Uma das doenças deste jardim à beira do mar plantado é a praga dos incondicionais.
A maleita dos incondicionais existe desde logo na política. São os incondicionais de um partido, que só vêem virtudes nesse partido e defeitos em todos os outros. São os incondicionais de um líder, que abominam qualquer discordância, logo classificada como ajuda ao adversário externo – ao inimigo, mais exactamente, porque aos incondicionais falta aquela parte dos mecanismos cerebrais envolvida em distinguir os adversários dos inimigos. São os incondicionais de uma solução para um problema, com exclusão de qualquer mistura – como se exemplifica com as parcerias público-privadas, onde parece só haver quem as considere ou “a solução” ou “um crime”, como se não houvesse linhas mais finas para separar o que é útil do que é pernicioso. Em política, os incondicionais criam, nos aparelhos vários que a praxis exige, a nuvem de fumo das realidades encomendadas: um homem rodeado de incondicionais é como se estivesse a jogar aos combates inter-galácticos num simulador e confundisse a realidade virtual com a materialidade cá fora. Obviamente, vem daí um risco para a gestão da coisa pública, risco no qual se afogam tanto a situação como as oposições. Mais o exército de comentadores, sejam encartados ou amadores, grandes ou pequenos. O que quer dizer que, deste canto da blogosfera, não devo estar isento da doença.
Fora da política, a praga dos incondicionais entranha-se no quotidiano das administrações, das empresas, das associações. Também nas repartições há incondicionais. Chamem repartições ao que quiserem, por ser isto geral. Gente que sorri sempre na mesma direcção, quando o chefe está sentado; gente que sorri como um catavento, quando o chefe deambula. Saber fazer um certo tipo de conversa redonda evita aos incondicionais limitarem-se a abanar a cabeça. Podem, dessa arte, falar, não apenas evitando discordar de quem, por definição (pela sua definição) tem razão em tudo o que disse anteriormente, mas também, pela mesma definição, haverá de ter razão em tudo o que venha a dizer futuramente. Mesmo que aquilo que sua excelência dirá somente daqui a minutos esteja ainda no limbo, quer dizer, ainda esteja por magicar na excelentíssima cabeça, tem o incondicional de antever que, quando for proferido, será certo. A emissão de uma opinião própria, mesmo que não contradiga nada das opiniões passadas de sua excelência, corre o risco de vir a entrar em colisão com opiniões mais tardias de sua excelência. Para evitar tais embaraços, há que saber falar sem dizer nada naqueles artigos da matéria em que a excelência está por saber o que opinará. Já há bastante tempo, irritei muito um “alto quadro” que não queria dar a sua excelência um conselho que se antevia que sua excelência não apreciaria. Tive que dizer a tal altíssimo quadro que era para isso que lhe pagavam, coisa que ele não apreciou. Claro, não deu o conselho, mas continuaram a pagar-lhe. Bem entendido, tonto era eu, porque em regra só se pagam os conselhos com o conteúdo previamente encomendado. E mesmo que o jurisconsulto seja de nomeada, a regra é essa. Neste campo, a praga dos incondicionais faz com que muitas organizações sejam raquíticas, não por lhes faltar dimensão, mas por lhes faltar músculo. Cabeça, quero dizer. Essa é também a razão pela qual o quotidiano de muitas organizações é um inferno, sabendo-se desde há muito da teologia verdadeira que no inferno não há fogo: no inferno o que há é uma multidão de incondicionais. E é disso que se faz o inferninho de muitas empresas, repartições, departamentos disto e daquilo.
Fora da política e também fora da economia, da labuta, da parte do dia em que se ganha para o pão, a praga dos incondicionais também mancha por vezes os círculos do lazer, dos tempos outros, da preguiça necessária e honrosa onde nos devemos libertar (mesmo que não acreditemos em Lafargue). Há amizades onde se confundem os amigos com incondicionais: o amigo é uma cópia do que eu estava mesmo a pensar dizer. Isso acontece. Até no amor (ou no casamento, se quiserem) há quem busque incondicionais: o marido extremoso que julga ser essencial que a esposa só o olhe a ele, que nunca olhe para o lado, para outro ser, não vá cobiçá-lo. O homem (para o caso, o homem ou a mulher) que teme que o seu par se interesse por algum perigo ambulante, desvie de si os olhos, pense em assuntos perigosos. Mas, se calhar, ainda é nesta parte do mundo onde há mais esperança que a doença dos incondicionais não medre.
O assunto é esse: a praga dos incondicionais é uma doença dos mundos pequenos, da fragilidade omnipresente ocasionando uma imensa rede de exploração e de opressão, mesmo que nessa exploração a opressão pareça suave e meta gente de gravata e de saia e casaco e com boas maneiras. A doença social que constitui a presença massiva de incondicionais intercalados nas nossas interacções sociais precisa ser compreendida, precisamente, como uma patologia. Ou talvez mesmo como uma perigosa invasão vinda de um mundo estranho à nossa humanidade.