21.1.08

Inteligência e mundo



Andy Clark, em Being There (1997), defende para as ciências cognitivas, e para a Inteligência Artificial como parte dessa “coligação”, o projecto de voltar a juntar cérebro, corpo e mundo. A sua proposta assenta na ideia de que a cognição não está apenas “dentro da cabeça”, nem apenas no corpo, mas também disseminada no mundo exterior.
Seja o exemplo (de Rumelhart et al. 1986) da multiplicação de 343 por 822: normalmente só a conseguimos realizar com a ajuda de certos procedimentos exteriores (com papel e lápis), que permitem decompor a tarefa em passos sequenciais que individualmente nos são acessíveis, apesar de a maioria de nós não ser capaz de justificar porque é que aquele procedimento deve fornecer um resultado correcto.
O que Andy Clark faz é generalizar essa ideia, mostrando que o agente inteligente não se limita a resolver problemas que o mundo lhe coloca: o que faz muitas vezes é transformar o problema original, modificando estruturas no mundo, tornando o problema acessível às suas capacidades cognitivas e físicas. Para construir um grande avião ou governar um país, o que se mobiliza não é um indivíduo muito inteligente, mas um complexo de estruturas físicas e sociais (incluindo objectos inanimados e pessoas), organizadas de certas maneiras, para atingir uma meta que de outro modo não estaria ao alcance de nenhum agente individual (nem de nenhuma mente individual).
O que estes exemplos mostram é que “nós gerimos o nosso ambiente físico e espacial de maneiras que alteram fundamentalmente as tarefas de processamento de informação que os nossos cérebros enfrentam” (Clark 1997:63). A forma como fazemos isso depende fortemente do facto de termos um corpo com certas características (o que precisamos para escrever como escrevemos?), de termos inventado certas formas de realizar operações complexas (aritmética), que não surgem desligadas da organização da sociedade das necessidades práticas que nela emergem.
Um estudo de um investigador português exemplifica de forma muito completa aspectos centrais do que aqui está em causa.

Marques de Almeida, em Aritmética como Descrição do Real (1519-1679), obra publicada em 1994, estuda com detalhe a formação da aritmética na Europa Ocidental, incidindo particularmente sobre a situação em Portugal.



Nessa obra (Almeida 1994) mostra, analisando os livros de aritmética para uso dos mercadores, como está em causa o domínio de situações concretas originadas em grande medida pelos Descobrimentos: mais produtos, separação das figuras do produtor e do consumidor, grandes distâncias entre agentes económicos, economia monetária nascente, circulação acrescida de mercadorias, novas funções do dinheiro, várias espécies de moeda, formas embrionárias de crédito. Essas novas realidades sociais tornam obsoleto o uso da numeração romana, útil durante séculos para a função de registo.
Num primeiro passo verifica-se uma tentativa de aplicação da numeração romana a esses problemas (a “conta castelhana”), mantendo um processo operatório complicado (que continua a não aproveitar a posição dos símbolos), de tal modo que mesmo somar continua a ser difícil, enquanto a divisão é simplesmente impossível. A resposta passará pela introdução da notação árabe, a “conta guarisma”, permitindo cálculos mais velozes e com maior certeza. Enquanto no final da Idade Média as regras para calcular se limitavam ao cálculo digital (um “contar pelos dedos” bastante mais elaborado do que significa essa expressão correntemente hoje em dia) e ao cálculo mental, e ao ábaco para as operações mais difíceis – a introdução da numeração árabe, das operações com algarismos e do cálculo escrito, vai acompanhar as novas necessidades sociais.
Marques de Almeida, analisando os “livros de aritmética”, mostra a longa batalha para conceber e tornar compreensíveis os novos procedimentos, ao mesmo tempo que torna evidente o seu longo período de gestação progressiva. Por exemplo, os sinais [-] e [+] só aparecem depois de 1480, o sinal [× ] só depois de 1630, o sinal [:] só depois de 1650. Sem desprezar a vertente mais teórica desse desenvolvimento (a álgebra, na qual, nas palavras de Pedro Nunes, “el fin que se pretende es manifestar la quantidad ignota”), Marques de Almeida evidencia o carácter prático e socialmente solicitado da aritmética, a que chama “uma nova utensilagem mental”, assim exemplificando magnificamente o ponto de Clark.

Clark associa a sua tese à noção (tomada de Kirsh e Maglio) de “acção epistémica”: aquela acção que, em lugar de visar directamente uma alteração do mundo para alcançar algum fim, se destina primariamente a alterar a natureza das nossas tarefas mentais, para as tornar mais acessíveis às nossas necessidades e capacidades de processamento, seja transformando os dados que temos de ter em conta, simplificando a procura, facilitando o reconhecimento, externalizando a memória, facilitando a recordação (Clark 1997:64).

Em suma, o cérebro não é a sede de um espírito sem corpo, nem de um corpo separado do mundo, mas um órgão de um agente encorpado e embutido num mundo físico e social. A esse agente é essencial ser capaz de explorar as estruturas que existem no mundo e que resultam de uma interacção continuada entre os agentes e o mundo, de uma co-evolução dos agentes e do mundo. Isso não significa desprezar o “interior” ou o papel do cérebro na cognição. Muitos problemas são “intensivos em representações”, no sentido em que parece que as representações internas não podem ser substituídas por sinais do ambiente. Parece ser esse o caso quando raciocinamos acerca de estados de coisas ausentes, inexistentes ou contrafactuais, ou quando lidamos com estados de coisas cuja manifestação física só existe para nós na medida em que realizamos uma forte selecção do que deve ser tido em conta, de forma irredutível a qualquer lei física (o que são as “coisas valiosas” que temos em casa? o que são os “pertences” do Papa?) (Clark 1997:167). Isso significa, isso sim, que para compreender a mente temos de prescindir de fronteiras nítidas e fixas entre cérebro, corpo e mundo.



REFERÊNCIAS

(Clark 1997) CLARK, Andy, Being There. Putting Brain, Body, and World Together Again, Cambridge (Massachusetts), The MIT Press, 1997

(Rumelhart et al. 1986), RUMELHART, D.E., HINTO, G.E., e WILLIAMS, R.J., “Learning Internal Representations by Error Propagation”, in RUMELHART, D.E., McCLELLAND, J.L., e o PDP Research Group, Parallel Distributed Processing, Explorations in the Microstructure of Cognition, Vol 1,Foundations, Cambridge (Massachusetts), The MIT Press, 1986

(Almeida 1994) ALMEIDA, António Augusto Marques de, Aritmética como Descrição do Real (1519-1679), (dois volumes), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994