24.2.13

Neo Rauch, a obsessão do demiurgo.


Neo Rauch, pintor alemão de Leipzig (n. 1960), vem das profundezas do "socialismo real" (abreviando, comunismo do leste europeu) para as dificuldades da democracia que há. Pinta figurativamente, pende para um certo surrealismo, olha para o mundo e vê animais nas pessoas (e, talvez, pessoas nos animais). Já pintou quadros relativamente pequenos, nos últimos anos tem pintado uma espécie de grandes murais, com cores preocupantes, misturando mitologias várias com coisas pequenas que pesam muito todos os dias. Um tipo hirto, pinta figuras que parecem evitar qualquer tipo de interacção com as outras figuras que habitam os mesmos quadros. É um artista da devastação, dos que viveram a devastação, dos que sobreviveram à devastação, dos que não excluem a devastação como horizonte.

No BOZAR, Bruxelas, acabado de abrir, até 19 de Maio próximo.


Neo Rauch, Zähmung (Domando), 2011



Neo Rauch, Die Kontrolle (O Controlo), 2010



Neo Rauch, Versprengte Einheit (Unidade Dispersa), 2010




Neo Rauch, Revo, 2010



Neo Rauch, Der Vorhang (A Cortina), 2005



Neo Rauch, Der Rückzug (A Retirada), 2006



Neo Rauch, Konspiration (Conspiração), 2004




Neo Rauch, Regel (Regra), 2000


23.2.13

o capuchinho vermelho e o lobo.


A questão não se me põe pessoalmente, porque não estarei dentro das fronteiras no dia das próximas manifestações contra a troika.
Mas vejo que a técnica de mobilização volta a ser a mesma de outros tempos: quem não for é um canalha, um vendido, provavelmente recebeu um envelope por baixo da mesa vindo do Gaspar. Ah, claro, e quem disser publicamente que não vai é um fascista, encapotado ou não.
Pois, olhem, revolucionários de trazer por casa: essa agitação toda faz um imenso favor ao Passos, ao Relvas, ao Gaspar e ao Portas. É que o renascer desse espírito de intolerância, essa tentativa de levarem a verdade no bolso, essa eterna tendência para tentarem meter o monopólio da mudança necessária no vosso bolsinho partidário ou grupal, dá sempre o mesmo resultado. E o resultado é este: muita gente acaba por ter mais medo do capuchinho vermelho do que do lobo.

22.2.13

maus exemplos.


"D. Januário Torgal Ferreira diz não ter elementos que contradigam as acusações de assédio sexual que recaem sobre D. Carlos Azevedo."

Suspeito que a campanha eleitoral (subterrânea, mas campanha eleitoral mesmo assim) para a eleição do próximo Papa explica o aparecimento agora de uma capa da Visão sobre a sexualidade do bispo Carlos Azevedo, incidindo sobre putativos factos que não são de todo recentes, segundo a própria informação da revista em causa. O bispo Carlos Azevedo, sendo muito próximo de um dos papabili, pode servir para atingir o seu "candidato" (para já não falar nas suas opiniões sobre a necessidade de um novo método de eleição do Papa, que, segundo declarações que terá proferido, não deveria caber apenas aos cardeais, mas às conferências episcopais, bispos, de todo o mundo).
De qualquer modo, aquela "reportagem" da Visão teve já efeitos notáveis. Um deles consiste em fazer confundir, na opinião pública, mais uma vez, homossexualidade com pedofilia, isco em que caíram alguns mata-frades mais apressados. Outro efeito notável, mas talvez mais raro, consistiu em dar a perceber melhor a finura do pensamento do bispo das forças armadas, Januário Torgal Ferreira, que, de uma penada, coloca de pernas para o ar um princípio básico de qualquer sistema judicial num estado de direito, quando sugere uma inaceitável inversão do ónus da prova. É que não interessa nada se o senhor bispo tem ou não tem "elementos que contradigam as acusações de assédio sexual que recaem sobre D. Carlos Azevedo"; o que interessa é se ele tem elementos de prova de algum crime ou acto censurável de alguém; se não tem, o que devia era, no mínimo, calar-se - mas, em todo o caso, o que nunca devia era colocar o ponto de esforço na necessidade de contradizer as acusações. As acusações é que têm de ser provadas, não é a respectiva contradição que tem de ser sustentada.
Claro, alguns acham que isto é coisa "de padres, eles que se entendam". Não acho: isto é mais um tijolo do apodrecimento da palavra no espaço público.

relvismo ao cubo.


Constato, sem grande surpresa, que alguns dos que dizem muito mal de Relvas fazem tudo o que podem para mostrar que têm tanta falta de cultura democrática como o próprio Relvas. Basta ver o furor "revolucionário" com que diabolizam toda a gente que discorde do tipo de boicotes que têm estado a ocorrer.

21.2.13

os equívocos dos boicotes.


Que pensar, enquanto democratas, dos boicotes às aparições dos ministros por esse país fora?
Como já escrevi antes, sou por princípio contra esses métodos, embora - assumo a contradição, que é uma contradição entre o lado emocional e o lado racional - às vezes nos falhe a determinação institucional e acabemos por sentir (sublinho: sentir) "toma que é para perceberes".
De qualquer modo, tendo eu expressado publicamente esse estado indesejável em que os princípios são abalados pela voragem da vida ("quem sabe do desespero dos outros?"), não posso agora fugir a acrescentar dois pontos à reflexão sobre os acontecimentos que se têm sucedido.
Em primeiro lugar, a justificação fácil de que "o Relvas é um bom alvo", quer dizer, o ministro Relvas não tem moral para andar por aí a pregar - é uma justificação que fica muito curta quando o procedimento se generaliza. Especificamente, quando o ministro da saúde, Paulo Macedo, também é boicotado, é claro que a justificação "moral" não pega. Pode não se concordar com nada do que ele tem feito, mas o seu perfil político e comportamental é de recorte bem diferente do que se pode imputar a Relvas. Fica à vista, assim, que a "desculpa Relvas" é curta: não resiste à qualidade do alvo. E não resiste à generalização, porque um acto isolado, espontâneo (?), uma fúria que foge ao nosso padrão democrático, pode ser explicada ou entendida - mas a repetição, a insistência, a adopção do boicote como método, é outra coisa e é condenável.
Em segundo lugar, cabe analisar a acusação de que esses boicotes "limitam a liberdade de expressão" do ministro atingido. Parece-me essa acusação perfeitamente disparatada: qualquer um dos ministros boicotados tem muitos meios e locais para apresentar todas as suas opiniões, de forma perfeitamente audível para os auditórios restritos que testemunharam os boicotes ou para auditórios mais vastos. Usar e abusar da acusação de "limitação da liberdade de expressão" é apenas um truque.
O que está em causa, a meu ver, é outra coisa: é o respeito pelos espaços institucionais e sociais de confronto de ideias. Uma canção, uma berraria, uma pateada, uma vaia, podem perfeitamente servir para incomodar, mas não servem para expor a força das ideias alternativas. Eu perceberia melhor se aproveitassem sessões públicas para dirigir, intempestivamente que fosse, perguntas incómodas aos ministros. Obrigar um ministro a responder - ou a exibir a não resposta - a uma pergunta significativa, a uma pergunta que mostre os silêncios da governação sobre aspectos gritantes da realidde, que exponha as contradições entre o pragrama e a prática do governo, que obrigue a pensar nos efeitos da governação e confronte os responsáveis. Acho que isso seria mais democrático, não constituiria nenhum ataque à pessoa do ministro (o que é, de facto, inaceitável), colocaria as questões no plano da cidadania (abrir espaços de debate que não respeitem o formato escolhido pelos governantes para falarem) e, suponho, seria compreendido mais favoralmente pelas pessoas que não querem que o seu desespero seja instrumentalizado como "campanha preparatória" para manifestações ou quaisquer outras acções, por muito legítimas que sejam.
Quando, em 1969, Alberto Martins, presidente da Associação Académica de Coimbra, se dirigiu ao presidente da república a pedir a palavra, em nome dos estudantes, numa sessão solene que não estava para ouvir os estudantes, provocou um efeito duradouro na história da resistencia à ditadura - mas esse efeito não se deveu a nenhuma agressividade no gesto (o seu pedido foi educadíssimo), antes se deveu ao seu sentido profundo e à sua justeza. Não seremos capazes de reinventar gestos de protesto mais claramente relevantes pelo seu conteúdo do que pela agressividade explícita que exibem?

20.2.13

uma lágrima pelos reservistas com mal usadas cautelas.


Uma simples frase batida explica os boicotes: a política tem horror ao vazio. Se nada preenche a falha, a falta de uma visão alternativa credível, abrangente e mobilizadora, as pessoas não aguentam ficar suspensas sobre o abismo da inevitabilidade do actual estado de coisas. Os políticos não podem pensar que têm o direito de apresentar propostas para sair daqui. O que eles têm é o dever de o fazer. O dever, não o direito. Apressem-se, porque isto é uma urgência. As reservas da República que não se deixem distrair: se pensarem demasiado sem agir, passarão directamente da reserva para o caixote do lixo da história. E os que mergulharem em sangue, suor e lágrimas (talvez em vão), farão o monumento à excessiva cautela politicamente criminosa.

19.2.13

a espuma dos dias que nos afoga.


Francamente acho uma pena que a oposição aos ministros mais apalhaçados deste governo tenha de passar por boicotes aos seus aparecimentos em público. Nunca pensei que a receita que os relvas deste país receitaram em períodos anteriores passasse tão rapidamente a ser-lhes aplicada. Mas, apesar de tudo isto me desgostar (sempre combati a política do ódio), começo a não ter forças intelectuais para me opor a esta guerrilha.
Por quê?
Porque esta guerrilha é, de facto, a resposta a uma agressão brutal a que estamos a ser submetidos. Já só podemos sonhar em sobreviver, parece ser o que nos repetem cada dia. Concretizar projectos pessoais, profissionais? Nem pensar; tudo comido pela voragem da limpeza em curso. A verdade é que o descaramento de alguns destes governantes é tão grande, a lata com que falam de um país que não existe ao mesmo tempo que parecem ignorar o país que realmente existe, esta guerra civil em curso tem sido tão promovida pelas constantes mentiras e hipocrisias da malta que nos governa, que falha a determinação para estar contra o boicote.
(Mas, claro, deve haver por aí quem me acuse de ser mais um privilegiado a tentar contrariar o impulso reformista destes estadistas.)

Face a tudo isto, há sempre os intelectuais de serviço ao comentário. Penso, neste momento, em particular, numa técnica de comentário aos boicotes, protestos e vaias a membros do governo que consiste em sugerir mais ou menos isto: "ah, essa malta que aparece nos protestos não estão nada desesperados com a situação, é tudo faz de conta e política".
Nem me dou ao trabalho de comparar essa conversa com a técnica salazarista de dizer "quem está contra é por ser comunista".
Apenas vos pergunto: quem sabe do desespero dos outros? Tal como se fala de "pobreza escondida", também se pode falar de "desespero escondido", sabem?
Há muito projecto de vida que anda por aí atirado para o canto, substituído por qualquer coisa como "sobreviver".
Projectos profissionais irremediavelmente assassinados por adiamentos fatais.
Pais que têm de prescindir de "gozar a reforma" e investir os seus tostões a ajudar os filhos aflitos. E avós a ajudar os pais dos seus netos.
Velhices douradas em perspectiva substituídas por dias de aperto e viagens até à janela.
"Empreendimentos" travados pelos dias de chumbo, pela incerteza, pelos parceiros retraídos, pelas contas apertadas.

Claro, os que fazem as contas ao desespero dos outros, os que dizem que os desesperados não fazem boicotes (também o "povo bom" antigamente não tugia), acham com toda a certeza que é melhor deixar de viajar do que deixar de comer, é melhor deixar de comprar livros do que deixar de comprar pão, é melhor deixar de ir ao teatro do que deixar de beber leite, é melhor deixar de ir ao cinema do que deixar de comer sopa. E, se calhar, também é melhor deixar de ir à universidade do que morrer de fome.

Estou farto desses que escrutinam com arrogância o desespero dos outros. E absolvem com tanta e irresponsável leviandade os que avançam sobre toda a folha sem qualquer consideração pelo desespero real que campeia. E é que campeia mesmo.

18.2.13

postal para os mais papistas que o papa.


Na sua crónica habitual de Domingo no Público, Frei Bento Domingues, O.P. ("O.P." quer dizer "Ordem dos Pregadores", mais conhecidos como Dominicanos), produziu ontem uma reflexão sobre a resignação de Bento XVI e sobre como deveria ser entendido o papado como parte dessa comunidade humana que é a Igreja Católica. Trata-se de um artigo com o título "Venha o novo Papa."

O autor usa palavras de Bento XVI para balizar a questão: em que devem pensar os eleitores quando se puserem a escolher o novo Papa. E as palavras são estas: "Procurar alguém que perceba o ritmo deste tempo de rápidas mudanças e seja capaz de identificar quais são as questões, de grande relevância para a vida da fé, no governo da barca de S. Pedro e no anúncio do Evangelho." Depois, além da questão "programática", coloca a questão das condições pessoais e institucionais para o exercício do cargo, escrevendo: "o Papa, bispo de Roma, não deveria poder ser escolhido por tempo indeterminado, nem ultrapassar a idade de 75 anos, aquela que está marcada para todos os bispos".

Temos, portanto, uma reflexão de dentro da Igreja que é feita em termos perfeitamente compreensíveis por uma pessoa não participante dessa mesma igreja, que é o meu caso. Acho saudável que, desde o lado de fora, se possa olhar para dentro dessa comunidade e compreender o que dizem os que estão a procurar uma saída para esta situação.

Entretanto, queria chamar a vossa atenção para a frase final deste texto de Frei Bento Domingues: "A Igreja não pode ser uma monarquia absolutista e vitalícia." Completamente de acordo. Pena que os mais papistas que o papa costumem tratar como vozes do diabo quem quer que diga - ou seja suspeito de dizer - isso que Frei Bento Domingues O.P. assim com meridiana clareza fez estampar nas páginas do Público.

15.2.13

receita para arrancar violentamente a farda de governante.


Alguns sentirão a sua passagem pelo governo, mesmo que seja "na cultura", como uma mazela. Fica, assim, o problema "como curar a mazela" - especialmente se dessa aventura não tiver ficado nenhum rasto digno de grande nota. Vejo agora que alguém julga ter inventado o tratamento - instantâneo - para essa maleita: escrever no próprio blogue a "ameaça" de que se mandará alguém - algum agente dessa potência do mal que é o fisco - a "ameaça" de que se mandará alguém "tomar no cu".

Pronto: o homem já não é ex-secretário de estado de Passos; agora é o "homem de cultura" que se propõe mandar não sei quem "tomar no cu".

É que já não há ** para estas palhaçadas.


*** Adenda ***

"Teoria Viegas" para uma saída pós-moderna do governo: só "quando você mandar tomar no cu pela primeira vez vai retomar as rédeas da sua vida nas suas mãos" (Cris Nicolotti).



(esta foi roubada ao Daniel Oliveira)

13.2.13

Entrevista imaginária com José Tolentino Mendonça.


Não sendo religioso (sou agnóstico), julgo que um dos focos de tensão social mais importantes em muitas partes do mundo actual (podendo, de futuro, vir a ser esse o caso em países como Portugal) gira em torno da religião. (Quer dizer: pode não ser exactamente a religião, mas antes as dinâmicas sociais e culturais que através dela se expressam.) Há quem tenha opções grupais muito definitivas nessa matéria: alguns fiéis desta ou aquela confissão religiosa vêem o resto do mundo (outras religiões e não crentes) como o inimigo; alguns ateus (ou, de alguma outra forma, não crentes) acreditam que a religião é o sumário de todo o obscurantismo. Discordo profundamente de qualquer uma dessas posições: a religião é às vezes causa de sofrimento e atraso, sendo noutros espaços e tempos factor de progresso e libertação.
Vem isto a propósito de um texto e de um homem: José Tolentino Mendonça, autor da peça O Estado do Bosque, em cena no Teatro da Cornucópia. Já aqui escrevi sobre o espectáculo de teatro daí resultante – o qual, aliás, aconselho vivamente. Esse texto interroga de forma muito relevante a nossa pertença ao mundo, tenhamos ou não algum interesse na questão religiosa – mas não se pode ignorar que José Tolentino Mendonça, neste magnífico texto poético para teatro, nunca deixa de ser um cristão e homem de igreja, sacerdote católico, ao mesmo tempo que exerce n’O Estado do Bosque a sua condição de intelectual, escritor e poeta, com uma forma própria de estar no mundo e pensar. Tudo isto nos levou a imaginar uma entrevista com o autor.
Nesta forma de “entrevista imaginada”, o que vos posso oferecer só tem perguntas, claro.

*

Pergunta: Como leitor e espectador, lendo o seu texto e vendo a peça num ciclo intitulado “O Nome de Deus”, ao lado de um texto de Pasolini, ateu e comunista, vejo que “O Estado do Bosque” é integrado por Luís Miguel Cintra no renascimento da inquietação religiosa que ele vive, mas sempre como uma procura mais geral pelo sentido da vida, uma procura que, no dizer dele, não separa, antes junta, crentes e não crentes. No espectáculo, o poço está lá para assinalar essa ideia, a partir do Evangelho e do episódio da Samaritana, de que a verdade pode vir daquilo que, sendo impuro para os critérios oficiais, é autêntico. O que lhe pergunto é: qualquer um pode ir à procura? A personagem Peter era vendedor, gerente num stand de carros de luxo, e partiu em busca do bosque. E vai discutir mitologia grega com o guia. O que lhe pergunto é: os “guias” que temos aceitam partilhar a procura com qualquer um? Há muita gente convencida de que os que procuram o sentido da vida pela via da religião, especificamente pela via do catolicismo, nem sempre têm essa abertura. Nesse caso, o sacerdote e responsável católico que o José Tolentino Mendonça é, vê nisso um desafio de abertura?
*
Pergunto-lhe: na peça há uma ONG, uma associação ambientalista, que toma conta do guia cego, ou, para usar a expressão do texto, “lhe dá algum apoio” desde que ele se estabeleceu como eremita à entrada do bosque. Sem aprofundar, o texto parece irónico nesta referência, como se dissesse “há sempre uns burocratas que querem tomar conta dos guias”. Para um sacerdote católico, de certo modo alguém que pode rever-se num guia à beira do bosque, que se expressa com grande liberdade sem deixar de pertencer e ter responsabilidades num colectivo que é uma igreja, há aqui ecos de uma reflexão acerca das muitas forma possíveis de combinar a liberdade e a pertença – não apenas na igreja, mas em muitas outras situações onde essa combinação não é linear?
*
Pergunta: Na cena III, “o diálogo do poço”, irrompe um tema que se desvanece rapidamente, sem deixar rasto (ou, pelo menos, eu perdi-lhe o rasto) no resto do texto. É o tema da espera. A espera como preparação. Quem o diz é o guia (“PETER – Que preparação é essa? O que é que nos falta? JOHN WOLF – A espera.”) Em temas filosóficos, tendo a ler nesta espera o tema da passividade: nós não somos só actividade, não somos apenas agentes a impender sobre os outros, temos também de ser a passividade que absorve a influência dos outros, do mundo que nos entra pela pele dentro, do mundo que não depende da nossa constituição; precisamos que a actividade, ou o activismo, não capture a abertura, a receptividade. O que lhe pergunto é: que falta nos faz essa espera hoje e como podemos praticar a espera em tempos de urgência? Por outro lado, mais a pensar na sua condição de sacerdote, a espera pode ser contemplação? Ser-nos-á permitido, legítimo, hoje, no meio da precariedade generalizada, voltar a juntar a contemplação com a acção? E como?

***

Luís Miguel Cintra fala sobre "O Estado do Bosque", de José Tolentino Mendonça:




12.2.13

América, Alemanha... e nós.


A edição americana da prestigiada revista (de divulgação) científica Scientific American publicou um artigo intitulado "The U.S. Could Learn from Germany’s High-Tech Manufacturing". Em poucas palavras, diremos que apresenta a seguinte tese: a Alemanha deve a sua robusta economia dos últimos anos, em parte, ao sucesso de seu sector industrial, desde materiais básicos a equipamento industrial. E a razão da sua competitividade, mesmo em comparação com as indústrias que dispõem de mão de obra mais barata na Ásia e em outras partes do mundo, é o bom uso das novas tecnologias.
O que queria era chamar a vossa atenção para dois comentários em linha, que traduzo tosca e livremente:
Gostaria de ver uma comparação das formações dos CEOs das empresas industriais alemãs com as dos CEOs das empresas similares nos Estados Unidos. Suspeito que nós (EUA) temos mais "gestores" e eles têm mais gente com formação em ciência e engenharia. Também seria interessante comparar os salários dos CEOs alemães e norte-americanos, expressos em múltiplos do menor salário nas respectivas fábricas.
Estou convencido de que o declínio da indústria americana começou com o aumento do número de MBAs a gerir as nossas empresas. Antes, a alta administração realmente entendia os produtos que tinha investigado e produzido. Agora, tudo é apenas números. Tornámo-nos uma nação de empresas virtuais. Produtos baratos, mas que rapidamente deixarão de ter interesse a qualquer preço.

Então... e por cá?

11.2.13

vem aí o PS ?


1. Então, parece que o PS está unido, em torno de António José Seguro, que saiu da Comissão Nacional com o "Documento de Coimbra" (título fantástico, de última hora, porque o proto-programa chegou lá com o título "Portugal Primeiro", a mesma palavra de ordem com que Passos Coelho ascendeu à liderança do PSD em 2010). O SG, em conferência de imprensa, jurou a pés juntos e muito hirto que o documento é seu e muito seu, pese embora ter ouvido muita gente para o elaborar (de passagem, como quem não quer a coisa, mencionou António Costa como um dos escutados, certamente com muito esforço da sua paciência, já que há muitos anos que Seguro não tem paciência para ouvir Costa). Já dei uma rápida vista de olhos ao documento (que não é ainda uma moção ao congresso do partido, nem um programa de governo, mas o ponto de partida dessas outras fases) e vejo lá novidades importantes relativamente ao que o SG tem andado a dizer quanto à natureza da crise - mas tenho a certeza que AJS escreveria lá o que fosse necessário para não deixar margem a uma candidatura de AC. (Não sejam maldosos, leitores: isso pode perfeitamente ser creditado à flexibilidade política de AJS e à sua vontade de abrangência.)

2. Pelo que tenho ouvido, pelo que sei da poda e pelo que imagino, deve haver muito choro e ranger de dentes em certos sectores do PS por António Costa ter deixado António José Seguro sozinho em campo. Compreendo. Até porque eu, não sendo propriamente um "compagnon de route" de nenhum dos dois, vejo em AC mais capacidade e melhores ideias para liderar o país do que as que vejo em AJS. Basta ler e ouvir o que AC disse nesta semana e pouco de "crise da unidade". Têm razão os que dizem que não seria nada desonroso para AC tentar e perder. Certo; mas há outros ângulos para ver a questão.

3. A capacidade de um partido para se mostrar plural e fazer disso uma força, em vez de uma fraqueza, depende da forma como todas as suas vozes se mostram interessadas no exercício concreto da pluralidade. Com uma onda de dirigentes nacionais do partido a usar, de forma manifestamente concertada (e, portanto, autorizada ou encomendada pelo SG) a acusação de deslealdade para invectivarem os suspeitos do crime de discordância, o que se prometia era uma batalha campal sem prisioneiros (só mortos). Se Seguro tivesse dito "precisamos de um congresso esclarecedor, convido todas as correntes a apresentarem-se de peito aberto ao próximo congresso para debatermos tudo e todos até ao fim, porque isso é que é saudável e não há que temer as diferenças", se Seguro tivesse abordado assim o problema, teria aberto o caminho para uma real clarificação, sem prejuízo nenhum para o desempenho autárquico do partido e com grandes vantagens para as batalhas seguintes. Desdramatizar as diferenças e valorizar o debate. Mas não, não foi nada assim que a direcção do PS colocou a questão, preferindo afiar as armas e proferir gritos de guerra que lhe dessem vantagem táctica na guerrinha interna. Nesse contexto, o surgimento de qualquer candidatura alternativa arriscava, de facto, prejudicar o partido, numa altura em que a militância local está antes de mais nada empenhada em ganhar a freguesia ou a câmara. Um confronto civilizado entre Seguro e Costa, bem focado nas questões nacionais e não na mercearia, teria sido útil para o PS - mas esse confronto civilizado foi impedido pela direcção do PS, que empolou e distorceu o imperativo estatutário de fazer um congresso este ano para apresentar a coisa como uma exigência estapafúrdia da "tralha socrática". Neste contexto, poucas alternativas restavam.

4. Nesta altura do campeonato, AJS e os seus apoiantes que gritaram "deslealdade" devem estar muito satisfeitos com a operação. Está garantido que liderarão o PS até às legislativas e, muito provavelmente, até ao governo. O próximo ciclo no PS só começará depois da derrota do próximo governo do PS. (Cada ciclo acaba sempre com uma derrota, é claro.) Resta saber como correrá tudo isso. O país precisa que corra bem. É que a democracia não aguentará muito mais choques como aquele que estamos a viver actualmente, em que o povo descobre que os seus governantes não faziam ideia do que diziam quando estavam na oposição e se fartaram de fazer promessas que não tinham nenhuma aderência à realidade. As democracias não resistem a tudo: se o próximo ciclo for tão decepcionante como este, não podemos estar certos de que não frutifiquem tentações perigosas.

5. Entretanto, tenhamos esperança. Pode ser que Seguro mude e mostre ser capaz de fazer uma síntese das contradições do PS, virado para o futuro mas sem conceder ao PSD a errada análise das causas da crise, como tem feito até agora. (Nesse ponto, lendo o "documento de Coimbra", espero para ver como será a peça interpretada quanto for levada à cena.) Enquanto a Terra gira, em torno do seu próprio eixo e à volta do Sol, vou-me contentando com ser eleitor em Lisboa, cuja Câmara Municipal continuará a ser um bom sítio para mostrar o que é fazer política concreta a pensar nos cidadãos. Felizmente, não voto em Cascais nem em Matosinhos, porque, aí, até nas autárquicas estaria a pensar em formas de fazer política que me desgostam.

as sociedades do controlo.


Deleuze's Postscript on the Societies of Control.



(Roubado ao Desertações)

9.2.13

O Estado do Bosque.


1. Fui ontem, de novo, sorte minha, a uma das celebrações que mais me alimentam: Teatro no Bairro Alto pela gente da Cornucópia. O Estado do Bosque, texto teatral muito recente de José Tolentino Mendonça, acabado de editar pela Assírio & Alvim. (Falhei a estreia absoluta, na quinta-feira, com grande pena minha, porque não havia lugares onde eu coubesse, nem mendigando.) Tenho de começar por uma confissão: li o texto poucos dias antes de ir ao teatro, o que, tratando-se de um texto novo, marca a forma de ver tudo, porque a leitura cria um estado de expectativa diferente daquelas situações em que vamos ver representar um texto que já lemos ou vimos há muito.

2. Estamos naquele teatro, transformado, sem as habituais bancadas, dispostos em volta da cena, envoltos pelas escuras paredes, como também nós perdidos no bosque. Esta peça de teatro é um texto de um poeta, sabe-se. E é levada à cena pela companhia, e pelo encenador, que, a meu ver, são os mais metafísicos da sua arte, hoje entre nós. Por captarem o que não está no plano do palpável, à frente dos nossos olhos. Tudo honrou essa condição, dando-nos a ver um espectáculo poético e metafísico, de grande beleza e profundidade. Inquietante. Porque nos pergunta a cada passo se ainda estamos com garra de estarmos vivos. Vivos o suficiente para voltarmos a pensar outra vez. E porque nos sentimos perto do encantamento – e é esse, talvez, o problema: porque não se vive sem encantamento, tanto quanto, por outro lado, o encantamento é a cova onde podemos perder o norte.

3. Nesta peça há sete cenas, todas no texto se chamam diálogos. Os diálogos “da orla”, “da casa”, “do poço”, “do limiar”, “da clareira”, “do sonho”, “do bosque”. Há um bosque; há um estar à beira do bosque; há pessoas que se encontram nessa fronteira entre fazer ou não fazer a viagem; há um guia para conduzir os curiosos, ou necessitados, bosque adentro – e esse guia é cego, a ele o tremendo do bosque não o cega, porque cego já ele é e qualquer cegueira que lhe seja acrescentada virá de dentro, ou dos outros, e não do insondável bosque, que por esse lado nada pode contra ele. E, ali, naquele momento em que estamos presentes ao teatro, a escuridão é o nosso bosque, a escuridão preparada pelo encenador e actor que corporiza a personagem do guia.

Fotografia daqui: Local.pt

4. Há, pois, sete cenas; todas elas no livro se chamam “diálogos”. Mesmo o “diálogo do sonho”, em que o guia dialoga com o Destino, que ali se torna um diálogo interior. Mesmo a cena IV, “o diálogo do limiar”, que só conta com a fala de John Wolf, o guia cego para o bosque. Mas isso justifica-se: é nesta cena que Wolf faz a sua oração ao Nada, uma glosa dessa oração central dos cristãos que é o Pai Nosso. Ora, a oração (ao “Pai Nosso que estais no céu” ou ao “Nada nosso que estás no Nada”) não é um monólogo: tem um interlocutor, pressupõe uma história comum anterior, uma relação em curso, um futuro à espera. Como escreve Cintra, o “núcleo da viagem estática de John Wolf” é “uma glosa do Pai Nosso, onde a palavra Pai, Deus, se substitui por Nada, ainda que menos blasfemo do que se pensa, porque na nossa cabeça de adultos racionais já entendemos que Deus não pode ser o Velho de barbas…”. Assim, todas as sete cenas são diálogos, mesmo que isso escape a quem não pertença à tradição com que conversa esta peça.
 
5. Tenho andado, confesso, agnóstico que sou moderadamente atento às coisas da religião, tenho andado ansioso com os trilhos deste homem, encenador e actor: Luís Miguel Cintra está, declaradamente, de novo à procura de sentido pela religião. E esta peça é mais um passo nessa procura. Ele é do tempo em que o sopro renovador do Concílio Vaticano II varria a igreja universal; do tempo em que por cá os “católicos progressistas” jogavam a fé na resistência à tirania política; e do tempo, depois, em que a “revolução” misturou tudo isso com urtigas, que não matam mas fazem muita comichão. E encontra-se, agora, pouco a pouco, a tomar consciência de se ter um tanto esquecido disso – sem renegar, mas sem renovar os votos. E, não sei bem com que urgência, dá-se conta (quando leva à cena, no Nacional, um auto religioso de Gil Vicente?) que talvez os seus espectadores não saibam do que ele fala (do que fala o seu teatro) quando fala de dentro de uma tradição religiosa. E dá-se conta de que talvez ele possa suprir, com uma ponte feita de linguagem, essa ameaça de um corte na comunicabilidade entre essa tradição e preocupações de hoje. Volta, assim, a galope, o “católico progressista” (entre aspas, por ser um rótulo) – e volta político, anticapitalista. Um Deus, uma fé, contra a massificação consumista, pela responsabilização de cada um face a todos.

6. Este espectáculo traz mais para a luz do dia, mais para a frente do palco, um Cintra em ebulição espiritual no processo de se encontrar com um dos homens da Igreja que hoje mais à vontade praticam entre nós (sem grandes excitações mediáticas) uma pertença ao pensamento inquieto com o momento presente: José Tolentino Mendonça, padre católico, poeta, intelectual, também um responsável nas estruturas do catolicismo. Ele escreveu esta peça, O Estado do Bosque, que vem agora à cena num ciclo do Teatro da Cornucópia intitulado “O Nome de Deus”. Um ciclo que inclui uma leitura do ateu e comunista Pier Paolo Pasolini – porque Cintra insiste em chamar textos anticatólicos ao seu pensar do espiritual (sem que fiquemos a perceber, nós, como se relaciona Cintra com uma Igreja oficial que, ao nível global, apesar de Tolentino e outros, coloca esta sua abertura cristã claramente em contracorrente com a tendência para vigiar e punir as heterodoxias).
Cintra escreve que a peça de Tolentino “é uma revisitação contemporânea, abstracta, é o negativo do Auto da Alma”, que “tenta a criação de uma cumplicidade nova, laica”, na qual entra “a ideia de salvação, de percurso ou viagem”… pelo bosque. Um bosque contemporâneo, onde somos muitíssimo mais livres de nos perdermos – se é que isso é liberdade. Sendo, de qualquer modo, pluralidade – “almas humanas”, no plural – porque Cintra vê em Tolentino a fraternidade em vez da autoridade, o espaço para a dúvida como possibilidade de Verdade.

7. Contudo…
No dizer de Cintra, a peça tem “mil sobreposições aos episódios da Bíblia” e o encenador joga com isso. Estranho, contudo, que não tenha grande peso, na explicação que Cintra dá da sua leitura, a possibilidade de outras sobreposições – não da peça com a Bíblia, mas da peça com outros textos, contextos e pretextos da cultura contemporânea. Há, ocasionalmente, evocações filosóficas e antropológicas que são atiradas inconsequentemente para a fogueira, sem nada chegarem a aquecer (o eterno retorno, a questão dos ritos, o tema da espera). Mas isso, embora provoque algum desconforto no espectador que fui, como se distraísse sem necessidade e sem proveito, pode moer mas não mata. A minha questão é outra.
Todo o texto é percorrido por uma tematização do “caminho”, do “caminhar”; fala-se mesmo em “caminho da floresta”; o guia cego viajou milhares de quilómetros pelo mundo; o tema do “faz-se caminho ao andar” é explicitado numa fala de Wolf: “Quem apenas quer a meta não viaja”. Por outro lado, já se disse que tem um lugar central nesta peça uma “oração ao Nada”. O Nada. Ora, o “caminho” e o “Nada” têm muito que se lhes diga no debate filosófico do século XX. Que não vamos revisitar; apenas evocar num aspecto muito circunscrito, para perceber se não será preciso ir além das “mil sobreposições aos episódios da Bíblia” para ser espectador desta obra.

8. [Intervalo: se Cintra lesse isto diria que eu sou um intrometido e não percebi nada – ou não tivesse ele escrito: “o que a peça nos provoca é, uma vontade de remeter a filosofia para a carga lúdica da vida e simplesmente entrar em estado de oração”.]

9. Comecemos pelo Nada. O “Nada” pesa muito na história da filosofia de um tempo onde, até certo ponto, ainda estamos. Toco apenas num pequeno ponto: das profundezas da década de 1920 vem uma disputa pesada e nunca mais sanada, no centro da qual está a invocação do “Nada” como questão central na filosofia – ou, alternativamente, como questão espúria.
Rudolf Carnap, no seu ensaio de 1931 intitulado “A eliminação da metafísica através da análise lógica da linguagem”, desenha um programa filosófico de eliminação da metafísica como “palavreado sem sentido”. Essa “eliminação” resultaria da demonstração de que aquilo que parecem enunciados nos textos “metafísicos” não passam de objectos linguísticos desprovidos de significado, o que, supostamente, se demonstraria por uma combinação de verificação empírica e aplicação da lógica formal. A “eliminação da metafísica”, de Carnap, toma como um alvo concreto a lição inaugural que Martin Heidegger tinha pronunciado em 1929 na Universidade de Freiburg, intitulada “O que é a metafísica?”. Heidegger estava em grande destaque, tendo acabado de publicar “Ser e Tempo” (1927), que se tornou imediatamente um clássico, sendo que a escrita dessa obra aconteceu em grande parte durante a sua longa estadia em Marburg, a universidade de Carnap por essa altura. Alguns autores consideram que esta “disputa” foi um dos momentos de choque que criaram a divisão entre a chamada “filosofia continental” e a “filosofia analítica”. Ora, o que interessa para o nosso propósito aqui agora é que o “Nada”, o “nadificar”, a relação do “nada” com a negação, e a importância que Heidegger concede a essas questões numa consideração do que seja a tarefa da filosofia, é precisamente o foco do “ataque aos metafísicos” desferido por Carnap.
Carnap é uma figura central do “positivismo lógico”, sendo um dos três redactores de "A Concepção Científica do Mundo: o Círculo de Viena" (1929), mais conhecido como o Manifesto do movimento, onde o grupo se coloca na oposição entre duas formas de fazer filosofia: contra a “metafísica especulativa”, pugnando pela investigação antimetafísica "aplicada aos factos", praticada no quadro de uma concepção científica do mundo. Heidegger representa tudo aquilo a que se opõem – e a temática do “Nada” é uma chave de tudo aquilo que abominam. Ora, a peça não deixa de lado esta fractura entre metafísica e ciência, ou, pelo menos, entre as pretensões totalizantes que existem de um e outro lado. A personagem Viviane Mars, uma etóloga, que estuda o comportamento humano enquanto comportamento animal, é suavemente ridicularizada no texto como uma cientista de vistas estreitas enquanto ser humano. Esta é uma cena que (embora isto possa ser defeito meu como leitor) acaba muito mais clara na representação do que no texto. Escreve Cintra: “Duma cena gosto muito de maneira especial. A cena da pobre etóloga que tudo reduz a regras, como se de um animal a outro não houvesse diferença, como se todos os homens fossem iguais. Dir-se-ia de facto uma cena que se passa na montra de algum museu de História Natural, ou dentro da TV em cenário artificial, que é mais ou menos a mesma coisa. Nenhuma metafísica. (…) Em cena um rapaz e uma rapariga. Entra pelos olhos dentro que o desejo anda por ali, e o raio da moça agarrada ao livrinho, com a vida diante dos olhos, não consegue largar o mal do nosso tempo, a técnica, perante um moço que lhe está literalmente a cair aos pés!” Ora, a meu ver, o difícil diálogo entre ciência e religião sai daqui com um retrato que, sendo poético, resulta simplista demais para as minhas preocupações.
O peso do “Nada” nesta peça causa-me, como se vê, dificuldades. Para já não falar do nihilismo em sentido mais lato (o que tem o nihilismo a ver com o Nada desta peça?), para um leitor de Heidegger (como eu: um leitor que se libertou do fascínio heideggeriano lendo o judeu Lévinas), o “Nada”, posto na equação do Pai Nosso, perturba. E não é por razões de ortodoxia religiosa que perturba…


Fotografia daqui: Local.pt

10. O outro tema “heideggeriano” desta peça é o tema do “caminho". Martin Heidegger escreveu muito sobre o “caminho”. Que queria que se falasse dos seus textos como caminhos (em vez de obras), para quem “estar a caminho” era algo como um método (melhor: algo em vez do método). Escreveu sobre “caminhos de floresta”, “caminhos de lenhadores e guardas-florestais”, eles que sabem “o que significa estar metido num caminho de floresta”, “caminhos que, o mais das vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não-trilhado”. Meter-se por atalhos, no meio da natureza selvagem, que não é um parque geometricamente humanizado, e aí perder-se: só perdendo-se se encontra a floresta. (Cf. Martin Heidegger, Caminhos de Floresta, Gulbenkian, incluindo o prólogo de Irene Borges Duarte.)

11. Temos, portanto, dois temas heideggerianos que escapam à sobreposição com a Bíblia explicitada por Cintra. E qual é o problema? Nenhum. Excepto tudo. Excepto que também há, num certo Heidegger, um certo Deus, com ou sem esse nome, que é, aí, perturbador.
Na “Carta sobre o Humanismo”, Heidegger escreve que “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação.” E os pensadores e os poetas gostam que lhes entreguem o trabalho da guarda. E é de pensadores e de poetas que falamos quando falamos de Tolentino e de Cintra. Mas não nos enganemos quanto a Heidegger, porque ele não crê que os pensadores e os poetas sejam quem fala pela linguagem. Heidegger esclarece: “o pensar é o pensar do ser”. Mas não nesse sentido de pensarmos nós o ser: o “pensar do ser” é o próprio ser a pensar-se. Daí vem o problema. O problema com o “Ser”, com os “Deuses”, com o “Nada” desta peça, não é com eles. O problema é: quem fala em nome do Ser? Quem fala em nome dos Deuses? Quem fala em nome do Nada? Quem diz “essa fala não é autêntica” ou “essa fala é autêntica”? Quem manda calar ou manda falar em nome desse juízo de (in)autenticidade? Não é, afinal, o “Ser”, mas quem fala em seu nome. E este perigo é real, porque pode reservar aos funcionários do Ser o estatuto de autentificadores, deixando aos demais a escuta: “Antes de falar, o homem deve novamente escutar, primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dócil a este apelo, pouco ou raramente lhe restar a dizer.” Esta ideia de escuta é apresentada de forma poética, associada ao cuidado, ao deixar-se interpelar, ao “estar exposto ao apelo do ser” – mas contém o perigo de uma vivência errada da passividade, do “estar postado na clareira do ser”. É, aliás, contra esta dominação pela perspectiva ontológica que vem Lévinas contrapor (por exemplo em Totalidade e Infinito) algo muito mais ético: a descoberta da alteridade, a prioridade ao rosto do Outro. Em vez do “Ser” – ou, pelo menos, em vez da tentação de falar em nome do Ser.

Fotografia de Luís Santos, no sítio do Teatro da Cornucópia.

12. Estou a acusar Cintra de fazer uma leitura curta do texto, por explicitar as suas sobreposições bíblicas e deixar de lado outras sobreposições? Não, não estou, até por serem belissimamente poéticas – e humanas – as formas que encontrou de sublinhar essas sobreposições bíblicas. Leia-se o encenador a explicar a importância do poço na encenação: “Escolhemos o poço como emblema do ciclo de que se fala no texto, e quisemos figurar no espectáculo a Samaritana sem fé que dá de beber a Jesus, porque o tema é esse, e a ideia principal da peça está no episódio narrado por João: Cristo para matar a sede ou para gerar verdade pede a água do poço a quem é impuro mas verdadeiro, e não o reconhece. E a água do poço passa a ser a verdade de todos os homens, crentes ou não, e do gesto de matar a sede sairá o novo mundo.”
O que estou a dizer é outra coisa: é que o mistério do Ser oferece poesia, oferece interrogação, oferece beleza – mas pode também ocultar a concretude do Outro. A transcendência pode cegar. E a cegueira pode matar: nem todos os cegos são guias no limiar do bosque; alguns cegos, especialmente quando se pretendem guias, podem ser lobos que nos atacam quando já entrámos no bosque e estamos desorientados. E talvez não sejam os deuses, nem o Ser, nem o Nada, que serão capazes de nos salvar desse inferno: só o Outro concreto, sem ontologia nenhuma pelo meio, só o rosto irredutível da alteridade nos pode salvar da selvajaria. Essa é, como sempre, a minha interrogação, até o meu medo, sempre que alguém me fala do mistério. Pois, quem fala em nome do mistério?

13. Acho que o leitor duvidará de que este texto seja sobre uma peça de teatro. Mas é. Sobre uma das peças do grande teatro do mundo: o sentido.


(As citações de Luís Miguel Cintra são do seu habitual texto "Este Espectáculo", que está disponível no site da Companhia. Materiais sobre este espectáculo no sítio da Cornucópia.)

8.2.13

ecos do clamor da comunidade científica e académica (ainda a FCCN).


Recebi, dos promotores da petição pública contra a integração da FCCN (Fundação para a Computação Científica Naciona) na FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), informação que passo a divulgar. (Informação substantiva sobre o que está em causa: aqui. )

***

A Petição à Assembleia da República contra a Integração da FCCN na FCT foi subscrita entre 24 de Janeiro e 7 de Fevereiro de 2013 por mais de 7.600 subscritores, entre os quais:
• 174 directores/coordenadores de Unidades de I&D avaliadas positivamente e financiadas pela FCT, constituindo a maioria dos directores/coordenadores de todas as Unidades de I&D avaliadas positivamente e financiadas pela FCT.
• 80% dos directores/coordenadores dos Laboratórios Associados criados nos termos do Decreto-Lei n.º 125/99, de 20 de Abril, que também estabelece que estes laboratórios são formalmente consultados pelo Governo sobre a definição dos programas e instrumentos da política científica e tecnológica nacional.
• 3 dos presidentes dos 4 conselhos científicos da FCT, ou seja todos os que trabalham em instituições portuguesas.
• 22 dos 34 membros dos conselhos científicos da FCT que trabalham em instituições portuguesas, constituindo a maioria dos membros destes conselhos científicos.
• Os 5 ex-presidentes da FCT/JNICT que exerceram funções nos últimos 26 anos, com excepção de um entretanto falecido que exerceu funções durante seis anos.
• Pelo menos 7 ex-vice-presidentes ou ex-vogais do Conselho Directivo da FCT/JNICT.
• O ex-presidente da UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento, e uma ex-vogal do respectivo Conselho Directivo, que exerceram funções durante 6 anos e meio.
• 1 dos dois ex-presidentes do ICCTI – Instituto de Cooperação Científica e Tecnológica Internacional, e uma ex-vicepresidente deste instituto, que exerceram funções durante 5 anos.
• Pelo menos 17 ex-membros de conselhos directivos de Institutos Públicos de ciência e tecnologia ou ex-membros do governo na tutela da ciência e tecnologia e/ou do ensino superior.
• Pelo menos 4 ex-ministros, entre os quais o que teve a tutela da ciência e tecnologia em 12 dos últimos 20 anos, e um que tutelou o ensino superior em 2 anos.
• Pelo menos 8 ex-secretários de estado, entre os quais um de ciência, tecnologia e ensino superior durante 5 anos e meio, um do ensino superior durante um ano, e um do ensino superior e investigação científica também durante um ano.
• Pelo menos 2 ex-reitores de universidades públicas, um ex-presidente e o outro ex-vicepresidente do CRUP – Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas.
• 2 dos 3 ex-presidentes da FCCN – Fundação para a Computação Científica Nacional desde que foi criada em 1986, que cumulativamente exerceram funções durante 19 anos.
• Pelo menos 3 ex-vogais do Conselho Executivo da FCCN.


Também expressaram posições contra a integração da FCCN na FCT através de comunicados públicos e/ou ofícios dirigidos ao Governo:
• O CRUP – Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, correspondendo ao consenso dos reitores de todas universidades públicas.
• O CCISP – Conselho Coordenado dos Institutos Superiores Politécnicos, correspondendo ao consenso dos presidentes de todos os institutos politécnicos públicos.
• O CLA – Conselho dos Laboratórios Associados.
É de notar que nenhum destes conselhos foi consultado pelo Governo a propósito da possibilidade de integração da FCCN na FCT, contrariamente ao que está previsto na Lei.

Conclui-se, assim, que a integração da FCCN na FCT não teve em conta pareceres das instituições científicas e académicas, as quais vieram por iniciativa própria a manifestarem-se contra tal integração, e é contrária às posições da maioria dos membros dos conselhos científicos da própria FCT e da maioria dos directores/coordenadores de Unidades de I&D avaliadas positivamente e financiadas pela FCT, assim como de muitos anteriores dirigentes de organismos centrais de ciência, tecnologia e ensino superior e de anteriores governantes com a tutela destes sectores. A decisão também é contrária à posição expressa por um grande número de membros da comunidade científica e tecnológica nacional que, de acordo com as boas-práticas internacionais de regimes democráticos modernos, deveria ter sido envolvida na decisão.

É inacreditável que não esteja a ser ouvido pelo governo o clamor da comunidade científica e académica!


7.2.13

Como Responder ao Momento Presente?


Passo a citar:
O momento ou o instante ou o que é iminente e tem o “acesso bloqueado” pode ser compreendido como aquela hora que um dia vem ter connosco, raras vezes preparados para ela, embora possamos estar quase a adivinhá-la, mesmo à espera dela — como se diz que uma mulher espera um filho —, e nessa hora um mundo acabou de morrer e nessa hora um mundo acabou de nascer, hora irrepresentável, reveladora, libertadora, esmagadora, fonte, coração de alguma coisa ou de todas as coisas. (...)
O momento presente embora tenha parentes nesta família não tem uma genealogia coincidente. Na expressão “momento presente” estão implicadas uma duração e uma evolução. Trata-se de um “aqui e agora” dotado de uma duração que se cristalizou — tomando para uso próprio o conceito de Ian Hacking tematizado em The Scientific Reason (2009) —, quer dizer, no quadro da evolução da vida pública e privada em Portugal nos últimos anos, o momento presente aparece-nos como irreversível. A partir de agora, sentimos na pele e no espírito que nada ficará igual, nada será o mesmo, quer dizer, isto a que chamamos crise — que tem costas largas e um mau alfaiate — agarrou-se às nossas vidas, moldando-as. Ainda mais, tememos que o estado de crise se torne habitual. A pergunta: até onde nos podemos habituar? tem uma medida última — que é nosso dever combater —, a do cavalo do inglês.

Maria Filomena Molder, Como Responder ao Momento Presente?, na íntegra aqui

é para isto que servem os filósofos?


Eu habituei-me a julgar que os filósofos têm uma certa obrigação de contribuir para a cidade. Contribuir com alguma reflexão que fuja a duas doenças do pensamento sobre o que é público: contra a doença da tecnicidade (em vez do "sabemos muito bem como fazer isto ou aquilo, mas não sabemos para que serve nem isto nem aquilo", ajudar a pensar sobre o que queremos e sobre se é bom querermos isso ou não); contra a doença do "ataque à pessoa" (em vez de andarmos por aí a "matar inimigos" a crédito de guerras eventuais, preferirmos debater opções e caminhos para concretizar opções). Claro que há filósofos que, como acontece noutras profissões, estão tão entretidos com os seus problemas técnicos que nada querem dizer em público sobre o que é público. Posso não concordar, mas posso, até certo ponto, respeitar. O que já não posso respeitar é que filósofos encartados, tendo vindo a lume falar à cidade, o façam contribuindo para aqueleas doenças que antes mencionei.
Tudo isto a propósito de um filósofos, de seu nome João Cardoso Rosas, que se interessa filosoficamente por Ética e Filosofia Política - e que no entanto escreve e publica um artigo como este, ontem no Diário Económico. Um senhor filósofo, que escreve um artigo de puro ataque pessoal a um determinado político, assina e por baixo da assinatura apõe "Professor Universitário", não se envergonha de um texto de puro ódio? As suas responsabilidades intelectuais não o envergonham de um texto fantasioso, sectário, de facção - um texto que, se serve algum propósito, só pode ser o de mostrar que um intelectual é capaz de descer tão baixo como qualquer outra pessoa?
Como cidadão, preocupa-me que haja intelectuais deste calibre que se prestem a estes serviços, em nome de uma concepção de democracia que quer fazer dos partidos máquinas monolíticas, seitas onde só se pode ulular o mantra do chefe, capelinhas de obediência acéfala. Como devo comparar o conteúdo deste artigo com as declarações dos dirigentes nacionais do PS que fazem fila à porta do Rato a acusar de deslealdade quem quer que, sonham eles, tenha uma concepção não monárquica do PS? Só posso comparar deste modo: acho infinitamente mais triste que um filósofo, cujos interesses declarados são a ética e a filosofia política, empenhe a sua pena num texto desta mesquinhez. Mas isso sou eu que tenho uma concepção certamente ultrapassada acerca do papel do filósofo na cidade.


Os desastres da guerra, a caminhada do medo.


Desde 31 de Janeiro até 14 de Abril está patente, na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, a exposição "Os Desastres da Guerra", pintura e desenho de Graça Morais.
Uma das séries incluídas nesta exposição tem por título "A Caminhada do Medo". Deixamos abaixo duas peças dessa série. Encontram mais informação no blogue da própria artista.

Como imaginam, Graça Morais entra pelos nossos dias dentro com estas suas obras mais recentes. Aconselho vivamente a visita.

Graça Morais, A Caminhada do Medo III, 2011, Carvão e pastel sobre papel, 111 x 150 cm (recorte)

Graça Morais, A Caminhada do Medo VII, 2011, Pastel e carvão sobre papel, 102 x 152 cm


6.2.13

cousas sérias.





A Mutilação Genital Feminina continua a ser uma prática em muitos países do mundo. A 6 de fevereiro declaramos Tolerância Zero a esta "tradição".
(Amnistia Internacional, Portugal.)

Franquelim Alves está a ser linchado?


Álvaro Santos Pereira critica a “tentativa de linchamento público” de que o ex-gestor da SLN está a ser alvo.

Pode ser que Franquelim Alves não tenha feito nada de errado quando andou perto do esturro do polvo BPN. Pode ser que Franquelim Alves apenas tenha tido o azar de cair num antro de malfeitores e não tenha visto tudo o que havia a ver a tempo e horas. É perfeitamente admissível que Franquelim Alves seja honestíssimo e tenha sido tão diligente como se podia ter sido naquele caso: não tenho a pretensão de o julgar, contrariamente aos que julgam sempre que seriam mais clarividentes, mais expeditos, mais honestos se estivessem na mesma situação. Frequentemente, quem acha que veria melhor do que o outro em tais situações é, apenas, por não fazer ideia nenhuma do que são essas situações. Está cheio dessa presunção generalizada este país.
Mas a questão não é essa. Ser governante não é mais um passo na carreira profissional. Não é um direito deste ou daquele. Deve ser, isso sim, um serviço ao país. Prestado apenas em função do critério do interesse nacional. E serve mal ao país que se leve para o governo alguém que arrasta consigo a convivência com malfeitores, ainda por cima com malfeitores que andam por aí e que por sua vez convivem alegremente com o poder, sem que haja indícios, perceptíveis pela opinião pública, de que a justiça esteja a chegar a algum lado quanto a perceber e explicar o que se passou. Pagará o inocente Franquelim por causa desta justiça que não ata nem desata? Pois, talvez; mas governar não é um emprego a que alguém tenha direito. Governar não se pode tornar indiferente às circunstâncias que sugiram ao povo que estão a meter a raposa no galinheiro. Ou pelo menos quem tenha pouco faro para detectar raposas no galinheiro.
Quem optou por esconder, no currículo inicialmente divulgado de nóvel secretário de estado, a alínea que o ligava ao BPN, estava consciente disto. Evitam agora de se fazerem de novas e gritarem aqui d'El Rei que estão a linchar o homem. O que está a linchar o homem é o sentimento de que esta classe dirigente é demasiado tolerante ao intolerável.

1.2.13

Tenho uma triste notícia para dois jornalistas da Visão.




A edição de ontem da Visão publica um artigo sobre as últimas movimentações no PS. Intitula-se “Qual é a pressa… dos banqueiros?”. Esse artigo, que me dispenso de comentar em geral, tem um último parágrafo que parece servir para convencer o leitor de que houve investigação histórica naquele trabalho. Passo a citar:
Zanga com 30 anos. António Costa e Seguro só convergem no nome próprio e na filiação partidária. Tudo o resto os separa desde que, em 1984, tiveram uma zanga, na JS. António Costa tinha apoiado o ex-Secretariado, um grupo de dirigentes que se opunha ao então líder Mário Soares. Nessa altura, o velho fundador do PS lançou-lhe uma fatwa: “Trocaste uma carreira política por uma assinatura.” E vetou a sua ascensão à liderança da JS, para substituir Margarida Marques. O soarista António Campos, o homem do aparelho, rapidamente “inventou” um então obscuro líder de uma associação de estudantes, José Apolinário, para a “jota”. Inesperadamente, Seguro virou as costas… a Costa. E alinhou com o poder interno, vindo, logo a seguir, a assumir o apetecido cargo de presidente do CNJ (Conselho Nacional de Juventude). António Costa nunca lhe perdoou. O ajuste de contas pode estar por meses.

Pois, tenho uma triste notícia para os dois autores deste texto, Sara Rodrigues e Filipe Luís. A notícia é esta: se pensavam que nos convenciam que tinham feito investigação histórica para escrever aquele parágrafo… pois, não; não propriamente. Aquele parágrafo tem muitos dados certos: datas certas, pessoas com nomes correctamente escritos, nomeadamente. Mas, quanto ao conhecimento do que realmente se passou naquela época, a lógica política geral daqueles anos, quem deu a mão a quem para fazer o quê, quem traiu quem e buscando que recompensa: falta claramente uma compreensão de tudo isso. Foi assim como se tivessem pegado numa grande e complicada família, tivessem assassinado (sem método) metade dos homens e metade das mulheres, tendo depois casado os tios com os tios e as primas com as primas, outra vez ao calhas, e tivessem apresentado o resultado como um retrato a sépia da infausta história da tribo. A história, manifestamente, foi soprada por alguém (um ou mais) a quem interessa que se saibam algumas coisas mas se ignorem outras. Estou perfeitamente à vontade a escrever isto, porque, da história realmente acontecida, que eu vivi de muito perto, o que se ficou menos a rir fui eu (politicamente falando, apenas, na medida em que continuei sempre a rir-me com gosto). Eu, para não falar demais, resumiria assim: aquele parágrafo dá uma ideia bastante aproximada da noção que AJS tem da lealdade - mas dizer só isso é parcial.

Claro, como a ninguém interessa muito por que é que Seguro não ama Costa e Costa não ama Seguro (porque realmente não é essa a questão), ninguém se vai aborrecer muito com a trapalhada que vossas mercês escreveram. Ficam muito contentes por terem cumprido o vosso ponto, a saber, chover ainda outra vez no molhado de que “isto é tudo guerras de jotas”. Eu, pelo meu lado, que sou suficientemente velho para saber que o vosso “parágrafo histórico” é um conto da carochinha misturada com o lobo mau e o gato das botas, vou passar a olhar para qualquer texto vosso com um grão de cepticismo. Digamos, com um tanto mais de confiança da que depositaria em fascículos antigos de Corín Tellado se me quisessem convencer que se tratava de tomos da história da Venezuela.