A Associação 25 de Abril anunciou que não participará na cerimónia de comemoração do 25 de Abril na Assembleia da República. Vasco Lourenço disse que a Associação não vai porque “a linha política seguida pelo actual poder político deixou de reflectir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril”. Mário Soares, em solidariedade, diz que também não vai.
Respeito Vasco Lourenço e respeito Mário Soares. Mas julgo que estas posições são politicamente irresponsáveis. E condenáveis, em alto grau.
Podem ler-se estas atitudes como um mero gesto de oposição ao poder actual, aproveitando o 25 de Abril para tanto. Se o caso é esse, trata-se de um aproveitamento quasi-partidário da data, o que só se pode lamentar. Mas julgo que o gesto da Associação 25 de Abril, apoiado por Mário Soares, é menos circunstancial e mais profundo. Suponho que se trata de querer marcar uma fronteira entre os fiéis ao espírito do 25 de Abril e "os outros". E é aí, precisamente, que as coisas se tornam graves.
Confundir as divergências dentro da democracia com divergências acerca da democracia é perigoso, porque torna os democratas inimigos uns dos outros. Podia dar-se o caso de sermos governados por políticos que quisessem recuperar o autoritarismo pré-Abril, mas não creio que seja esse o caso. Há perigos para a democracia na corrente situação? Há. Há uma degradação da qualidade da democracia nestes tempos que correm? Há. Este clima de agressão social, de ataque aos direitos das pessoas, pode abalar a democracia? Pode. Os governantes, os actuais e outros, têm responsabilidades nisso? Têm. Mesmo assim, os desafios que enfrentamos hoje não são os mesmos a que o 25 de Abril quis dar resposta. Pensar que o 25 de Abril de 1974 tinha, ou tem, resposta para tudo o que se passa no mundo, e que, portanto, o mundo actual pode ser lido em paralelo com o 25 de Abril de 1974, é uma ingenuidade perigosa. Pretender que o "espírito do 25 de Abril" seja uma cartilha de acção política para qualquer momento histórico, ou, pior ainda, pretender que quem "fez o 25 de Abril" é intérprete privilegiado desse espírito, é não perceber nada do que se está a passar. E é uma espécie de apelo aos "teólogos laicos" da democracia como fonte de autoridade política, o que é risível. Perigoso na situação actual é que as ameaças são novas, os riscos vêm de sítios diferentes, as forças em presença têm configurações sem precedentes.
Os perigos do mundo actual assentam em dois pilares. Primeiro, na fragmentação do laço social, com um individualismo sem horizontes, conjugado com a fragmentação generalizada dos espaços de participação, a empecilhar enormemente a capacidade de auto-governo das pessoas aos vários níveis da coisa pública. Segundo, a passagem das alavancas do poder para esferas extra-territoriais desligadas de qualquer poder propriamente político, numa escala sem precedentes. Para lá das maldades domésticas deste ou daquele, é daquelas duas fontes que brotam as nossas aflições correntes, aqui e em muitos lados do mundo. Ora, basta pensar um pouco para compreender que esta situação é muito diferente da situação que o 25 de Abril reverteu (fechamento do país sobre si mesmo, poder político concentrado, encaixotamento social das pessoas em categorias, economia dominada por uns quantos da mesa do poder doméstico, guerra real com mortos e feridos, o Estado como patrocinador de uma linha moral apoiada na hierarquia eclesiástica); e que as respostas necessárias aos problemas de hoje não são as respostas que as nossas belas utopias caseiras queriam dar aos problemas de então. Por isso é que não faz sentido continuar na atitude "quem tem um martelo na mão só vê pregos".
Aquelas atitudes mencionadas acima fazem um corte entre a comemoração do 25 de Abril e as instituições democráticas, disparando contra o próprio parlamento, que é o cerne de tudo o que de essencial a Revolução nos trouxe. É um gesto pesado e perigoso, que não terá nenhuma boa consequência e só pode cavar a distância entre os que vivem na saudade e os que tratam dos vivos. A beleza do 25 de Abril esteve na conjugação da rua e das instituições; este gesto desvitaliza esse nervo vital da memória viva da Revolução dos Cravos. É, por isso, lamentável.