado na expressão, julgo que uma figura pública deve dizer tudo o que entende dever ser dito, mas evitando sobrepor a forma ao conteúdo (é possível que Sócrates tenha usado aquela linguagem de forma intencional para projectar uma certa imagem) e mantendo-se num registo que traduza uma civilidade de princípio mesmo face aos mais detestados adversários. Não é preciso ser político (ou ex-) para ter esse dever: mesmo como autor de um livro sério, julgo que lhe era exigível outro cuidado. Dito isto, não acho graça nenhuma à retórica moralista em torno da entrevista: uma pessoa chocar-se porque Sócrates chama bandalho ou pulha a um tipo que usou a acusação anónima de homossexualidade como dispositivo de campanha eleitoral, em vez de se chocar primeiro com a pulhice efectivamente praticada, é uma inversão de valores que me cheira muito mal. E que é um prolongamento no tempo da estratégia geral “contra Sócrates vale tudo, a favor nada vale”. Acusar Sócrates de tratar mal este ou aquele, em referência a uma linguagem deselegante, esquecendo o que outros fizeram para efectivamente merecer essa deselegância, é uma cegueira muito selectiva e muito desmemoriada.
Em resumo: Sócrates não reconhece facilmente como habitação a sepultura que lhe quiseram dar. Tem todo o direito de estrebuchar. E não preciso de estar sempre de acordo com a forma como ele o faz, nem com o conteúdo do que ele diz, para reconhecer que ele tem todo o direito de resistir à morte cívica a que tentaram condená-lo – e para me enojar com a dualidade de critérios dos vesgos mais militantes (que, infelizmente, levam na candura da conversa outros mais distantes da manobra, que se limitam a constatar que não gostam das palavras, às vezes descurando maior cuidado com a relação entre as palavras e as coisas, ou com a relação brechtiana entre o rio e as margens na dialéctica da violência).

De qualquer modo, tudo isto (estar a escrever tão longamente sobre isto) seria uma perda de tempo se tudo isto fosse história. Mas não. O que me importa nesta novela é o futuro. Quer dizer, como é que este passado, ainda tão importante no presente, pode influenciar o futuro. Mais claro e mais directo: podemos esperar que Sócrates venha a desempenhar, no futuro, outras funções políticas de relevo em Portugal? Terminarei deixando à análise dos leitores a minha opinião sobre esse ponto.

7. Sócrates tem direito a tentar ser tudo aquilo a que ainda ambicione na democracia portuguesa. Não tem nenhum impedimento legal, não me chocaria se ele tivesse ambições as mais altas. O povo é que vota. Se ele chegar, por exemplo, à mais alta magistratura da nação, isso nunca acontecerá sem o voto do povo. Tentar lançar uma espécie de anátema preventivo dessa possibilidade, é infantil e é uma tentativa tosca de tutelar os portugueses, como se fossemos pobres de espírito.
A minha questão é outra: não vejo que o regresso próximo de Sócrates a qualquer lugar de topo do Estado contribua para dar os passos necessários à ultrapassagem do difícil momento que vivemos. Ninguém, nem o mais santo, nem o maior herói, nem o guerreiro mais bravo, ninguém vale só por si; aquilo que cada um pode dar depende também essencialmente das circunstâncias. Sócrates fez parte de uma equação de confronto político extremo na sociedade portuguesa em tempos muitos recentes. Pelo que tenho vindo a escrever, percebe-se que não acho que seja o único ou o principal responsável por isso – mas também não o isento de toda a responsabilidade. De qualquer modo, não se trata agora de fazer um julgamento histórico: para isso, deixemos correr a água sob as pontes. O que quero dizer é que, precisando o país de um compromisso global, alargado e profundo, exigente, mas também justo e solidário, capaz de ultrapassar as fronteiras da política-habitual-tão-curta-de-vistas, é capaz de ser preferível procurar novos actores.
Um compromisso nacional, capaz de parar a destruição do laço social que está em curso, precisa de novos protagonistas: credíveis, fortes e imaginativos, sem pedras no sapato e sem complexos, sem contas a ajustar, com pontes abertas para todas as margens da equação, capazes de ultrapassar as barreiras do habitual e do já visto. Será, sempre, difícil – e, precisamente por isso, mais vale que seja tentado sem o envolvimento dos conflitos anteriores e sem os ódios, ressentimentos e esqueletos no armário que nos tolheram e nos trouxeram aqui. Ora, por muitos méritos que tenha Sócrates – e eu acho que tem –, é indiscutível que arrasta consigo o cheiro da batalha que nos trouxe até este estado de nacional desesperança. Não foi o único, claro: aplico este raciocínio aos demais actores da mesma peça. É importante saber por que é que Passos Coelho roeu a corda a Sócrates? Sim. Será interessante conhecer o que Sócrates propôs a Passos Coelho ou a Louçã? Sim. Será importante e interessante, quer para a história quer para a política. Mas vejo que mais prioritário é enterrar os machados de guerra que ficaram dessas lutas políticas e começar um ciclo novo.
Se acho que seria uma pena que Sócrates tentasse retomar as rédeas, não é porque me arrependa do apoio que lhe dei, sempre desinteressadamente. Não me arrependo. Nem é por recuar, um milímetro que seja, da batalha cívica de denunciar a política de ódio de que foi (e continua a ser) alvo. Não recuo e apoio sem tréguas a sua tentativa de retomar a voz no seu e nosso país. Ele tem direito a essa voz.
Se acho que esse cenário deve ser evitado é porque o país precisa, não de esquecer, mas de superar os seus traumas e virar a página. Podem dizer-me: mas isso seria injusto para Sócrates. Pois, talvez. Mas isso não me comove. A política não serve para compensar os políticos pelos seus méritos ou serviços. Servir o país – é isso que se supõe que fazem os políticos – é correr o risco de ser injustiçado, correr o risco de não ser compensado, o risco de dar e não receber. Se a melhor maneira de servir o país é, num dado momento, prescindir, o grande político tem de aceitar isso.
Se não houvesse mais ninguém… Mas há. Creio que há, em todos os partidos parlamentares, gente capaz de se empenhar num novo ciclo – e que não traga consigo o espectáculo de confronto que nos tem dilacerado nos últimos anos. E que não pode continuar nesta forma pestífera.





o regresso dos delinquentes.


Catroga defende que José Sócrates "devia ser julgado em tribunal".

Quando critiquei as declarações de Mário Soares sobre "prender os delinquentes" que nos governam, fui muito criticado pelos amigos que, ao "mata !", acrescentam sempre "esfola!".

Deixo, para ilustração do que recuso, umas declarações de Catroga. Recuso em qualquer caso, não depende do bando de pardais que esteja em jogo. E não me venham dizer que estou a comparar os governos de Sócrates e Coelho. Não estou a comparar nada; só me recuso a aceitar a criminalização da política, venha de onde vier, seja contra quem for.

Fico à espera que aqueles que aplaudiram Mário Soares por querer "prender estes delinquentes", e que vieram dar-me lições de "esquerda" por eu, grande malandro!, defender os "delinquentes", se vejam ao espelho nestas declarações de Catroga.

Talvez seja esperar demais que, vendo-se ao espelho em mais uma catrogada, não gostem do que vêem e repensem a questão. Mas nunca podemos desesperar da capacidade de regeneração do humano.

24.10.13

ma-so-quis-tas.



Encontrei o recorte acima no Facebook, onde se diz vir da revista brasileira Turismo & Negócios de Maceió. Mesmo que não seja, muitos exemplos se poderiam recensear nesta categoria.

Sim, porque o que importa é que este recorte mostra uma certa ignorância sobre o nosso país; uma ignorância de postal. Há, no entanto, outras entradas nessa questão da imagem distorcida de um país.

Hoje em dia o cenário é mais assim: estamos numa livraria de Bruxelas a folhear um livro onde um português conhecido discorre sobre a actual situação de Portugal e ouvimos um comentário de um co-visitante que demonstra a ignorância arrogante de quem pensa que temos costa com o Pacífico.

Outro exemplo da mesma ignorância: alguém nos conta que, numa conversa de amigos de várias nacionalidades europeias, uns alemães pensavam que a Alemanha tinha dado (não emprestado, mas dado) dinheiro à Grécia, a Portugal, ...

E é na base dessa ignorância que se fazem as "opiniões públicas" que nos querem ver crucificados. O que cabe perguntar é se, do lado de Portugal, segue algum esforço para explicar a nossa realidade ou se nos limitamos a repetir que gostamos muito das vergastadas.

23.10.13

o "escritor".




O curto vídeo que vos deixamos acima é parte de um documentário da BBC Four, intitulado Mechanical Marvels: Clockwork Dreams on the history of automata, narrado pelo professor Simon Schaffer. Ele mostra um "menino mecânico" conhecido como "o escritor", uma criação de Pierre Jaquet-Droz ( 1721-1790 ), um relojoeiro suíço famoso por obras deste tipo.

O mecanismo do "escritor" tem milhares de peças e, sendo programável, permite-lhe escrever - com uma pena de ganso - qualquer texto com um máximo de 40 caracteres. A forma como os olhos do autómato seguem as suas "acções", bem como os detalhes da forma como processa a recarga da pena com tinta fresca (agitando-se brevemente para evitar "borrar a escrita"), dão-lhe uma estranha aparência "humana".

O autómato, acompanhado de outras maravilhas, está no Museu de Arte e História de Neuchâtel.

É possível ver o documentário na íntegra seguindo o seguinte link: Mechanical Marvels Clockwork Dreams.

(Não posso deixar de vos dizer que "escrever" assim não é escrever, por muito que isso desagrade aos meus amigos roboticistas. Escrever é andar pelo mundo, deixar-se questionar, reflectir - e depois dizer o que de relevante se encontrou nessa jornada. Daqui saúdo esses que verdadeiramente tratam de escrever. Mesmo quando o mundo está cheio de gente que disso nada percebe, ocupados que estão com os seus ódios de trazer por casa. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.)

22.10.13

apontamento à margem da entrevista de Rui Moreira.


A entrevista do novo Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, que sai hoje no Público, merece uma reflexão mais geral sobre o papel dos independentes na política portuguesa - e sobre a atitude dos socialistas face a esse fenómeno.

Já escrevi antes que os independentes não têm de ser uma maravilha da natureza para serem úteis à higiene do sistema político. Por muito pouco independentes que sejam, por mais que nasçam das tricas internas deste ou daquele partido, servem de ferramenta para os eleitores mostrarem o seu desagrado face a alguns comportamentos dos partidos. É uma visão muito funcionalista, dirão - e eu reconheço, mas retribuo: em democracia, a política não existe para os políticos serem felizes, existe para que a comunidade política tenha forma de se governar. E os independentes, mesmo os falsos, aumentam a capacidade dos cidadãos para darem carolos na cabeça dos políticos que se julgam donos do eleitorado. Gosto disso, ponto parágrafo.

(Aliás, se me dessem a oportunidade de escolher uma única reforma do sistema eleitoral, eu não teria dúvidas: introduzir o voto preferencial, de modo que os eleitores possam escolher, das listas apresentadas pelos partidos, quais os candidatos que querem ver eleitos, independentemente da ordem em que aparecem nas listas: em lugar de terem de escolher todo o pacote que os partidos embrulham numa lista ordenada, o eleitor poderia trocar as voltas ao partido e personalizar a sua escolha.)

Contudo, seria bom que os independentes não tivessem apenas esse papel "punitivo". Seria desejável que os independentes fossem capazes de explorar os recantos do sistema político a que os partidos têm dificuldade em chegar. Para isso, os independentes não podem comportar-se como uma espécie de partido clandestino, ou um "pseudopartido", para usar a expressão de Rui Moreira quando critica os independentes que querem funcionar como bloco na Associação de Municípios. Essa superestrutura de independentes seria, parece-me, uma fraude à legalidade democrática, uma tentativa de funcionarem como partido sem se assumirem como tal, escondidos no carácter inorgânico do "movimento". O que os independentes podem fazer de genuíno é desbloquear situações políticas onde o xadrez partidário não consegue gerar alternativas ou convergências à altura dos desafios. Julgo que foi o que aconteceu no Porto, onde Rui Moreira, baralhando o quadro partidário, criou condições para uma colaboração entre forças (políticas e sociais) que, de outro modo, estariam barradas pela lógica partidária. Isto não é criticar a lógica partidária em si mesma, que tem razão de ser: é reconhecer que a lógica partidária, como tudo, tem os seus limites. E os independentes podem, em certos momentos, ajudar a furar esses limites - aliás, sem necessidade de qualquer retórica anti-partidos, como também mostra a entrevista de Rui Moreira.

Dito isto, como devem posicionar-se os socialistas perante o fenómeno dos independentes? Em primeiro lugar, as soluções políticas para uma determinada situação devem ser ditadas pelo bem comum e não pelo egoísmo partidário. Vir dizer, como disseram alguns dirigentes socialista do Porto, que o PS não devia embarcar no acordo consequente com Rui Moreira para ser alternativa daqui a 4 anos, quer dizer que a preocupação eleitoral se sobrepõe à preocupação com a governação da cidade. Se Rui Moreira governar bem, com o apoio do PS, isso será bom para Rui Moreira e para o Porto, sendo provavelmente mau para o PS em termos eleitorais. Não desdenho dessa análise, mas concluo, ao contrário de outros, que o PS deve servir a cidade e não furtar-se às responsabilidades por cálculo eleitoral. O primeiro dever de um partido não é tentar estar sempre no poder, nem tentar ganhar sempre eleições, mas estar preparado para ser alternativa quando for preciso fazer melhor. Continua a chocar-me a forma despudorada como alguns dirigentes partidários mostram dificuldades em conciliar o interesse partidário com o interesse geral - e, se não escondem essa dificuldade em público, parece ser por nem se aperceberem do problema.

Concebo o papel dos independentes como essencial à flexibilidade da governação democrática: devem, os indepententes, conseguir criar dinâmicas que ultrapassem a rigidez do partidarismo excessivo, estabelecer pontes de que os partidos não são capazes de se ocupar, fazer sínteses que ultrapassam as divisões tradicionais, inovar na temática política, refrescar o pessoal político. Para isso, os independentes não podem ser "pseudopartidos" subterrâneos e têm de perceber que os partidos continuam a ser a estrutura fundamental da democracia possível. Para isso, os partidos têm de perceber que a democracia não existe para os servir, mas que o contrário é que importa: os partidos têm de merecer o respeito dos cidadãos mostrando que sabem ser apenas instrumentos da procura constante pelo bom governo da coisa pública.


20.10.13

o barrosismo e os socialistas.



Segundo a edição de ontem do Expresso, Durão Barroso nomeou João Proença para conselheiro especial junto da Comissão Europeia, com a missão de apoiar quer o Presidente da Comissão quer o comissário para o Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão, dada a sua experiência na concertação social.
Confesso que fico um pouco perplexo. Até acredito que o comissário Andor gostasse de fazer mais qualquer coisa pela concertação social na Europa, mas não acredito que Barroso esteja minimamente interessado no assunto ou deixe avançar esse assunto mais do que mera conversa da treta. Barroso nunca deu, politicamente, mostras de saber para que serve verdadeiramente a concertação social. Assim sendo, se Proença vai para aconselhar Barroso, terá pouco que fazer; se vai para apoiar o Comissário, não percebo bem por que carga de água há-de ser Barroso a escolher os conselheiros de Andor (da família socialista).
De qualquer modo, mais importante do que tudo isto, gostava de saber se ninguém vê problema nenhum em que João Proença, um dos executivos da direcção nacional do PS (secretário nacional) seja, ao mesmo tempo, conselheiro de Barroso. Ou a "grande coligação" à portuguesa tem mais caminhos do que aqueles que os meros mortais como nós têm direito a saber?

Perdoem o meu excessivo cepticismo, mas a ingenuidade passada dos socialistas acerca de Barroso justifica todos os receios.

16.10.13

reinventar o "socialismo de miséria".


Aprende-se muito a ouvir alguns dos nossos governantes.

Por exemplo, ouvir ministros, no exercício das suas funções, a usar o palco internacional ou europeu para atacar a primeira lei da República (fora de período de revisão constitucional, durante o qual há mais latitude para debater, sem deixar de respeitar) e para tentar apoucar o guardião da lei fundamental (não é discordar juridicamente das decisões, é tentar impugnar a legitimidade do tribunal por conveniência política), ensina-nos que nem toda a gente tem uma noção escorreita de respeito pelo Estado de Direito.

Ainda por exemplo, ouvir certos ministros a dar cambalhotas retóricas (muito próximas da aldrabice pura e simples) para tentar dar más notícias como quem oferece rosas, ensina-nos que pode sempre encontrar-se alguém pior que o mal já conhecido. O anterior ministro das finanças, principal artífice das malfeitorias que se estão a fazer ao país - fruto da cabeça dura da ideologia que não quer ver nada da realidade -, vinha sempre com aquela cara de pau anunciar directamente onde iria rasgar no momento seguinte. Na verdade, às vezes até parecia ter um prazer sádico nessa frontalidade - mas, se esse sadismo podia ser entendido como uma falha moral, ele era politicamente preferível à dissimulação dos actuais malabaristas.

Entretanto, às vezes aprende-se tanto (ou mais) a ouvir os apoiantes dos governantes como a ouvir os próprios mandantes. Leio por aí que "a esquerda" devia estar contente com a proposta de orçamento de Estado para 2014, porque ele poupa os de menos recursos e vai buscar aos que estão mais confortáveis (enfim, os "ricos" com rendimentos a rondar os 2000 euros e os funcionários públicos, porque estes não serão despedidos tão facilmente como os demais). O que se aprende com estas teses?, perguntar-me-ão. Aprende-se, respondo eu, como um debate ideologicamente datado pode entrar, de forma bizarra, pela porta do cavalo. Quando a esquerda defendia sem falsas vergonhas a importância da igualdade, a direita acusava de que a meta era "o socialismo de miséria". Quer dizer: a esquerda, combatendo as diferenças excessivas e só aceitando aquelas que resultassem do mérito e do esforço próprio, estaria a provocar o nivelamento por baixo. Hoje, quando não há qualquer travão às desigualdades brutais ditadas apenas pela origem de classe, pela falta de pudor na rapina ou pela corrupção dos circuitos de decisão, a direita vira o bico ao prego e reinventa, à sua maneira, o "socialismo de miséria". Mas, desta vez, é mesmo a sério: quem não esteja ainda na miséria (viver com o salário mínimo ou com 600 euros é o quê se não a miséria?) tem de aceitar ser cortado até alcançar gloriosamente, no altar da austeridade, esse patamar mínimo. Se não for este ano, será no próximo. Ou no seguinte. Se deixarmos.

15.10.13

Machete a dar frutos.


José Eduardo dos Santos anuncia fim da parceria estratégica com Portugal.

Representados por gente de cócoras, só podemos levar pontapés no traseiro.

Vai, finalmente, o Palácio de Belém perceber a gravidade do seu silêncio cúmplice?

14.10.13

Mário Soares e os delinquentes.


Sofro uma dor negra por ter de escrever isto. Mas não posso deixar de o escrever.

Leio por aí que Mário Soares terá dito que alguns membros do Governo são “delinquentes” e “têm que ser julgados, depois de saírem do poder”. Se se refere a delinquência no sentido legal do termo, devem ser julgados sem esperar que saiam do governo. Se se refere a "delinquência politica", a actos de governação com que discordamos, só posso lamentar, como sempre lamentei - corrijo: só posso abominar, como sempre abominei, essas ideias de criminalização da política. É que a criminalização da política é um recurso dos totalitarismos. É uma enorme pena que alguém que sofreu isso (a criminalização da política), no tempo da ditadura , caia no logro de inventar teses coincidentes com as daqueles que o perseguiram. Mesmo que sejam só sugestões vagas que deixam voar a imaginação dos que sonham sempre resolver o mundo pela violência, desorganizada ou de Estado.

Hé cada vez mais dias negros neste país.

10.10.13

a propósito de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima como passageira da TAP.


A notícia é, basicamente, esta: A imagem de Nossa Senhora de Fátima, viajando para Roma, vai «ocupar um lugar como um passageiro» durante a viagem de avião, em vez de ir no porão.
Esta notícia provocou "por aí" (redes sociais, blogosfera) reacções de escândalo ou escárnio. Sendo sério o assunto - quero dizer, sendo sério que este facto provoque estas reacções - deixo aqui uma breve opinião que escrevi noutro lugar. (Declaração de interesses: sou agnóstico.)


Muitas tradições tratam certos objectos como entidades especiais devido ao significado que esses objectos acumularam no processo de partilha de uma história comum das pessoas nessa tradição. Muitas tradições religiosas fazem isto, mas muitas tradições não religiosas não se distinguem delas neste aspecto. Só alguém que despreze profundamente o carácter histórico e simbólico da cultura humana pode espantar-se com isto.
Em nome da "razão", muitas correntes de pensamento desprezam esse carácter histórico (esse carácter institucional) das sociedades humanas. Por exemplo, o chamado "neoliberalismo" em economia comete esse erro, porque pretende que somos "calculadores de oportunidades", egoístas racionais instantâneos, em vez de perceber que somos membros de comunidades com história e tradição. E, como membros de comunidades com história e tradição, partilhamos símbolos e os seus significados, os quais vão sempre muito além da materialidade imediata e míope.
Do ponto de vista do debate interno às religiões, a única questão relevante aqui é a da idolatria. Adorar uma estátua de uma santa pode ser classificado como idolatria, mas esse é um debate interno ao universo religioso. Querer entrar nesse debate a partir de uma posição anti-religiosa é uma pretensão que me escuso a qualificar, para não ter de explicar o meu entendimento do conceito de má-fé.
A nossa sociedade está a ser destruída pelo aviltamento do simbólico. Os símbolos da república estão a ser conspurcados pelo desprezo dos valores republicanos. Algumas pessoas, empurradas por esse generalizado desprezo pelo valor do simbólico, só vêem objectos-sem-nada-mais-que-matéria à sua volta. Merecia um novo ensaio sobre a cegueira.

sinto vergonha.


Por quê?

Comecemos por algum lado. Sinto vergonha, desde logo, por isto.

Motivos mais do que suficientes.

5.10.13

da infelicidade da expressão.


«Passos diz que Machete teve apenas "uma expressão infeliz".»

O problema nunca é o que fazem. É sempre, "apenas", que não têm jeito para falar, coitados - porque os que sabem falar são os perigosos intelectuais.

O problema é que dobrar a espinha do Estado face aos poderosos de Angola não é uma questão de expressão, é um posicionamento político substantivo - e abominável. Esta gente habituou-se a ser subserviente e anda pelo mundo à procura de novos senhores para bajular.

Há quem talvez desse um bom ministro numa espécie sem linguagem.

4.10.13

notícias do protectorado.


A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI emitiram, como é habitual, uma nota sobre a conclusão de mais uma avaliação do programa de ajustamento dos nossos cintos. (Eles dizem que são duas avaliações simultâneas: deve ser como fazer uma análise ao sangue e pedir um teste suplementar por causa da próstata...)

Destaco, dessa literatura fantástica (aqui na íntegra) o seguinte parágrafo:

"Durante o verão, no contexto de preocupações dos mercados quanto à exequibilidade das políticas, no seguimento de uma breve perturbação política e dos acórdãos do Tribunal Constitucional que inviabilizaram algumas medidas essenciais, as taxas de juro implícitas da dívida soberana voltaram a subir, revertendo progressos anteriormente atingidos."

Quer dizer: a grave crise governamental, provocada exclusivamente a partir do próprio governo e que tem tido consequências gravíssimas na percepção que os mercados fazem da nossa situação, tem uma descida de rating para "uma breve perturbação política". Coisa pouca, portanto. Mas, como não é credível que coisa tão pouca tenha provocado tal tsunami nas taxas de juro, arranja-se uma muleta para a explicação. A saber: "os acórdãos do Tribunal Constitucional que inviabilizaram algumas medidas essenciais". Não são os mesmos autores da crise política, que, na mesma senda de irresponsabilidade, inventaram medidas manifestamente inconstitucionais - aliás, de forma repetida. Não; o sujeito do crime é o Tribunal Constitucional.

Isto quer dizer duas coisas. Primeiro, estas instituições internacionais não se relacionam com Portugal como um país, um país organizado, com vários órgãos de soberania desenhados de forma legal, cada um com as suas competências próprias - optando antes por seguir a retórica propagandística do governo. Tornam-se, assim, uma peça da luta política interna, coisa que instituições internacionais deveriam evitar a todo o custo. Segundo, permitem-se "picar" o Tribunal Constitucional de Portugal. Os mesmos que tremem como varas verdes e roem as unhas de ansiedade quando esperam uma decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha sobre matéria europeia, porque não se brinca com o Tribunal Constitucional da Alemanha - esses mesmos vêm cantar de galo sobre o nosso guardião da Constituição. Só posso ter desprezo por instituições que assim revelam, com tanta ligeireza, uma absoluta falta de respeito pela decência democrática de um país que é o nosso. E, ao mesmo tempo, sentir repulsa por termos um governo que se rebaixa a pedir estes favores para tentar disfarçar, no plano interno, os seus disparates: o desrespeito pela Constituição e pelas estruturas do Estado de Direito, a auto-geração de crises políticas mesquinhas que o país tem de pagar.

De facto, este mundo das "instituições internacionais" está cada vez mais entregue aos Barrosos de todas as nacionalidades.

3.10.13

O PS alcançou o melhor resultado de sempre para um partido nas eleições locais em Portugal ?


Poucos dias antes das eleições autárquicas deixei por aí umas picadas aos socialistas ou seus "companheiros de estrada" que, com andarem a fazer contas ao futuro de Seguro durante uma campanha eleitoral, pareciam confundir as prioridades. Até perguntei, com alguma má-disposição, se as eleições eram para secretário-geral do PS.

Infelizmente, tenho agora a mesma sensação relativamente ao comportamento da direcção do PS no rescaldo de 29 de Setembro. Há demasiado esforço em tentar demonstrar que "o PS alcançou o melhor resultado de sempre para um partido nas eleições locais em Portugal". Qual é o problema com essa tese? Coisa pouca: não é verdade. É um sofisma. Só não lhe chamo directamente uma mentira porque é possível encontrar um critério que sustenta essa ilusão (número de câmaras). Mas a comparação das percentagens e a comparação do número de votos não autorizam essa afirmação. Bem pelo contrário. É que ganhar Lisboa ou ganhar o Corvo é, em cada caso, ganhar uma câmara: mas, no que toca ao significado nacional, os casos são muito diferentes. E o significado político das perdas (nomeadamente para a CDU), bem como o significado da abstenção, desautorizam essa leitura simples e gloriosa. Menos empenho em tentar ganhar campeonatos internos (Seguro teria feito melhor que os seus antecessores) e mais empenho em discernir os claros e os escuros destas eleições, era o que se podia esperar de uma direcção partidária que pensasse mais no partido e no país do que na sua própria sobrevivência.

Apesar de irritado com mais esta pequenez da direcção do PS, tinha decidido não me meter neste assunto. Mas revi essa decisão depois de ter tomado conhecimento de uma mensagem dirigida pela direcção do PS aos principais actores da família socialista, social-democrata e trabalhista da Europa. Nessa missiva (bem como na mensagem de correio electrónico que a embrulhava, onde se escreve preto no branco: "O PS alcançou o melhor resultado de sempre para um partido nas eleições locais em Portugal") é esse enganado auto-elogio que prevalece - em vez de, como seria mais útil, lembrar aos parceiros lá fora como estes resultados mostram a necessidade de encontrar uma alternativa de combate à crise que, em vez de castigar os portugueses, os mobilize. Esta comunicação dos resultados das autárquicas (que me decidi a publicar, abaixo, depois de me ter chegado por várias fontes, todas escandalizadas) é, do ponto de vista político, uma nulidade. No mínimo, uma nulidade: a política do vazio, sem uma leitura séria do acto eleitoral, um desperdício de papel quando há tanto que o PS tem a dizer (e a repetir e a repetir) aos seus camaradas europeus, que tantas vezes parecem não perceber o que se passa neste jardim à beira-mar plantado.

Era bom não sermos levados para a velha estória do "de vitória em vitória até à derrota final". Para não cairmos nisso é preciso evitar o triste exercício de lançar poeira para os nossos próprios olhos.





2.10.13

Carta dirigida ao Ministério da Educação e Ciência e Fundação para Ciência e Tecnologia.



Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação e Ciência, Professor Nuno Crato
C/C Excelentíssima senhora Secretária de Estado da Ciência, Professora Leonor Parreira
e Excelentíssimo Senhor Presidente da FCT, Professor Miguel Seabra

Excelência,

Os signatários desta carta, dirigentes de Associações Científicas de Ciências Sociais e Humanas, vêm expressar a vossa Excelência a sua perplexidade pela composição agora divulgada do novo Conselho Científico das CSH da FCT.

Em primeiro lugar, entendemos que o elevado mérito científico – atestado, por exemplo, através de publicações com revisão por pares, responsabilidades em projetos financiados competitivamente ou através de outros outputs relevantes para a disciplina em causa - deveria ser uma característica indispensável para a pertença a um órgão com esta importância e estas responsabilidades. Contudo, verificamos que essa regra de exigência e rigor, que não deveria ter qualquer exceção, não foi consistentemente seguida na seleção dos membros do Conselho Científico das CSH da FCT.

Em segundo lugar, verificamos a presença neste Conselho de pessoas que, independentemente das suas qualidades enquanto cientistas noutros domínios, não têm no seu percurso académico qualquer atividade relevante nas áreas científicas próprias a este Conselho. Apesar de contemplarmos a possibilidade de que este facto se deva a um esforço de promoção de diálogo interdisciplinar, não se compreende por que razão semelhante esforço não ocorreu na composição dos restantes conselhos científicos, nem por que razão o conselho de CSH deverá ser presidido por alguém cuja atividade científica é alheia aos domínios científicos e académicos recobertos pelo conceito de “Ciências Sociais e Humanidades”.

As competências e responsabilidades de um Conselho Científico da FCT deveriam traduzir-se em padrões de exigência internacionalmente reconhecidos e aceites pela comunidade científica cuja atividade lhe compete estruturar e supervisionar.

Por verificarmos que este Conselho, pela sua composição e presidência, não corresponde ao que seria exigível de um Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades, pedimos a revogação da decisão que o nomeou.

Será dada informação desta carta aos membros das Associações Científicas subscritoras desta carta.

Apresentamos os novos melhores cumprimentos,

Associação Portuguesa de História Económica e Social
Jaime Reis (presidente da Direção)
Leonor Freire Costa (Vogais)
Susana Miranda
Rui Pedro Esteves
António Castro Henriques.

Associação Portuguesa de Ciência Política
Raquel Vaz-Pinto (Presidente da Direção)
Maria Raquel Freire (Vogais)
Madalena Meyer-Resende
Conceição Pequito
André Freire
Luís Lobo-Fernandes
Pedro Magalhães
José Manuel Pureza

Associação Portuguesa de Sociologia
Ana Romão (Presidente da Direção)
João Teixeira Lopes (Vice-Presidente)
Paula Abreu (Vice-Presidente)
Helena Serra (Vogais)
Dalila Cerejo
Madalena Ramos
João Filipe Marques
José Saragoça

Associação Portuguesa de Psicologia
Margarida Garrido (Presidente)
Diniz Lopes, Vice-Presidente (Vogais)
Teresa Garcia-Marques
Isabel Correia

Associação Portuguesa de Antropologia
Robert Rowland (Presidente da Direção)
Ruy Llera Blanes (Vice-presidente)
Chiara Pussetti (Vogais)
Clara Saraiva
Humberto Martins
Raquel Carvalheira
Susana Trovão

Associação Portuguesa de Geógrafos
Rui Pedro de Sousa Pereira Monteiro Julião (Presidente da Direção)
António Alberto Teixeira Gomes (Vogais)
António José Conde Búzio Sampaio Ramos
Carla Freitas
Eusébio Joaquim Marques dos Reis
Heitor José Rocha Gomes
Joaquim Manuel César Caeiro



1.10.13

o PCP e o sistema.


A Joana Lopes (entre as brumas da memória), que respeito mas com quem estou frequentemente em desacordo, analisa, numa posta a propósito das últimas eleições ("a força do PCP"), o papel do PCP na contestação a esta apagada e vil tristeza. É um texto no qual vale a pena pensar: vou comentá-lo indo além do que se pode atribuir directamente ao que JL aí explicita.

Joana Lopes (JL) começa por fazer um certo tom de desprezo quando fala de um comentário que, segundo ela, esteve muito presente no rescaldo das recentes eleições autárquicas. O comentário é sobre o PCP e consiste em louvar o seu contributo positivo para "controlar" o protesto e para o manter "dentro do sistema". Aquilo que chamo "tom de desprezo" relativamente aos putativos produtores desse comentário consiste nos mimos que JL lhes dirige (cf. primeiro parágrafo do texto que estou a comentar). Ora, o que interessa é que, se JL despreza os autores do comentário, afinal a mesma JL concorda com a parte factual do mesmo, embora discorde da sua valoração. Isto é: o PCP realmente tem dado um enquadramento institucional ao protesto, mas isso, em lugar de ser bom (como dizem os "comentadores, encartados ou nem por isso", incluindo a "esquerda mole"), é mau, designadamente porque tem redundado num "enquadramento por vezes demasiado rígido das formas de protesto". JL passa depois a explicar que o PCP tem, pois, de ser complementado por outras organizações e iniciativas. Enfim, posto por palavras minhas, o carácter institucional (até legalista) da acção do PCP é visto como obstáculo ao desenvolvimento da luta contra "o sistema".

Nada disto é muito novo, nem muito original. O PCP costuma considerar estas posições como aventureirismos ou esquerdismos que não levam a lado nenhum. Não vale a pena revisitar essa linha de polémica. O que quero aqui dizer é, a meu ver, mais central à própria concepção de democracia. Eu conto-me entre os que valoram positivamente as forças que são capazes de expressar a contestação dentro do sistema. Porquê? Porque eu não concebo nenhum sistema democrático sem contestação, sem diferença, sem alternativa, sem tensão, sem oposição. E como não me consigo imaginar a viver num sistema sem essas forças de contradição, tenho de estar agradecido, como cidadão, a quem dá voz e articulação política ao desacordo e à contestação. Foi esse, aliás, o sentido profundo daquela declaração de Melo Antunes no rescaldo do 25 de Novembro, quando veio dizer, contra os revanchistas de vários quadrantes que sonhavam ilegalizar os comunistas, que o PCP era indispensável à democracia. Quer dizer: um democrata não pode viver bem sem todos aqueles que expressam a diferença dentro da democracia. Porque sem isso não haveria democracia alguma. A estória de "cair fora do sistema" reduz-se aos sonhos gémeos dos que, de um lado, convivem mal com a contestação e dos que, de outro lado, concebem a contestação como mais útil se não contribuir nada para "o sistema". Em qualquer dos lados está a ideia de que a visão dos outros é tão insuportável que nós não queremos que ela conviva com a nossa própria visão.

Pois, para mim, talvez por pertencer à tal "esquerda mole" da expressão da JL, são muito importantes as forças políticas que articulam a dissensão dentro do sistema. É que, sem isso, o sistema seria puramente totalitário. E mais: se estamos como estamos - incapazes de traçar uma estratégia minimamente nacional para sair do atoleiro - devemo-lo em parte aos dirigentes políticos (a começar no PR) que pensam que podem traçar "planos de salvação nacional" excluindo à partida o PCP e o BE e os parceiros sociais na sua pluralidade. Infelizmente, os que concebem a democracia como uma coutada do "arco da governação" encontram um útil aliado naqueles que prezam mais "estar fora do sistema" do que aprofundar a própria democraticidade do sistema.



Fabulosas raças de humanóides: monstros e robôs.



Acabou de sair na Kairos, Revista de Filosofia & Ciência, número 7, o meu artigo "Fabulosas raças de humanóides: monstros e robôs. A robótica humanóide e a captura da intencionalidade". Pode ser lido em linha (clicar no título). O sítio da revista pode ser visitado aqui: Kairos.

Trata-se de um texto cuja primeira versão apresentei em 2009 numa conferência em Offenbach am Main [“(Hi) story of Robotics” - Annual Meeting of the Society for the History of Technology, Germany)] e que esteve depois na base de uma apresentação que fiz no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, no quadro da Exposição corpoIMAGEM.

Deixo o resumo:

«Este texto discute as perspectivas da Robótica Humanóide no quadro historicamente alargado das visões humanas acerca dos humanóides. As crenças ocidentais nas raças fabulosas do Oriente, bem como aspectos da crise dessas crenças por ocasião dos Descobrimentos dos séculos XV e XVI, são usados para iluminar o significado mais profundo de aspectos recentes desta linha de investigação em Nova Robótica. É proposto que a dinâmica profunda dessa Robótica passa pelo que designamos como captura da postura intencional.»