29.4.12

monstros e humanos.


Deixei aqui ontem um apontamento sobre A controvérsia de Valladolid, o espectáculo de Teatro que se encontra em exibição no São Luiz Teatro Municipal, pela companhia Comuna - Teatro de Pesquisa.

O meu interesse por esse espectáculo tem também a ver com as minhas deambulações pelo tema da monstruosidade, entre raças fabulosas do Oriente, robôs humanóides e humanos de quem se duvidou serem humanos.


Sobre isto, deixo ainda excertos do meu texto Fabulosas raças de humanóides: monstros e robôs, que está no prelo. Um excerto que tem tudo a ver com este espectáculo de teatro.

Os estereótipos das raças fabulosas emergem na Grécia Antiga, talvez já desde o séc. VI a.C., mantendo-se depois razoavelmente estáveis na cultura ocidental até ao século XVI. Plínio, o Velho, terá sido o principal responsável pela sua transmissão sucessiva. Contudo, um saudável cepticismo em relação aos testemunhos sem fundamentação escrutinada faz com que nem todos os autores antigos aceitem as histórias das raças fabulosas. É o caso de Estrabão e Ptolomeu, que nem as mencionam.
De outro modo, mesmo autores cépticos, sofisticados, contribuíram para adensar a problemática. Um bom exemplo é Santo Agostinho (séculos IV-V), que, embora considere provavelmente falsa a existência dessas raças, procura um quadro teológico para a sua eventual existência. O que o autor d’A Cidade de Deus pretende é mostrar como, qualquer que seja o caso quanto à existência efectiva das raças fabulosas no Oriente, nada disso desmente a unidade da espécie humana, a harmonia da Criação ou a sabedoria do plano do Criador – harmonia e sabedoria que não dependem da nossa capacidade para as entender.
O que é certo é que muitos autores cristãos medievais acolheram as narrativas, particularmente de Plínio, o Velho, integrando o fantástico no imaginário, de tal modo que as raças fabulosas ocorrem generalizadamente nas grandes enciclopédias dos séculos XII e XIII.


Durante séculos, a distância entre Oriente e Ocidente serve de estabilizador da relação entre o conhecido e o fabuloso. A imagem faz a viagem: nós não vamos, nem conhecemos quem vá, ao Oriente, mas a representação pictórica tem uma tremenda força de apresentação. Alguns viajantes famosos, logo no século XIII, fazem relatos que, por muito impressionantes que sejam, não movem substancialmente o imaginário tradicional. Vai ser preciso massificar a viagem para mover o terreno da tradição adubado pela imagem. Poderíamos, assim, pensar que as grandes viagens de descobrimento, no século XVI, quebrariam o encanto e, obrigando ao confronto directo com o real do Oriente, transformariam de forma definitiva o imaginário ocidental do fabuloso da Índia. Ora, se esse efeito existe, de facto, há impulsos contraditórios que tornam o processo mais complexo.
As raças fabulosas clássicas, efectivamente, não foram encontradas. As populares enciclopédias eram fantasiosas nas suas descrições e as ilustrações enganavam. Só que, ao mesmo tempo, a questão das fronteiras do humano torna-se, transpostas as distâncias, uma questão muito mais prática. As questões acerca dos limites da humanidade são transpostas para África e para o Brasil – e os debates teológicos acerca de os indígenas serem ou não providos de alma não se circunscrevem já ao domínio da teoria, passando a ser assuntos de administração das possessões, questões políticas decisivas para todos os que nos reinos passaram a pensar em muito mais larga escala. Assim, a questão das fronteiras entre o humano e o humanóide, se adquire novos matizes, não se dissolve pelo encontro com a pátria original das raças fabulosas, as Índias Orientais. Ainda aparecem, a par de relatos de novos animais (por exemplo, o “ganso de Magalhães”, o pinguim), sugestões de novos monstros humanóides no Novo Mundo (por exemplo, relatos de homens marinhos no Brasil, nos séculos XVI e XVII).


Levin Hulsius, Kurtze Wunderbare Beschreibung Dess Goldreichen Königsreichs Guianae in America, Nuremberga, 1603