28.9.07

Como fui atirado para as primeira páginas dos jornais franceses pela direita populista e radical (ou: "excurso sobre uma não-notícia")

Durante o corrente semestre Portugal exerce a presidência da União Europeia (ou, mais correctamente, do Conselho da União Europeia). Por razões que expliquei em posta anterior – Política, Ciência, Linguagem (e Memórias) – esse facto desperta em mim certas memórias. Hoje, mais uma vez, exercito essas recordações. Aqui se conta como a extrema-direita me levou, sem eu saber ler nem escrever (quer dizer, sem qualquer mérito ou propósito), às grandes páginas da imprensa francesa.

A coisa conta-se como segue.

É costume, no arranjo institucional da UE, que os ministros dos Estados Membros se reúnam, além dos formalíssimos Conselhos de Ministros disto ou daquilo, em “Conselhos de Ministros Informais”. Servem tais ocasiões, se a coisa corre bem, para apurar sensibilidades sobre assuntos que estão em fogo lento, antes de os mesmos serem presentes à verdadeira mesa de negociações.

É de tradição há vários anos que, no calendário de uma presidência, o primeiro “Informal” seja o dos ministros do trabalho e dos assuntos sociais – e que o mesmo se faça logo nos primeiros dias do semestre em causa.
Ora, quando começou a presidência de Portugal em 1 de Janeiro de 2000, isso estava previsto como mandava a tradição: o “Conselho Informal” do Trabalho e Assuntos Sociais teria ligar a 11 de Fevereiro, em Lisboa (na antiga FIL). Mas algo de picante veio aquecer a festa.

Na Áustria, o partido FPÖ, então liderado pelo populista de direita radical Jörg Haider, tinha chegado ao governo em coligação com os circunspectos conservadores, que tinham passado tantos anos a apoiar os socialistas (ou social-democratas, como por lá se chamam). A esquerda europeia, num dos seus acessos de pressa e precipitação, achou que pela Áustria vinha a entrar a besta dos últimos dias e que se deveria, por isso, mobilizar todas as fibras da alma para resistir. Assim sendo, a vinda da ministra Elisabeth Sickl (FPÖ) ao Informal dos Ministros do Trabalho e Assuntos Sociais tornou-se um campo de batalha mediático. Era a primeira ocasião em que um “fascista austríaco” vinha sentar-se à mesa dos bem-comportados europeus (o Libération falava do lobo a misturar-se com as ovelhas).

A tendência para o espalhafato entre a esquerda europeia foi, como de costume, liderada pela França, cuja ministra do trabalho, a socialista Martine Aubry, apoiada de perto pela belga Laurette Onkelinx, entendeu manifestar o seu repúdio abandonando a sala e o seu lugar à mesa dos ministros e respectivos séquitos enquanto usasse da palavra a temível senhora Sickl. Começava a técnica do boicote, promovida um tanto a medo pela presidência portuguesa – e que não haveria de levar a lado nenhum, porque os austríacos sabiam como resolver o problema pelos seus próprios meios.

Jornais franceses, como o Libération (de esquerda) ou o Le Figaro (de direita), deram no dia seguinte grande destaque à coisa – fotografando o lugar vazio deixado pela ministra francesa à mesa dos trabalhos.

Ora, como na ordem protocolar a França se sentava à direita de Portugal, e como na altura do número da cadeira vazia me cabia a mim estar só e abandonado na delegação portuguesa (os nossos governantes de turno estavam a presidir), eu deveria forçosamente aparecer nas fotografias a delimitar o enorme buraco deixado no mundo pelo desaparecimento da ministra francesa. Assim ganho um lugar tão efémero como involuntário (e imerecido) no mundo de papel, um fait-divers dentro de um fait-divers, sem importância rigorosamente nenhuma mas com piada suficiente para me ficar na memória.



Testemunho do que valem certas coisas a que por vezes damos tanta importância: a ministra dos negócios estrangeiros da Áustria na altura destes acontecimentos, Benita Ferrero-Waldner, é actualmente membro destacado da Comissão Europeia. Sem qualquer escândalo, é claro.


As imagens abaixo testemunham a coisa (clicar para aumentar).


(Le Figaro, 12-02-2000, primeira página)



(Le Figaro, 12-02-2000, detalhe da primeira página)




(Libération, 12-02-2000, página 2)



(Libération, 12-02-2000, detalhe da página 2)




(Libération, 12-02-2000, primeira página)