1. Fui ontem, de novo, sorte minha, a uma das celebrações que mais me alimentam: Teatro no Bairro Alto pela gente da Cornucópia. O Estado do Bosque, texto teatral muito recente de José Tolentino Mendonça, acabado de editar pela Assírio & Alvim. (Falhei a estreia absoluta, na quinta-feira, com grande pena minha, porque não havia lugares onde eu coubesse, nem mendigando.) Tenho de começar por uma confissão: li o texto poucos dias antes de ir ao teatro, o que, tratando-se de um texto novo, marca a forma de ver tudo, porque a leitura cria um estado de expectativa diferente daquelas situações em que vamos ver representar um texto que já lemos ou vimos há muito.
2. Estamos naquele teatro, transformado, sem as habituais bancadas, dispostos em volta da cena, envoltos pelas escuras paredes, como também nós perdidos no bosque. Esta peça de teatro é um texto de um poeta, sabe-se. E é levada à cena pela companhia, e pelo encenador, que, a meu ver, são os mais metafísicos da sua arte, hoje entre nós. Por captarem o que não está no plano do palpável, à frente dos nossos olhos. Tudo honrou essa condição, dando-nos a ver um espectáculo poético e metafísico, de grande beleza e profundidade. Inquietante. Porque nos pergunta a cada passo se ainda estamos com garra de estarmos vivos. Vivos o suficiente para voltarmos a pensar outra vez. E porque nos sentimos perto do encantamento – e é esse, talvez, o problema: porque não se vive sem encantamento, tanto quanto, por outro lado, o encantamento é a cova onde podemos perder o norte.
3. Nesta peça há sete cenas, todas no texto se chamam diálogos. Os diálogos “da orla”, “da casa”, “do poço”, “do limiar”, “da clareira”, “do sonho”, “do bosque”. Há um bosque; há um estar à beira do bosque; há pessoas que se encontram nessa fronteira entre fazer ou não fazer a viagem; há um guia para conduzir os curiosos, ou necessitados, bosque adentro – e esse guia é cego, a ele o tremendo do bosque não o cega, porque cego já ele é e qualquer cegueira que lhe seja acrescentada virá de dentro, ou dos outros, e não do insondável bosque, que por esse lado nada pode contra ele. E, ali, naquele momento em que estamos presentes ao teatro, a escuridão é o nosso bosque, a escuridão preparada pelo encenador e actor que corporiza a personagem do guia.
4. Há, pois, sete cenas; todas elas no livro se chamam “diálogos”. Mesmo o “diálogo do sonho”, em que o guia dialoga com o Destino, que ali se torna um diálogo interior. Mesmo a cena IV, “o diálogo do limiar”, que só conta com a fala de John Wolf, o guia cego para o bosque. Mas isso justifica-se: é nesta cena que Wolf faz a sua oração ao Nada, uma glosa dessa oração central dos cristãos que é o Pai Nosso. Ora, a oração (ao “Pai Nosso que estais no céu” ou ao “Nada nosso que estás no Nada”) não é um monólogo: tem um interlocutor, pressupõe uma história comum anterior, uma relação em curso, um futuro à espera. Como escreve Cintra, o “núcleo da viagem estática de John Wolf” é “uma glosa do Pai Nosso, onde a palavra Pai, Deus, se substitui por Nada, ainda que menos blasfemo do que se pensa, porque na nossa cabeça de adultos racionais já entendemos que Deus não pode ser o Velho de barbas…”. Assim, todas as sete cenas são diálogos, mesmo que isso escape a quem não pertença à tradição com que conversa esta peça.
5. Tenho andado, confesso, agnóstico que sou moderadamente atento às coisas da religião, tenho andado ansioso com os trilhos deste homem, encenador e actor: Luís Miguel Cintra está, declaradamente, de novo à procura de sentido pela religião. E esta peça é mais um passo nessa procura. Ele é do tempo em que o sopro renovador do Concílio Vaticano II varria a igreja universal; do tempo em que por cá os “católicos progressistas” jogavam a fé na resistência à tirania política; e do tempo, depois, em que a “revolução” misturou tudo isso com urtigas, que não matam mas fazem muita comichão. E encontra-se, agora, pouco a pouco, a tomar consciência de se ter um tanto esquecido disso – sem renegar, mas sem renovar os votos. E, não sei bem com que urgência, dá-se conta (quando leva à cena, no Nacional, um auto religioso de Gil Vicente?) que talvez os seus espectadores não saibam do que ele fala (do que fala o seu teatro) quando fala de dentro de uma tradição religiosa. E dá-se conta de que talvez ele possa suprir, com uma ponte feita de linguagem, essa ameaça de um corte na comunicabilidade entre essa tradição e preocupações de hoje. Volta, assim, a galope, o “católico progressista” (entre aspas, por ser um rótulo) – e volta político, anticapitalista. Um Deus, uma fé, contra a massificação consumista, pela responsabilização de cada um face a todos.
6. Este espectáculo traz mais para a luz do dia, mais para a frente do palco, um Cintra em ebulição espiritual no processo de se encontrar com um dos homens da Igreja que hoje mais à vontade praticam entre nós (sem grandes excitações mediáticas) uma pertença ao pensamento inquieto com o momento presente: José Tolentino Mendonça, padre católico, poeta, intelectual, também um responsável nas estruturas do catolicismo. Ele escreveu esta peça, O Estado do Bosque, que vem agora à cena num ciclo do Teatro da Cornucópia intitulado “O Nome de Deus”. Um ciclo que inclui uma leitura do ateu e comunista Pier Paolo Pasolini – porque Cintra insiste em chamar textos anticatólicos ao seu pensar do espiritual (sem que fiquemos a perceber, nós, como se relaciona Cintra com uma Igreja oficial que, ao nível global, apesar de Tolentino e outros, coloca esta sua abertura cristã claramente em contracorrente com a tendência para vigiar e punir as heterodoxias).
Cintra escreve que a peça de Tolentino “é uma revisitação contemporânea, abstracta, é o negativo do Auto da Alma”, que “tenta a criação de uma cumplicidade nova, laica”, na qual entra “a ideia de salvação, de percurso ou viagem”… pelo bosque. Um bosque contemporâneo, onde somos muitíssimo mais livres de nos perdermos – se é que isso é liberdade. Sendo, de qualquer modo, pluralidade – “almas humanas”, no plural – porque Cintra vê em Tolentino a fraternidade em vez da autoridade, o espaço para a dúvida como possibilidade de Verdade.
7. Contudo…
No dizer de Cintra, a peça tem “mil sobreposições aos episódios da Bíblia” e o encenador joga com isso. Estranho, contudo, que não tenha grande peso, na explicação que Cintra dá da sua leitura, a possibilidade de outras sobreposições – não da peça com a Bíblia, mas da peça com outros textos, contextos e pretextos da cultura contemporânea. Há, ocasionalmente, evocações filosóficas e antropológicas que são atiradas inconsequentemente para a fogueira, sem nada chegarem a aquecer (o eterno retorno, a questão dos ritos, o tema da espera). Mas isso, embora provoque algum desconforto no espectador que fui, como se distraísse sem necessidade e sem proveito, pode moer mas não mata. A minha questão é outra.
Todo o texto é percorrido por uma tematização do “caminho”, do “caminhar”; fala-se mesmo em “caminho da floresta”; o guia cego viajou milhares de quilómetros pelo mundo; o tema do “faz-se caminho ao andar” é explicitado numa fala de Wolf: “Quem apenas quer a meta não viaja”. Por outro lado, já se disse que tem um lugar central nesta peça uma “oração ao Nada”. O Nada. Ora, o “caminho” e o “Nada” têm muito que se lhes diga no debate filosófico do século XX. Que não vamos revisitar; apenas evocar num aspecto muito circunscrito, para perceber se não será preciso ir além das “mil sobreposições aos episódios da Bíblia” para ser espectador desta obra.
8. [Intervalo: se Cintra lesse isto diria que eu sou um intrometido e não percebi nada – ou não tivesse ele escrito: “o que a peça nos provoca é, uma vontade de remeter a filosofia para a carga lúdica da vida e simplesmente entrar em estado de oração”.]
9. Comecemos pelo Nada. O “Nada” pesa muito na história da filosofia de um tempo onde, até certo ponto, ainda estamos. Toco apenas num pequeno ponto: das profundezas da década de 1920 vem uma disputa pesada e nunca mais sanada, no centro da qual está a invocação do “Nada” como questão central na filosofia – ou, alternativamente, como questão espúria.
Rudolf Carnap, no seu ensaio de 1931 intitulado “A eliminação da metafísica através da análise lógica da linguagem”, desenha um programa filosófico de eliminação da metafísica como “palavreado sem sentido”. Essa “eliminação” resultaria da demonstração de que aquilo que parecem enunciados nos textos “metafísicos” não passam de objectos linguísticos desprovidos de significado, o que, supostamente, se demonstraria por uma combinação de verificação empírica e aplicação da lógica formal. A “eliminação da metafísica”, de Carnap, toma como um alvo concreto a lição inaugural que Martin Heidegger tinha pronunciado em 1929 na Universidade de Freiburg, intitulada “O que é a metafísica?”. Heidegger estava em grande destaque, tendo acabado de publicar “Ser e Tempo” (1927), que se tornou imediatamente um clássico, sendo que a escrita dessa obra aconteceu em grande parte durante a sua longa estadia em Marburg, a universidade de Carnap por essa altura. Alguns autores consideram que esta “disputa” foi um dos momentos de choque que criaram a divisão entre a chamada “filosofia continental” e a “filosofia analítica”. Ora, o que interessa para o nosso propósito aqui agora é que o “Nada”, o “nadificar”, a relação do “nada” com a negação, e a importância que Heidegger concede a essas questões numa consideração do que seja a tarefa da filosofia, é precisamente o foco do “ataque aos metafísicos” desferido por Carnap.
Carnap é uma figura central do “positivismo lógico”, sendo um dos três redactores de "A Concepção Científica do Mundo: o Círculo de Viena" (1929), mais conhecido como o Manifesto do movimento, onde o grupo se coloca na oposição entre duas formas de fazer filosofia: contra a “metafísica especulativa”, pugnando pela investigação antimetafísica "aplicada aos factos", praticada no quadro de uma concepção científica do mundo. Heidegger representa tudo aquilo a que se opõem – e a temática do “Nada” é uma chave de tudo aquilo que abominam. Ora, a peça não deixa de lado esta fractura entre metafísica e ciência, ou, pelo menos, entre as pretensões totalizantes que existem de um e outro lado. A personagem Viviane Mars, uma etóloga, que estuda o comportamento humano enquanto comportamento animal, é suavemente ridicularizada no texto como uma cientista de vistas estreitas enquanto ser humano. Esta é uma cena que (embora isto possa ser defeito meu como leitor) acaba muito mais clara na representação do que no texto. Escreve Cintra: “Duma cena gosto muito de maneira especial. A cena da pobre etóloga que tudo reduz a regras, como se de um animal a outro não houvesse diferença, como se todos os homens fossem iguais. Dir-se-ia de facto uma cena que se passa na montra de algum museu de História Natural, ou dentro da TV em cenário artificial, que é mais ou menos a mesma coisa. Nenhuma metafísica. (…) Em cena um rapaz e uma rapariga. Entra pelos olhos dentro que o desejo anda por ali, e o raio da moça agarrada ao livrinho, com a vida diante dos olhos, não consegue largar o mal do nosso tempo, a técnica, perante um moço que lhe está literalmente a cair aos pés!” Ora, a meu ver, o difícil diálogo entre ciência e religião sai daqui com um retrato que, sendo poético, resulta simplista demais para as minhas preocupações.
O peso do “Nada” nesta peça causa-me, como se vê, dificuldades. Para já não falar do nihilismo em sentido mais lato (o que tem o nihilismo a ver com o Nada desta peça?), para um leitor de Heidegger (como eu: um leitor que se libertou do fascínio heideggeriano lendo o judeu Lévinas), o “Nada”, posto na equação do Pai Nosso, perturba. E não é por razões de ortodoxia religiosa que perturba…
10. O outro tema “heideggeriano” desta peça é o tema do “caminho". Martin Heidegger escreveu muito sobre o “caminho”. Que queria que se falasse dos seus textos como caminhos (em vez de obras), para quem “estar a caminho” era algo como um método (melhor: algo em vez do método). Escreveu sobre “caminhos de floresta”, “caminhos de lenhadores e guardas-florestais”, eles que sabem “o que significa estar metido num caminho de floresta”, “caminhos que, o mais das vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não-trilhado”. Meter-se por atalhos, no meio da natureza selvagem, que não é um parque geometricamente humanizado, e aí perder-se: só perdendo-se se encontra a floresta. (Cf. Martin Heidegger, Caminhos de Floresta, Gulbenkian, incluindo o prólogo de Irene Borges Duarte.)
11. Temos, portanto, dois temas heideggerianos que escapam à sobreposição com a Bíblia explicitada por Cintra. E qual é o problema? Nenhum. Excepto tudo. Excepto que também há, num certo Heidegger, um certo Deus, com ou sem esse nome, que é, aí, perturbador.
Na “Carta sobre o Humanismo”, Heidegger escreve que “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação.” E os pensadores e os poetas gostam que lhes entreguem o trabalho da guarda. E é de pensadores e de poetas que falamos quando falamos de Tolentino e de Cintra. Mas não nos enganemos quanto a Heidegger, porque ele não crê que os pensadores e os poetas sejam quem fala pela linguagem. Heidegger esclarece: “o pensar é o pensar do ser”. Mas não nesse sentido de pensarmos nós o ser: o “pensar do ser” é o próprio ser a pensar-se. Daí vem o problema. O problema com o “Ser”, com os “Deuses”, com o “Nada” desta peça, não é com eles. O problema é: quem fala em nome do Ser? Quem fala em nome dos Deuses? Quem fala em nome do Nada? Quem diz “essa fala não é autêntica” ou “essa fala é autêntica”? Quem manda calar ou manda falar em nome desse juízo de (in)autenticidade? Não é, afinal, o “Ser”, mas quem fala em seu nome. E este perigo é real, porque pode reservar aos funcionários do Ser o estatuto de autentificadores, deixando aos demais a escuta: “Antes de falar, o homem deve novamente escutar, primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dócil a este apelo, pouco ou raramente lhe restar a dizer.” Esta ideia de escuta é apresentada de forma poética, associada ao cuidado, ao deixar-se interpelar, ao “estar exposto ao apelo do ser” – mas contém o perigo de uma vivência errada da passividade, do “estar postado na clareira do ser”. É, aliás, contra esta dominação pela perspectiva ontológica que vem Lévinas contrapor (por exemplo em Totalidade e Infinito) algo muito mais ético: a descoberta da alteridade, a prioridade ao rosto do Outro. Em vez do “Ser” – ou, pelo menos, em vez da tentação de falar em nome do Ser.
Fotografia de Luís Santos, no sítio do Teatro da Cornucópia.
12. Estou a acusar Cintra de fazer uma leitura curta do texto, por explicitar as suas sobreposições bíblicas e deixar de lado outras sobreposições? Não, não estou, até por serem belissimamente poéticas – e humanas – as formas que encontrou de sublinhar essas sobreposições bíblicas. Leia-se o encenador a explicar a importância do poço na encenação: “Escolhemos o poço como emblema do ciclo de que se fala no texto, e quisemos figurar no espectáculo a Samaritana sem fé que dá de beber a Jesus, porque o tema é esse, e a ideia principal da peça está no episódio narrado por João: Cristo para matar a sede ou para gerar verdade pede a água do poço a quem é impuro mas verdadeiro, e não o reconhece. E a água do poço passa a ser a verdade de todos os homens, crentes ou não, e do gesto de matar a sede sairá o novo mundo.”
O que estou a dizer é outra coisa: é que o mistério do Ser oferece poesia, oferece interrogação, oferece beleza – mas pode também ocultar a concretude do Outro. A transcendência pode cegar. E a cegueira pode matar: nem todos os cegos são guias no limiar do bosque; alguns cegos, especialmente quando se pretendem guias, podem ser lobos que nos atacam quando já entrámos no bosque e estamos desorientados. E talvez não sejam os deuses, nem o Ser, nem o Nada, que serão capazes de nos salvar desse inferno: só o Outro concreto, sem ontologia nenhuma pelo meio, só o rosto irredutível da alteridade nos pode salvar da selvajaria. Essa é, como sempre, a minha interrogação, até o meu medo, sempre que alguém me fala do mistério. Pois, quem fala em nome do mistério?
13. Acho que o leitor duvidará de que este texto seja sobre uma peça de teatro. Mas é. Sobre uma das peças do grande teatro do mundo: o sentido.
(As citações de Luís Miguel Cintra são do seu habitual texto "Este Espectáculo", que está disponível no site da Companhia.
Materiais sobre este espectáculo no sítio da Cornucópia.)