Se alguém me pudesse explicar, nem que seja recorrendo à psicanálise, qual a razão para haver entre nós tão vasta legião de teólogos que continuam a dedicar-se empenhadamente na exegese de qualquer palavra de José Sócrates, mesmo que seja uma palavra de ocasião - eu agradecia. Como acontece aos maus praticantes de hermenêutica, mas também aconteceu a grandes pensadores (como Heidegger, acusado de fazer leituras criativas dos clássicos gregos), muitos desses intérpretes de trazer por casa são mais hábeis a tresler do que a ler. Mas nem é isso. O fenómeno que me interessa é propriamente essa focagem em tal homem. Estarão, de repente, preocupados com a possibilidade eminente de, levantado o nevoeiro, se perceberem as estaturas relativas dos intervenientes no PRAC (processo austeritário em curso)?
(Acrescento. Dizem-me que fujo a comentar a substância. Apesar de, por vezes, a forma ser conteúdo, como julgo ser o caso desta "polémica", reproduzo aqui o que escrevi noutro sítio, em estilo mais coloquial. Cito-me, pois. «O burburinho que por aí vai por causa de uma suposta declaração de Sócrates supostamente a dizer que a dívida não é para pagar! O que eu pergunto, às pessoas que falam como se Sócrates tivesse dito isso, é: não leram, só leram o título que alguns quiseram dar, ou leram mas não perceberam? Se têm tempo para ler duas frases seguidas, em vez de apenas uma, verão que logo a seguir vem a declaração "as dívidas dos estados são eternas". Nem assim percebem? É que se não percebem, tenho de perguntar: defendem um Estado com dívida zero? Sabem o que isso é? Dívida zero, talvez a Coreia do Norte - e se calhar nem essa. O nível de "conforto" na Europa para a dívida é 60%, não é zero. Isso não lhes diz nada? Lá que queiram engolir a tese agora dominante acerca da origem das dívidas soberanas, é uma coisa. Que não queiram perceber que a dívida, dentro de certos níveis, faz parte de uma economia normal e saudável, a funcionar - que não queiram perceber isso é mais grave. No lamaçal da demagogia parece que já há quem pense que os países devem ter dívida zero. Grandes economistas! Sócrates cometeu de facto um erro: estando mais ou menos afastado, esqueceu-se que, por cá, a deturpação, a citação fora de contexto, o insulto rasteiro e ignorante, continuam a ser a matéria-prima da política do ódio. Continuam a ser a arma preferida de quem precisa de uma desculpa permanente - para ter andado a mentir ao povo.»)