Continuando a relatar um aspecto de uma conferência de história da tecnologia, e depois de ontem ter dado aqui o resumo das três comunicações na sessão "Bio, Nano, Robo – New Challenges for Historians of Technology", passo agora ao comentário que então me coube (uma versão em português, aligeirada).0. Ouvimos três apresentações, sobre a história da nanotecnologia, da genética como empreendimento económico, da robótica – numa sessão sobre "novos desafios para historiadores da tecnologia". Como não sou um historiador da tecnologia, nem sequer um historiador, mas um filósofo a trabalhar numa equipa de robótica, é dessa perspectiva que tentarei mostrar onde vejo a unidade desses novos desafios – assumindo como ponto de partida as comunicações apresentadas.
1. Christian Kehrt desafiou definições habituais de nanotecnologia e sugeriu aumentar a nossa compreensão do campo com uma análise mais atenta às “visões” dos actores envolvidos. O ponto é que são as “visões“ dos agentes que lhes permitem abrir novas áreas de investigação, fornecer novos recursos simbólicos e ampliar os campos de possibilidades, potenciando assim novos desenvolvimentos tecnológicos. Uma das visões centrais da nanotecnologia, a ideia da engenharia molecular, fundamenta o grande empreendimento de ultrapassar os limites da natureza e a aspiração a tornarmo-nos deuses
ex-machina utilizando componentes moleculares e átomos.
Cabe perguntar: o que há de novo nessa visão? Já em 1637 Descartes, no “Discurso do Método”, escreveu que a ciência nos pode dar o conhecimento prático necessário para nos tornarmos “senhores e donos da natureza", numa declaração que é um manifesto da ciência moderna, habitualmente entendida como um programa dirigido principalmente para as disciplinas científicas que lidam com o mundo físico externo. No entanto, Descartes acrescentou que tornarmo-nos senhores da natureza é um resultado desejável "especialmente para a preservação da saúde". E usava um conceito amplo de saúde e de medicina: a saúde é o primeiro e fundamental de todos os bens da vida, "porque o próprio espírito está tão intimamente dependente da condição e relação dos órgãos do corpo que, se qualquer meio pode ser encontrado para tornar os homens mais sábios e mais hábeis do que até aqui, creio que é na medicina que deve ser procurado".
Então, a grande visão da ciência moderna, a de tornar-nos senhores da natureza, é dirigida, desde o início, para os nossos próprios mecanismos internos, para os mecanismos corporais e mentais dos seres humanos. Ainda assim, como disse Christian Kehrt, uma das principais visões da nanotecnologia é ultrapassar os limites da natureza. Esta é, talvez, em comparação com Descartes, um "visão” nova. Só que traçar uma distinção clara entre “transgredir” e “respeitar” os limites da natureza pode revelar-se difícil.
2. A apresentação de Sally Hughes pode ser tomada precisamente como uma prova de que existem pessoas e empresas a lutar para modificar as próprias noções de “respeitar” ou “ultrapassar” os limites da natureza.
Falando-nos da Genentech, a primeira empresa totalmente dedicada à engenharia genética, que enfrentou muitos obstáculos até atingir o estatuto de uma das mais bem sucedidas empresas de biotecnologia do mundo, Sally menciona problemas com a tecnologia, com a lei, com a política e com a regulamentação. Um desses problemas foi uma intensa disputa legal sobre a questão "podemos patentear a vida?". A Genentech, apesar do alto nível de risco e incerteza que caracterizou o ambiente inicial dessa empresa, fez uma estreia espectacular na bolsa de Nova Iorque em 1980. Portanto, num certo sentido, a Genentech conseguiu com sucesso modificar o estatuto da pergunta "o que é respeitar a natureza". E fizeram-no em grande parte de fora dos muros das instituições científicas: em tribunais, nas empresas, nos media para alterar o estado da opinião. A construção social das ciências da vida não é só para cientistas. Como podemos lidar com isso? Como podemos sequer compreender isso?
3. Kathleen Richardson apresentou-nos os robots na qualidade de entidades inventadas, ou reinventadas, nos anos 20 do século passado por Karel Capek, como um meio para provocar a reflexão sobre as sociedades humanas, sobre o que é que significa ser humano. De acordo com Kathleen, os alvos da crítica de Capek eram certas práticas políticas e ideologias bem conhecidas.
Ligados aos robots encontramos quer elementos utópicos quer distópicos. Os elementos utópicos dizem respeito à visão de uma sociedade futura onde as máquinas trabalham e os seres humanos só fiscalizam. Os elementos distópicos relacionam-se com as cadeias de produção onde os operários são ferramentas para as máquinas.
Tanto os elementos utópicos como distópicos que Kathleen refere como inspiradores da peça de Capek dizem respeito à organização colectiva das sociedades humanas: qual é o lugar reservado aos trabalhadores no seio das estruturas de produção, qual é a organização social mais desejável. Ainda precisamos da questão "o que é isso de ser humano" para melhor compreendermos o significado de uma linha de tecnologias que têm o potencial para alterar a resposta precisamente a essa pergunta. No entanto, hoje em dia, tanto os elementos utópicos como distópicos deslocaram-se em larga medida do nível colectivo para o nível do indivíduo. Esperamos que os medicamentos e próteses possam dar-nos um corpo melhor, talvez uma mente melhor, um novo rosto, a possibilidade de substituir uma perna ou uma mão que perdemos. Alguns esperam viver mais tempo, outros poder escolher filhos com certas características. E alguns de nós querem que essas oportunidades sejam apenas uma questão de opção individual.
4. Então, temos estado a ver que certas visões centrais na nanotecnologia sonham ir além dos limites da natureza, fazendo-nos deuses
ex-machina – mesmo que não estejamos certos sobre o que "natureza" significa. Empresas dedicam enormes esforços em muitas frentes de batalha para garantir, não só que podemos ser engenheiros de entidades vivas, mas também que possamos patentear os resultados. Os (agora fora de moda) receios sobre os robots como criaturas com um estatuto ambíguo estão a dar lugar à esperança de acesso a novos corpos e mentes novas para nós e os nossos filhos. Como fazer sentido de tudo isto com um enquadramento unificado? Como colocar as actividades das empresas, como a Genentech; as actividades científicas e tecnológicas, como as que foram sendo desenvolvidas sob a bandeira do “nano”; e actividades culturais e políticas, como as relacionadas com a peça de Capek – como colocar tudo isso em conjunto e como compreender tudo isso com uma visão coerente? Sugiro tentar utilizar o conceito de "ciências do artificial" para o efeito. E vou pedir emprestada a Herbert Simon a ideia principal (“As Ciências do Artificial”, primeira edição 1969).
5. De acordo com Simon, não podemos compreender o que significa ser artificial como oposto ao natural. Já que “o mundo em que vivemos hoje é muito mais um mundo feito pelo homem do que um mundo natural", definir artificial como “feito pelo homem” tem uma utilidade decrescente. Como Henry Petroski uma vez escreveu: "Tirando o céu e algumas árvores, tudo o que eu vejo do sítio onde estou sentado é artificial. A secretária, os livros e o computador que estão à minha frente; a cadeira, o tapete e a porta atrás de mim; a lâmpada, o tecto e o telhado acima mim; as estradas, carros e edifícios que vejo pela janela – tudo foi feito desmontando e montando de outro modo partes da natureza."
Então, temos de assumir uma forma diferente de pensar o artificial. As coisas artificiais, os artefactos, não são apenas coisas feitas pelo homem. Simon sugere definir um artefacto como uma interface entre um ambiente interior, a organização do artefacto em si, e um ambiente exterior. Se o ambiente interior é apropriado ao ambiente exterior, ou vice-versa, o artefacto é adaptado à sua finalidade.
Agora, entidades artificiais, ou artefactos, são "todas as coisas que podem ser consideradas como adaptadas a alguma situação". E, e este é um ponto crucial, de acordo com esta definição, temos de considerar "sistemas vivos que foram evoluindo através das forças da evolução orgânica" como artefactos ou coisas artificiais.
Vejamos exemplos de Simon. O "homem económico" é um sistema artificial. O interior do sistema “homem económico” está adaptado ao ambiente económico externo, o seu comportamento tendo evoluído por pressão do ambiente económico.
Em termos psicológicos, os seres humanos também são criaturas artificiais. "Os seres humanos, vistos como sistemas comportamentais, são muito simples. A aparente complexidade do nosso comportamento ao longo do tempo é em grande parte um reflexo da complexidade do ambiente em que nos encontramos”. A psicologia, o estudo desse processo adaptativo, deve ser visto como uma das ciências do artificial.
6. Se artefactos são todos os tipos de coisas que se adaptam a uma situação, podemos perguntar como fazer artefactos, como fazer coisas com as propriedades que desejamos. A resposta para essa pergunta é o que Simon chama "a ciência do design ", o estudo da criação do artificial.
Os engenheiros são designers profissionais. Mas os médicos que prescrevem remédios para curar um paciente doente também são designers. Um gestor que elabora um plano de vendas para uma empresa é um designer. Um líder político que concebe uma política social para um Estado é um designer. As escolas de engenharia, de arquitectura, gestão, educação, direito e medicina, todas estão envolvidas com o design.
Se estás a trabalhar na elaboração de cursos de acção que visam transformar situações existentes em outras situações, por preferires estas, estás a fazer design. "As ciências naturais estão preocupadas com a forma como as coisas são. (...). O design, por outro lado, está preocupado com a forma como as coisas devem ser (...) ".
7. Ora, a minha sugestão é que todas as apresentações nesta sessão poderiam ser vistas como diferentes estudos do artificial, de diferentes aplicações das ciências do artificial; como abordagens diferentes para o grande design de seres humanos, das sociedades humanas e da cultura humana, na qual hoje os artefactos preenchem quase todos os significados.
Falando das "ciências do artificial" não estou a propor uma nova disciplina científica, nem novos departamentos universitários. A sugestão é que precisamos de uma nova perspectiva: como é que estamos a construir o futuro das sociedades humanas ao “engenheirar” tantos aspectos de nós próprios e das nossas comunidades. E como poderão historiadores, biólogos, físicos, cientistas da computação, cientistas sociais e filósofos trabalhar em conjunto sobre esta nova perspectiva. Por exemplo, tentando compreender como as considerações tecnológicas estão a liderar este processo. E tentando perceber se está certo que o nosso futuro seja moldado principalmente pelas possibilidades tecnológicas, por vezes sem uma reflexão suficiente sobre o que é que significa ser humano.
Poderá esta visão das "ciências do artificial" fazer sentido para os historiadores da tecnologia?