29.6.07

Não devias ter insistido para eu tirar o vestido




(Ponte de Lima, Setembro de 2006. Foto de Porfírio Silva)

28.6.07

Funcionários

Os funcionários que se apurem responsáveis pelos erros nos enunciados de certos exames realizados sob a tutela do Ministério da Educação poderão ter avaliação positiva neste ano? E poderão ser promovidos para o ano?

Referendo


Há uns anos, que já começam a ser umas décadas, uma certa esquerda criticava a "democracia burguesa" pretendendo que ela era apenas "democracia formal". Alguma dessa esquerda achava melhor a "democracia" do "socialismo real". De qualquer modo, o ponto era a ideia de que a democracia representativa não era uma verdadeira democracia por lhe faltar participação "directa".

A mesma temática volta hoje com a pretensão de que certas medidas políticas são ilegítimas se não forem referendadas. Desta vez, alguma esquerda e alguma direita estão juntas no mesmo ataque à "democracia burguesa": pretendem esses que os órgãos representativos, eleitos nos termos constitucionais, não têm legitimidade para aprovar aquilo que está nas suas competências, competências essas que estão definidas constitucionalmente, numa constituição que foi aprovada por pelo menos 2/3 dos deputados, deputados esses que foram eleitos democraticamente.

Brincar com a democracia, procurando desligitimar os seus órgãos representativos, é um jogo perigoso. Mas a que alguns brincam.

Meninos guerreiros e animais ferozes escondidos nas cortinas

Xian no hutong

Nos hutongs de Pequim, uma miniatura de um guerreiro de terracota de Xian esquecida num canto de uma janela.

(Foto de Porfírio Silva. Outubro de 2006.)

27.6.07

Até já, Nina e Želimir


Kajetan Kovič (n. 1931) é um escritor e poeta esloveno. Deixamos aqui este breve fragmento da sua obra para assinalar a nossa amizade (e a amizade de tantos outros, dos bons) por Nina Kovič (sua filha) e Želimir Brala (marido dela), ambos tradutores da sua obra. Para a Nina e o Želimir, até já!

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Mon père

Mon père,
não sei porque te chamo assim,
não falavas francês,
mas isto provavelmente terias entendido,
talvez eu to diga numa língua estrangeira
por causa da distância,
conseguíamos amar-nos
apenas assim:
não muito de perto.
Estávamos sentados
em velhas tabernas,
bebíamos um riesling
ou um šipon
ou, mais frequentemente,
qualquer vinho ácido,
falávamos
das coisas muito comuns.
A vida parava
por de trás das portas,
numa distância segura.
Parecia impetuosa demais
para lhe dar um nome.
Tínhamos medo,
mon père,
das palavras fortes demais.
Agora és apenas
uma foto na parede
e uma tumba num bonito cemitério.
Acendo-te uma lamparina,
trago-te flores.
Não a ti,
aos teus ossos.
Conto-te
tantas cousas.
E tu calado.
Apenas a tua lápide.
Com as datas.
De – a.
Meu Deus,
que cousas os filhos não dizem
hoje aos pais.
Aos vivos e aos mortos.
Mon père,
nenhum era
como tu.
Tão só,
tão meu,
tão pai,
perdido neste mundo
como eu.

Kajetan Kovič
(tradução de Želimir Brala) in Litterae Slovenicae / Slovenian Literary Magazine, 2 – 1999 – XXXVII – 95 – Número integralmente em português, dedicado a “Nove poetas eslovenos contemporâneos” (pp. 21-22)

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Olores

En la mañana de todos los días
el olor excitante de hierba seca,
el sabor de orujo,
el olor húmedo de bodega
y la luz terrosa
del sueño repentino
cuando siluetas blancas de los muertos
esperan delante de la puerta
y como perros humildes
husmean la casa y el umbral
y el vestíbulo oscuro
donde los muchachos a las primeras horas de la tarde
sienten el escalofrío y el pavor de las muchachas.

Kajetan Kovič
(tradução de Nina Kovič) in Litterae Slovenicae / Slovenian Literary Magazine, 2 – 1997 – XXXV – 91 – Número integralmente dedicado à poesia de Kajetan Kovič (p. 93)

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Para enquadramento: «A poesia de Kajetan Kovič considera-se o marco divisório, erguido em ambas partes, que representa a passagem da poesia tradicional para a poesia moderna. Kovič faz parte do grupo dos poetas que publicaram “Permi štirih” (“Os Poemas dos Quatro”), a compilação que introduziu “o intimismo” e a postura poética apolítica que acabou por ser entendida, porque se afastou do realismo social e adrede tomou a atitude contra “a poesia de alvião” que pateticamente glorificava o trabalho e a colectividade e onde quase sempre figurava o sujeito “nós”, como um acto político.» (Matej Bogataj)

Notas soltas sobre a reforma do Estado social (3/3)


3. O “CHOQUE TECNOLÓGICO” TEM DE SER GUIADO POR UM “CHOQUE DE GESTÃO”.



A reforma do estado social não é exclusivamente, nem sequer principalmente, uma questão de despesa. O estado social em Portugal não pode, por enquanto, gastar menos: tem, ainda, de gastar mais, porque ainda é muito fraco. A reforma do estado social tem de ser capaz de responder à necessidade de produzir mais riqueza nacional, e produzi-la de forma mais acelerada. Isso passa por reformar as condições de operação das estruturas produtivas.

Num país onde a qualificação média dos empresários é inferior à qualificação dos empregados, não é possível vencer a batalha da produtividade. A esmagadora maioria das empresas portuguesas tem má gestão, gestão virada para a sobrevivência imediata, quando não para o mero interesse particular dos patrões. Esse é o preço elevado que se paga pela demagogia da prioridade às PME. Nos demais países europeus, PME são empresas com 500 trabalhadores e mais. Em Portugal estimamos muito uma quantidade enorme de empresas minúsculas desprovidas de qualquer racionalidade económica. Os próprios fundos comunitários foram massivamente delapidados a ajudar empresas sem qualquer viabilidade económica, que seria melhor terem desaparecido, em vez de terem servido para criar empresas mais modernas e mais fortes, com emprego mais qualificado e produzindo para mercados mais exigentes.

Precisamos de um choque de gestão, sem o qual o choque tecnológico não serve para nada. É preciso que tanto os empregadores como os trabalhadores compreendam que aumentar a produtividade significa gastar menos tempo para fazer as mesmas coisas, fazer melhor as mesmas coisas melhor e fazer coisas melhores. E esse objectivo depende, em larga medida, da gestão. Na verdade, os principais empecilhos não são os trabalhadores, mas os gestores.

Contudo, isso implica, também, que os trabalhadores aceitem acordos relativos à organização do trabalho que satisfaçam as necessidades objectivas da produção e da comercialização, que tenham em conta a variabilidade do mercado e os interesses dos clientes. E, então, será justo que os trabalhadores obtenham contrapartidas adequadas à sua cooperação. Mas, mais uma vez, é preciso modificar o tipo de negociação laboral existente, deixando de centrar tudo nas questões salariais e insistindo noutras questões de interesse para a qualidade de vida dos trabalhadores. Por exemplo, oportunidades de qualificação, tempo de trabalho, condições de trabalho.


26.6.07

Berardo e etc. e tal numa república das bananas à beira do charco plantada


Expresso online: "O presidente do CCB sai do Museu Colecção Berardo horas depois do empresário o acusar de "estar a brincar" e de pedir o seu afastamento."

O senhor Berardo é um dos mais recentes candidatos a comprar todo o país com o desplante da arrogância que alguns pensam que o dinheiro justifica. Isto no dia a seguir à grande comemoração pública de um frete que o Estado português fez ao senhor, empurrado por mais uma daquelas campanhas a que se presta uma comunicação social saloia (refiro-me à inaguração do museu berardo, o bicho que agora parasita o que de bom se poderia fazer naquele espaço). Como de costume, Mega Ferreira mostra que não fica de cócoras, mesmo quando o Estado se põe de cócoras.

Criacionismo, ciência e política (sequela)


No passado dia 21 escrevemos uma nota acerca de um projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, na qual manifestávamos dúvidas sobre a conveniência de fazer uma assembleia "tipo parlamento" pronunciar-se sobre factos científicos, teorias científicas, critérios de cientificidade e coisas que tais. Essa nota vinha a propósito de uma posta publicada no blogue Ciência ao Natural. Temos agora desenvolvimentos.

Ontem, os parlamentares do Conselho da Europa recusaram-se a discutir o tal projecto de resolução. O autor do projecto, o socialista francês Guy Lengagne, declarou que se tratava de uma manobra dos que são contra a teoria da evolução. Pode até ser que seja, mas a ocorrência mostra, a meu ver, que podem ser perigosas as tentativas para resolver por via político-parlamentar as questões relativas ao estatuto das teses científicas (incluindo a demarcação com o que seja pseudo-ciência). Por outro lado, talvez a explicação não tenha de ser a de Guy Lengagne: a mesma assembleia parlamentar já tinha antes recusado discutir outros projectos de resolução, por exemplo sobre eutanásia e sobre cientologia.

Os partidários da ciência, de uma ciência esclarecida e livre, sem dogmas de capela mas exigente nos seus padrões, terão talvez de pensar melhor como colocar este debate público. Seria bom compreender que a Europa não é a América, que os adversários de lá não são iguais aos adversários de cá, que aquilo que é eficaz numa opinião pública americana radicalizada e povoada de extremistas pode não ser eficaz numa opinião pública europeia menos fundamentalista e mais céptica.

Notas soltas sobre a reforma do Estado social (2/3)


2. REFORMAR AS INSTITUIÇÕES DE DIÁLOGO SOCIAL, TORNANDO-AS MAIS REPRESENTATIVAS E MAIS FORTES.



Para que o país possa encontrar soluções justas (socialmente eficientes) adaptadas às diferentes situações, é preciso verdadeiro envolvimento dos interessados. A irrelevância do sindicalismo português é um dos grandes problemas dos trabalhadores. Uma parte importante do esquema de funcionamento do tão mencionado estado social dos países nórdicos é o muito elevado nível de sindicalização. Nessas condições, a negociação faz sentido e tem consequências. É preciso que as leis do estado social sejam menos impositivas, no sentido de deixarem aos parceiros sociais mais espaço para encontrarem soluções adequadas aos seus circunstancialismos. Mas, para isso, é preciso que as organizações tenham verdadeira implantação, sejam representativas. E que faça uma diferença estar sindicalizado ou não.

Por outro lado, é preciso diversificar os níveis de negociação. Para além da escala macroscópica (as estruturas de topo dos patrões e dos empregados discutem questões gerais ao nível nacional na concertação social), é preciso revitalizar a escala microscópica (mais poder e dinamismo às comissões de trabalhadores a nível da empresa) e criar um novo papel para a escala mesoscópica (a escala média, por exemplo com negociações ao nível regional e/ou sectorial).


25.6.07

Transparência europeia


A campanha, "soberanista" ou de "esquerda", contra o "Tratado Constitucional" europeu, vivia em grande parte do seguinte dispositivo: atacar coisas que já existem, há muitos anos, como se fossem novidades desse tratado. Porquê? Porque o tratado juntava todas as disposições dispersas por diversos tratados anteriores, que passariam a constar num único texto, com princípio, meio e fim - e que assim seria muito mais fácil de "ler". As oposições mais primárias atacavam então o que aparecia no novo tratado, que eram em geral coisas apenas "copiadas" do ordenamento já existente. Isso permitia também esquecer várias coisas novas, e boas, que também lá estavam.

Assim se explica que uma das novidades do novo "tratado de funcionamento" é que este já não terá esse aspecto sistematizador: será apenas uma lista de "onde se lia X passa a ler-se Y". Muito difícil de compreender para quem não domine o que já consta dos anteriores tratados. Mas nada inconveniente para os eurocratas, que já usam no dia a dia uma coisa chamada "Tratados Consolidados": uma espécie de tratado único construído com todas as alterações acumuladas. Teremos, portanto, um tratado "menos transparente", por assim dizer. Mas apenas porque a demagogia anti-europeia gosta pouco de discutir a substância e prefere o espalhafato verbal.

Essa é, aliás, a mesma razão pela qual todos têm opinião sobre referendar ou não referendar o futuro tratado, embora em geral se preocupem pouco em discutir o concreto das próprias disposições em causa. Porque é difícil fazer demagogia com matérias complexas. E a demagogia só gosta de assuntos a preto e branco, fugindo como o diabo da cruz de qualquer cena a milhões de cores - ou mesmo a 256 tons de cinzento.



(Cartoon original de Marc S.)

Notas soltas sobre a reforma do Estado social (1/3)


1. SUBSTITUIR A ESTRATÉGIA DOS “DIREITOS ADQUIRIDOS” PELA VELHA UTOPIA “A CADA UM SEGUNDO AS SUAS NECESSIDADES, DE CADA UM SEGUNDO AS SUAS POSSIBILIDADES”



A estratégia central da oposição às reformas encetadas pelo actual governo assenta na noção de “direitos adquiridos”. Trata-se de uma estratégia típica da esquerda conservadora, mas é uma estratégia puramente defensiva (destina-se apenas a evitar a perda de regalias já conquistadas), insensível à mudança de contexto (uma nova situação pode tornar preferível novos direitos, mas essa lógica cai fora da estratégia dos direitos adquiridos). Assim sendo, é uma estratégia que se torna necessariamente obsoleta.

O que precisamos é de um regresso à velha utopia “a cada um segundo as suas necessidades, de cada um segundo as suas possibilidades”. Isso significa que precisamos de uma dinâmica evolutiva da equação direitos/deveres, atenta aos novos privilégios e às novas exclusões.

Exemplo: porque é que um rico e um pobre hão-de pagar o mesmo (ou praticamente o mesmo) para aceder a cuidados de saúde? O princípio da gratuitidade tendencial da saúde pertence a uma estratégia fixista, de “preservação de direitos”, mas é um princípio injusto. A certo momento, o principal argumento para manter essa situação era a ineficácia do controlo do rendimento, mas essa situação evoluiu bastante e pode evoluir mais. A lógica dos direitos adquiridos, ou qualquer lógica defensiva e igualitarista, é injusta e ineficaz. É preciso substituí-la por uma lógica de adequação às necessidades e possibilidades de cada um: cuidados de saúde de qualidade elevada para todos, gratuitos para quem precisa e não pode pagar, bem pagos por quem pode pagar. É preciso levar mais longe a estratégia de diferenciação das prestações sociais.

Quer isto dizer que a a estratégia dos direitos adquiridos é inútil? Não, ela serve para evitar o retrocesso social generalizado imposto por um sector da sociedade contra outros sectores. Para conciliar as duas coisas (progresso social e adequação aos novos contextos), o que é necessário é que as novas soluções sejam obtidas por um diálogo social aprofundado. Aí temos outro problema de fundo.


24.6.07

Shakespeare africano: força e significado


A peça de teatro NAMANHA MAKBUNHE parte do muito clássico "Macbeth" de Shakespeare e dá-lhe uma leitura que, permanecendo basicamente fiel ao modelo, se adapta. Se adapta, designadamente, a algumas realidades africanas - para a partir daí nos dar um espectáculo que, continuando a ser de validade universal, assume formas muito belas.

Produzida pelo Teatro Nacional de D. Maria em colaboração com o grupo "Os Fidalgos", da Guiné Bissau, representada por actores africanos, explora magnificamente a contextualização africana. Por exemplo, com as danças das feiticeiras, aquelas ideias que sugerem sonhos de glória aos ambiciosos e assim os levam ao engano e à desgraça, representadas por feiticeiras tanto na versão original como nesta versão. Ou com a música e canto que acompanham o narrador. E com o próprio narrador, o qual, aparecendo como o interlocutor do povo da tabanca, serve de dispositivo de optimização da economia do espectáculo.

Mas ainda, e este exemplo é ainda melhor para ilustrar as novidades desta adaptação e encenação, dando ao Macbeth africano (o guerreiro Makbunhe) duas mulheres, duas Lady Macbeth portanto: uma meiga e desinteressada do poder, virtuosa e pacífica, capaz de amar o seu homem mesmo que ele fosse apenas um camponês - sendo esta adequadamente uma negra roliça, doce e calma; outra impetuosa, acicatando o homem para a luta por todos os meios para alcançar o reinado, activa, pressionando sempre - sendo esta de um tipo físico mais enérgico, mais musculado, mais esguio, apresentada como mais prometedora em termos de dar herdeiros ao seu senhor. Criam uma tensão entre duas tendências de Makbunhe, duas possibilidades de ser, dois caminhos de acção, dois destinos - e materializam essa luta dentro das possibilidades de um ser humano na luta entre duas esposas legítimas de um mesmo marido, uma possibilidade dramatúrgica que Shakespeare não tinha disponível.

A peça, encenada pelo polaco Andrzej Kowalski e que dá a ver o trabalho de actores magníficos, está no Teatro da Trindade só até 1 de Julho e deve ser vista. Imperativamente. Depois não digam que eu não avisei. (Se a coisa não fosse urgente não estaria a escrever aqui ao domingo, note-se.)



(Foto do sítio do TNDM II.)

23.6.07

Breve resumo de um acordo como tantos outros (Tratado europeu)

O Conselho Europeu fechou um acordo sobre o novo Tratado entre os 27 membros da UE. Em resumo:

- não é uma Constituição, é um Tratado como os outros, quer dizer: não é um texto completo que substituiu os tratados anteriores, nem pretende ter "mais dignidade" do que os outros, é apenas um texto com "emendas" aos tratados existentes; não fala de símbolos de tipo "estatal", como bandeira, hino, constituição;

- já não haverá "Ministro dos Negócios Estrangeiros" da UE, quer dizer: passa a chamar-se Alto Representante;

- a Carta dos Direitos Fundamentais não é transcrita no tratado, mas será na mesma juridicamente vinculativa, podendo o Reino Unido decidir ficar de fora dessa vinculação;

- o "problema polaco" foi resolvido com um truque habitual: diluir no tempo a entrada em vigor das novas regras, quer dizer: o sistema de votação é o que estava previsto ("dupla maioria" para decidir: 55% do número de Estados desde que representem 65% da população), mas só entra em vigor plenamente e sem escapatórias em 2017 (em vez de 2009);

- mantém-se a prevista extensão da maioria qualificada (em vez da unanimidade) a cerca de 40 novos domínios de decisão, mas os britânicos e os irlandeses podem escusar-se a respeitar essas decisões quando o entendam;

- a existência de um Presidente permanente do Conselho Europeu (em vez da rotação semestral actual), uma Comissão Europeia com um número de comissários inferior ao número de Estados Membros, sendo que a presença dos países na Comissão obedece a uma rotação igualitária (todas estas coisas ficam como estava previsto);

- é introduzido (a pedido da Holanda) um mecanismo "suave" que permite aos Parlamentos Nacionais intervirem politicamente quando as instâncias comunitárias invadam as suas competências.

E aqui fica este breve resumo, com um "olé" a todos os comentadores e jornalistas que ontem juravam pela saúde dos seus filhos que o acordo era impossível. O acordo não é empolgante? Não é. Mas a Europa tem vivido mais de pequenas coisas pouco empolgantes do que de "grandes machadadas na rotina". Afinal, não é assim que se constrói quase tudo o que dura?

Ficar de segunda


Segundo o Expresso de hoje, o governo espanhol pretende que o TGV, entre Badajoz e Madrid, circule apenas a 250 Kms/h, em vez dos 350 kms/h que podia ser. Por isso, o Partido Popular da Extremadura acusa Zapatero de estar a fazer uma "alta velocidade de segunda".

Curioso: em Portugal toda a oposição e parte significativa da opinião publicada parece querer tudo de segunda. Um TGV de segunda, um aeroporto de segunda, ... Estamos próximo daquela teoria de Durão Barroso: enquanto houver uma criancinha numa lista de espera, não há um tostão para essas obras públicas que são só sumptuosidade...

A que apelam estes discursos "poupadinhos", mesmo daqueles que são responsáveis directos pelas decisões que agora criticam? Apelam à inveja: se eu não vou de avião para lado nenhum, para que quero um aeroporto; se eu não vou para Madrid, que me interessa estar ligado em rede de alta velocidade à Europa. Essa é a matriz do discurso do pobrezinho, precisamente o discurso que nos afirma mais e mais como pobrezinhos. Se fosse mesmo preocupação pela melhor decisão, teriam esperado tantos anos para meter a mão na consciência?

22.6.07

Notícias da delegação da Polónia ao Conselho Europeu


Polska ... raiz quadrada do número de habitantes ... (será que ele se julga a raiz quadrada do par de gémeos?)

(Cartoon de Marc S.)

Esmolas?


Não, não é de esmolas que precisamos. A partir de segunda-feira, em três dias úteis consecutivos, "Notas soltas sobre a reforma do Estado social".


21.6.07

Criacionismo, ciência e política

O muito interessante blogue Ciência ao Natural (de onde roubamos a ilustração abaixo) chama a atenção para um projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre "os perigos do criacionismo na educação". Imagino que Ciência ao Natural partilhe a opinião do blogue Pharyngula, onde parece ter encontrado a referência deste documento político, neste post. Nesse post de Pharyngula demonstra-se grande entusiasmo pelo facto de os órgãos políticos europeus tomarem posições tão interessantes sobre a matéria. Ora, isto sugere-me algumas perguntas, que já me andavam a bailar na cabeça desde que mão amiga me fez chegar tal texto.

Eu sou completamente contrário ao criacionismo, quer como ideia julgada no plano científico (usa "esquemas" de argumentação e "factos" que me parecem completamente carentes de qualquer forma de racionalidade, tanto quanto esta nos é acessível e necessária à investigação científica), quer como ideia religiosa (é um dos produtos dos piores aspectos da religião, entre os quais a mania de que os humanos e o que existe ao cimo da Terra é o melhor que existe e pode existir no Universo e que o pobre do Deus teria certamente de ter obedecido a essa regra). Mas, e aqui vem o mas, vale a pena ler o tal texto apresentado na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e fazer algumas perguntas. Tais como:

- será que compete mesmo a uma Assembleia Parlamentar fazer declarações solenes acerca da cientificidade de uma qualquer teoria?

- será que compete a uma assembleia política declarar quais são e quais não são os factos científicos num dado domínio?

- será que compete a um parlamento fazer proclamações acerca do que são e do que não são raciocínios científicos? do que é e do que não é rigor científico?

- será que compete a uma qualquer maioria política aprovar textos acerca do que é sabido e não é sabido numa dada disciplina científica?

Confesso que tudo isto me parece muito perturbador. Por este caminho, qualquer dia uma maioria política particularmente obtusa poderia desaprovar o heliocentrismo e considerar que o mundo gira à volta da Terra. Sim, porque, a partir do momento em que se admite que uma maioria política, num dado momento, pode fixar critérios de cientificidade, poderemos no futuro ter outra maioria política a fixar outros critérios e a querer impô-los.

E nós havemos de aplaudir isso?

Não deveremos antes concentrar-nos em que o trabalho científico possa obedecer às suas próprias regras (já que, por imperfeitas que sejam, não podem ser melhoradas por intervenção exterior) e deixar que, depois, mas só depois, a sociedade, a comunidade política, decida o que acha melhor para seu governo? É que a sociedade não tem de reger-se só por critérios científicos, terá de recorrer também a outros planos (o plano ético ou prudencial, por exemplo) - mas será muito perigoso admitir que seja a comunidade política a ajuizar em matéria científica, a intervir na disputa racional pela compreensão do mundo, ou até a fixar o que seja racionalidade.

É por isto que, contrariamente a outros, não fico nada empolgado com aquele projecto de resolução que anda por lá na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Acho que ele autoriza demasiados equívocos. E pode tornar-se, a prazo, um tiro no pé: quer dizer, fazer com que, como nos EUA, os fundamentalistas religiosos queiram usar o poder político para impôr o seu obscurantismo. Prezo muito os mecanismos políticos da democracia, mas prezo também muitíssimo o princípio de que nem tudo pode ser julgado nos parlamentos. Certas áreas de uma vida pública decente devem manter a sua autonomia e os órgãos de decisão política devem zelar apenas por essa autonomia, em vez de intervir directamente em questões de conteúdo. Julgo ser o caso da ciência.



(Outras postas em outros blogues também reflectem o mesmo projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, tais como Palmira F. da Silva no De Rerum Natura ou Rastos de Luz).

Ricardo II

Ricardo II, de William Shakespeare traduzido por Fernando Villas-Boas, encenado por Nuno Cardoso, no Teatro Nacional D. Maria II. Com todos os campos de batalha representados por campos de futebol (um dispositivo simples, talvez simplista, a valer uma já usada tese de antropologia acerca dos modos de combate primitivo que subsistem nas nossas mentes e nos nossos ritos de hoje). Com todas as lutas políticas dentro da classe dirigente a serem como sempre foram e como continuam a ser (quando são mesmo, e apenas, acerca da estruturação da classe dirigente). Eu nem gosto do tema, ao qual costumo chamar (com desprezo) populismo, mas a verdade é que um texto tão antigo, ao manter-se tão actual, faz pensar até que ponto às vezes só mudam as moscas.




(Foto do sítio do TNDM.)

Memorial



Berlim, a ver o dia declinar, nesta particular posição de estar imerso no memorial aos judeus que foram mortos na Europa antes de ter chegado a sua hora.

(Dezembro de 2006. Foto de Porfírio Silva.)

20.6.07

Um mundo rasgado...


...é este mundo que resulta de muitos pensarem que não somos mais do que formigas dotadas de mecanismos de reacção aos estímulos físicos locais, esquecendo a história acumulada, as instituições que herdámos e que nos moldam (apesar de as podermos também moldar um pouco), a imaginação que nos empurra para muitos lados (mesmo quando essa imaginação é delirante), a utopia que nos alenta ou nos leva para becos sem saída, e ... e...


19.6.07

Quando o desejo toma o seu tempo


Já está por aí o filme Lady Chatterley, realizado pela senhora Pascale Ferran, baseado numa das versões de "O Amante de Lady Chatterley", de D. H. Lawrence. Nada pretendo aqui acrescentar ao que milhões de críticos, encartados ou não, já contribuíram.
Apenas digo isto: este filme ajuda a pensar como os dias de hoje tornaram o desejo apressado, como a pressa consumista se equilibra mal com o feitiço do lento pormenor, do rendilhado das palavras e dos silêncios.
E, já que estou nisto, sempre acrescento: maridos confiantes, doutores e artistas, ponham os olhos no exemplo: o homem do bosque pode ter mais encanto do que a sofisticação saloia dos que se julgam os mais requintados da capoeira. E não se consolem com a cadeira de rodas: a pior "ineficiência" não é a paralisia dos membros inferiores, mas o embotamento dos espíritos altivos.





18.6.07

Um problema nos alicerces

Está praticamente bom. Só falta o "praticamente".

15.6.07

Os vulgares e os outros (ou "outra epístola aos deterministas")


Dedico este excerto de uma obra de Dostoiévski a todos aqueles que acreditam que nós somos apenas peças de uma grande máquina, peças sem liberdade, cujas "acções" são apenas movimentos dos nossos constituintes físicos, determinados inexoravelmente pela longa sequência de tudo o que aconteceu antes.


- (…) Acredito apenas na minha ideia principal, que consiste precisamente em que as pessoas, pelas leis da natureza, se dividem em geral em duas categorias: a inferior (vulgares), ou seja, por assim dizer, o material que serve unicamente para engendrar semelhantes; e os homens propriamente ditos, ou seja, as pessoas que possuem o dom ou o talento de dizer, no seu meio, uma palavra nova. (…) a primeira categoria, ou seja, o material, consta em geral de pessoas conservadoras por natureza, correctas, que vivem na obediência e gostam de ser obedientes. (…) A segunda categoria consta dos que violam a lei, que são destruidores ou têm propensão para o serem, consoante as suas capacidades. (…) A primeira categoria é sempre senhora do presente, e a segunda é a senhora do futuro.

- (...) Mas diga-me uma coisa: como se podem distinguir os vulgares dos invulgares? Têm alguns sinais de nascença?


Fiodor Dostoiévski, Crime e Castigo (1866)

Tradução portuguesa publicada pela Editorial Presença, 2002, pp. 245-246

14.6.07

Cavar sentidos no corpo de carne

Palimpsesto (s.m.) : papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)
Arnulf Rainer, um dos artistas do "accionismo vienense", pratica uma espécie de palimpsesto com as suas máscaras mortuárias: pinta sobre elas. Mas «Rainer nunca pinta para recobrir a pintura, mas antes para a clarificar na sua intencionalidade. Neste sentido, nada apaga e, simultaneamente, cobre para procurar a génese».(1) Inscrevendo as minhas vidas nas tuas vidas, faço uma outra espécie de palimpsesto: inscrevo sentidos em vida e espero que o teu sentido esclareça o meu sentido, que o teu sentido seja gerador do meu sentido (e inversamente).


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(1) Carlos Vidal, O corpo e a forma. Dois conceitos, o mesmo tema. Cindy Sherman, Arnulf Rainer, Porto, Mimesis, 2003, p. 39





Arnulf Rainer, Cadaveri IV, 1980

13.6.07

Os possíveis possíveis e os possíveis impossíveis



O jogo dos possíveis do corpo tem hoje mais caminhos. Eles são em parte resultado do alargamento dos meios técnicos. Em parte motivados pelo cuidado com a qualidade de vida. Não creio, contudo, que esteja aí o ponto crucial. Antes, o miradouro de onde alcanço mais longe o sentido desses possíveis, que em delírio se ramificam, é o da degradação do corpo em conceito: a fisicalidade concreta do corpo desvanece-se face à abstracção "corpo". E, essa abstracção, é fácil pensar em manuseá-la, torcê-la, levá-la ao mecânico para revisão ou arranjo, embelezá-la, maquilhá-la.

Vejo nos pesadelos dos irmãos Chapman um caminho para esse jogo dos possíveis. Mas há um tipo concreto de corpo cujos pesadelos não são deste continente. Esse tipo concreto de corpo é o corpo faminto. "Faminto" mesmo: fome e sede. O corpo de homens e mulheres para quem certos possíveis estão na zona dos pesadelos impossíveis. Cujo Éden não tem os mesmos riscos das "Anatomias Trágicas" dos Chapman. Nem todos escolhem o seu modo de participar no trágico. Porque estão dentro do corpo que concretamente lhes calhou em sorte.





Jake e Dinos Chapman, Zygotic Acceleration, biogenetic-de-sublimated Libidinal Model (foto de)

12.6.07

Corpos racionais mastigam-se melhor

Visto o corpo pelo olhar da racionalidade, por que razão não há-de ele ser susceptível de partição, de decomposição em partes - talvez segundo um critério funcional, segundo a razão de ser de cada um dos seus subsistemas? Tal como num computador podemos, por exemplo, separar os dispositivos de comunicação com o exterior (teclado e monitor, nomeadamente) da unidade central de processamento e da memória - porque não haveremos de poder desconstruir o corpo, cada peça para seu lado, segundo o uso padrão que lhe conferimos? Quem diz desmontar, diz re-montar; partir/compor; descontruir/reconstruir. Isto se, como foi dito, virmos o corpo pelo lado da racionalidade. Porque não haveremos de fazer humanos segundo a receita de Cindy Sherman? Chegará essa receita a ser um algoritmo? Ou haverá qualquer coisa que falha numa leitura do corpo que vai só pela racionalidade, mesmo que ela seja tecnologicamente dotada?


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Cindy Sherman nasceu em New Jersey em 1954. Foi antes de qualquer outra coisa fotógrafa. Em muitas das suas obras ela é o seu próprio modelo. "Ela", quer dizer, transfigurada de muitas maneiras. Nos anos '90 do século passado fez uma série de "bonecas": entre elas a que se vê abaixo.




Cindy Sherman, Untitled # 250

11.6.07

O teu corpo é uma máquina


O que eu vejo em David Cronenberg é também uma reflexão sobre os caminhos do corpo.

Em Videodrome (já lá vão uns anitos) o corpo embrenha-se numa luta desesperada com o banal televisor doméstico.

Em A Mosca, um corpo humano e um corpo não humano entram em confluência e a mente não pode ficar indiferente à sua base material (e, para essa questão, não chega sequer a ser muito importante se o corpo é ou não a única base da mente).

Em O Festim Nu não há grande novidade: todos sabemos que as drogas fornecem ao corpo certas instruções que se desviam um pouco da relação habitual entre organismo e ambiente.

Em M. Butterfly é-nos dado a ver que o que o corpo mostra ou oculta não é tudo o que há a mostrar ou a ocultar em nós: aquele "M." do título é ambíguo entre Mr. e Mrs. e isso passa-se com grande poesia e elevação.

Em eXistenZ já não se brinca com mecanicismos ingénuos: o que é maquínico e o que é propriamente biológico estão já na mesma família.

Em Spider revela que se a nossa unidade de processamento central nos fornecer leituras intermitentes do mundo, o mundo para nós se torna realmente uma intermitência entre vários mundos - e não há objectividade que resista a isso (nem o espectador escapa à dúvida acerca de qual das histórias possíveis esteve a ver).

A ideia, aqui, não é traçar um (mesmo que breve) percurso fílmico de Cronenberg. A ideia é apresentar o realizador Cronenberg como um filósofo do corpo, do corpo mutante: por dentro e por fora; na carne e nos neurónios; no jogo solitário com a transformação genética, tanto como no jogo social que usa diferencialmente os mecanismos de máscara; contra a máquina ou misturando-se com a máquina; entrando "de corpo e alma" na realidade virtual. Mas, claro, pode sempre ser válida a hipótese de que eu esteja a tresler.

Proponho, então, a imagem abaixo. É de Crash (1999), do mesmo Cronenberg. Neste filme há carros, carros velozes, amantes de carros velozes, acidentes e as próteses que se lhes seguem, corpos, sexo, malucos por sexo em carros velozes... ou deveria antes dizer "malucos por sexo com carros velozes"? Não vejo, aí, contudo qualquer ponta de pornografia. Essa loucura por carros vemos facilmente nas nossas cidades. Próteses, parece que queremos poder dispor delas para tudo. Então, o que há de especial?

O que Cronenberg nos propõe é o amor humano pela máquina. O desejo sexual pela máquina. O erotismo desta imagem de Crash diz tudo: este rasgão no carro acidentado é-nos claramente proposto como um sexo que se acaricia. E um automóvel nem sequer é um robot muito sofisticado. Tudo o que vês nesta imagem está apenas no teu olhar.


10.6.07

Dia de Portugal


"José Mattoso [em A Identidade Nacional] conta-nos que um dia o rei D. Luís perguntou do seu iate a uns pescadores, com quem se cruzou na costa, se eram portugueses; e a resposta foi desconcertante e clara: «Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa do Varzim!». A resposta revela a complexidade do problema. O serem portugueses não lhes pôde ocorrer, quando a pertença à comunidade próxima é que estava presente."

Guilherme d'Oliveira Martins, Portugal - Identidade e Diferença, Gradiva, 2007, p. 16

8.6.07

Micro Audio Waves

Eles vêm aí de novo. Alerta, pois. Para ir ajeitando os nervos, fica uma das clássicas deles.



push down

gently

but firmly

until the body is fully connected


by touching

a grounded metal surface

firmly

until the body is fully connected


(excerto de “Fully Connected”, do álbum No Waves dos Micro Audio Waves)





Onde ELIZA leva à questão ética (Eliza-5/5)


Quando, a partir do programa ELIZA e das interpretações que dele se fizeram, Weizenbaum se põe a reflectir sobre o papel das máquinas programadas na sociedade dos humanos, o seu ponto central é este: certos objectivos e propósitos humanos não devem ser delegados nos computadores, independentemente de isso ser ou não ser tecnicamente possível; em certos domínios, o desenvolvimento do poder dos computadores é moralmente repugnante.


Há uma área de aplicações que é simplesmente obscena: substituir um humano por um computador numa função que careça de respeito interpessoal, de compreensão ou de amor. Exemplos: um psicoterapeuta, um juiz. Nesta categoria incluem-se também as aplicações que “representam um ataque à vida”, como seja um projecto (então em vista) para ligar o cérebro e o sistema visual de um animal a um computador. Outra área de aplicações computacionais deve ser evitada, ou pelo menos desenvolvida com particular atenção, devido aos efeitos indirectos que pode despoletar. O exemplo dado é o do reconhecimento automático da fala, porque isso facilitaria aos governos o controlo das comunicações entre os cidadãos, com uma eficácia sem precedentes e com a consequente invasão de privacidade.


O ponto, para Weizenbaum, é que a relação dos humanos com o mundo é específica à condição humana. Mesmo que uma máquina possa ser suficientemente desenvolvida para ser considerada um tipo de animal (por exemplo, sentindo e agindo sobre o ambiente, sendo modificada pelas suas experiências no mundo, adquirindo algum tipo de sentido de si), mesmo assim cada espécie é socializada de uma determinada maneira. Os humanos tornam-se humanos em sentido pleno sendo tratados como seres humanos por outros humanos (por exemplo, sendo alimentados, protegidos e acarinhados desde a mais tenra infância) – e esse processo, que depende largamente de termos corpo, não é transferível “por programação” para uma máquina. Qualquer inteligência da máquina é uma inteligência que nos é estranha, porque os problemas da máquina não são os nossos problemas, escreve Weizenbaum em 1976.


A questão, para Weizenbaum, é ética: ele não pode admitir a pergunta que McCarthy um dia lhe fez: “O que é que um juiz sabe que não possamos ensinar a um computador?” – porque a resposta implícita era “Nada!”.


Logo em 1976 Weizenbaum viu aspectos importantes do problema. Em alguns aspectos a sua perspectiva ética já terá talvez sido derrotada (provisoriamente?). Mas o ponto continua a merecer reflexão.

O que os computadores podem mas não devem fazer (Eliza-4/5)


Em 1976, Joseph Weizenbaum publica Computer Power and Human Reason. Um dos pontos de partida dessa obra é o seu programa ELIZA e as reacções que o programa provocou - e que o chocaram.


Primeiro, muitas pessoas usando o programa envolviam-se emocionalmente na situação, como se estivessem mesmo a consultar um psiquiatra, chegando ao ponto de querer ter privacidade para os seus “diálogos” (o que aconteceu com a própria secretária do programador, apesar de ela “saber” perfeitamente quem tinha feito o ELIZA).

Segundo, aparecerem psiquiatras no activo a sugerir seriamente que o ELIZA podia ser desenvolvido para ser transformado numa forma automática de psicoterapia. Um dos exemplares mais notáveis é K.M. Colby, que desenvolveu ainda nos anos 1960 programas de análise da neurose, começando com um programa que “tratava” de uma mulher que acreditava que o seu pai a tinha abandonado, mas não aceitava conscientemente que o odiava por isso.

Terceiro, muitos investigadores consideravam que o ELIZA abria uma via promissora para a resolução do problema da compreensão da linguagem natural pelos computadores.


Este conjunto de reacções ao ELIZA, atribuindo maravilhas à sua obra que ele próprio negava veementemente, levou Weizenbaum a interessar-se pelos problemas suscitados pela facilidade com que as pessoas fazem atribuições extraordinárias a uma tecnologia que não compreendem. Postas as coisas nesses termos, não lhe basta a questão “técnica” de saber o que os computadores serão ou não serão capazes de fazer: quer averiguar a questão mais central de saber o que os computadores devem ou não devem ser autorizados a fazer em substituição dos humanos. A sua resposta é clara: certas áreas da acção humana não devem ser entregues nunca à máquina.


Amanhã veremos o seu argumento um pouco mais em pormenor.


[Próxima nota desta série: Onde ELIZA leva à questão ética.]

6.6.07

PERSEPOLIS, da BD ao cinema





Primeiro foi uma grande Banda Desenhada. Agora é um filme de animação. PERSEPOLIS é a história de uma rapariguinha iraniana que vive a queda do Xá e o início da República Islâmica no Irão - e que vive tudo isso nas contradições de todos os que tiveram esperança em coisas nas quais é perigoso ter esperança. A rapariguinha vem depois para o Ocidente, para ser poupada às eventualidades do poder religioso - e aí encontra outros motivos de perplexidade.

PERSEPOLIS, o filme, recebeu este ano o Prémio do Júri no Festival de Cannes. Vai aparecer em vários países europeus neste mês de Junho. Quanto a Portugal, não sabemos, nem sabemos se alguém sabe. Fica aqui o clip de apresentação, que está disponível, com mais material interessante, aqui no My Space.





O mecanismo interno de ELIZA (Eliza-3/5)


O esquema básico do funcionamento do ELIZA era simples: na frase inserida pelo utilizador era procurada uma palavra-chave; a cada palavra-chave correspondia um conjunto de regras de decomposição e uma delas era aplicada para transformar a frase numa sequência de palavras manipulável pelo programa; sobre essa sequência era aplicada uma das regras de recomposição associadas à mesma palavra-chave, de modo a produzir a sequência de palavras que constitui a resposta do computador. O programa variava as respostas: não usava sempre as mesmas regras de decomposição e de recomposição para ocorrências diferentes da mesma palavra-chave. Um exemplo é o seguinte:



O programa dispõe de um dicionário de palavras-chave, que permite determinar se alguma das palavras contidas numa frase inserida pelo utilizador é uma palavra-chave. O utilizador pode inserir, de uma só vez, mais do que uma frase ou uma frase composta, mas o ELIZA só pode transformar uma frase simples de cada vez. Por isso, quando analisa uma inserção do utilizador e encontra uma vírgula ou um ponto final, se já encontrou até aí uma palavra-chave ignora tudo o que aparece a seguir a esse sinal de pontuação; se ainda não encontrou nenhuma palavra-chave, apaga tudo o que “lera” até aí e concentra-se no restante. Se numa entrada não encontra nenhuma palavra-chave, o ELIZA ou retoma um tópico anterior ou responde com uma frase do género “Porque é que pensa assim?”, destinada a ter cabimento em qualquer contexto.


Weizenbaum explica que escolheu o psicoterapeuta como o seu “personagem” porque a entrevista psiquiátrica lhe pareceu um dos poucos exemplos de comunicação em linguagem natural com dois intervenientes em que parece natural, para uma das partes, a pose de quase completa ignorância acerca do mundo real. Quando um paciente diz “Fui dar uma grande volta de barco” e o psiquiatra responde “Fale-me de barcos”, não pensamos que ele seja ignorante acerca de barcos, mas que ele tem algum objectivo em mente para orientar a conversa desse modo.


Weizenbaum é muito claro ao afirmar: os pressupostos são lá postos pelo humano; quem atribui conhecimento e inteligência ao seu interlocutor é o humano. Neste caso, o autor do programa é completamente transparente: mostra toda a operação interna do ELIZA e explica que, além dos truques relativamente simples que lá colocou, tudo o resto é fornecido pelo humano utilizador.


Amanhã veremos as reflexões que ELIZA mereceu a Weizenbaum alguns anos mais tarde.


Imagem da Presidência Portuguesa da União Europeia

Esta é a imagem da próxima presidência portuguesa (do Conselho) da União Europeia.

Está no sítio da mesma.



Uma consulta de ELIZA (Eliza-2/5)


O programa ELIZA, desenvolvido por Joseph Weizenbaum no MIT entre 1964 e 1966, estabelece um conversa em linguagem natural (inglês) entre um computador e um utilizador humano.


Na versão mais conhecida e usada pelo seu criador para efeitos de demonstração, a máquina programada desempenha o papel de um psicoterapeuta rogeriano. Um dos elementos de credibilização do sistema consiste precisamente no pressuposto de que um psiquiatra dessa escola incentivará o seu paciente a esclarecer todas as suas afirmações, devolvendo sistematicamente as suas falas com pedidos de melhor esclarecimento sobre os tópicos suscitados. O utilizador do sistema escreve as suas “falas” no teclado e recebe respostas também escritas com tempos de reacção que não desmentem a humanidade do interlocutor. Um exemplo de “conversa”, fornecido pelo próprio Weizenbaum, é apresentado na caixa abaixo. (Clicar sobre a caixa para obter uma imagem aumentada e mais nítida.)


São relatadas as mais diversas histórias acerca da forma espantosa como muitas pessoas, interagindo com este programa, se convenciam de que estavam a conversar com um psicoterapeuta. Por exemplo, uma das secretárias do sector onde Weizenbaum trabalhava terá chegado a pedir aos circunstantes que a deixassem a sós com o “psicoterapeuta” para poder falar com a necessária privacidade.


Amanhã veremos como funcionava o programa.




[Próxima nota desta série: O mecanismo interno de ELIZA.]

O "teste de Turing" e o psicoterapeuta automático (Eliza-1/5)


Na posta anterior sugerimos que se consultassem com o "psicoterapeuta" ELIZA, um velhinho programa de computador. Vamos agora (hoje e nos dias seguintes) enquadrar o significado dessa experiência na história das ciências do artificial.


Num artigo de 1950 o matemático Alan Turing lança uma forma muito particular de reflexão acerca da relação entre mente e máquina.


Querendo considerar a questão "as máquinas pensam?", mas considerando-a, nessa forma, uma questão "demasiado desprovida de sentido para merecer discussão", Turing propõe-se expressá-la noutra forma. Para isso introduz o "jogo da imitação". Sejam três pessoas: A, um homem; B, uma mulher; C, um interrogador humano que permanece numa sala separada de A e B. O objectivo do jogo é: para o interrogador, determinar, com base nas perguntas que dirige a A e a B e nas respostas obtidas, qual é o homem e qual é a mulher; para a mulher, ajudar o interrogador (dizendo a verdade); para o homem, enganar o interrogador, fazendo-o crer ser ele a mulher. Para que o tom de voz de A ou de B não ajude o interrogador, as respostas ser-lhe-ão transmitidas por telétipo.


Agora, a questão "as máquinas pensam?" pode ser substituída pela questão seguinte, relativa a um particular computador digital C: "É verdade que, modificando esse computador para ter uma capacidade de memória adequada, aumentando satisfatoriamente a sua velocidade de trabalho e fornecendo-lhe um programa apropriado, podemos fazer com que C desempenhe satisfatoriamente o papel de A no jogo da imitação, sendo o papel de B desempenhado por um homem?". De acordo com a distribuição de papéis no jogo, o desempenho satisfatório do computador diz respeito à capacidade para evitar que o interrogador o identifique como tal.


Nesta segunda fase do jogo, tanto o homem como o computador imitam uma mulher. No entanto, tanto Turing no resto do artigo, como a maioria dos comentadores, ignoram o aspecto "género" da questão. Em geral, o jogo é entendido como dizendo respeito à capacidade de uma máquina para, quanto à sua inteligência expressa no comportamento "escrever em linguagem natural", se fazer passar por um humano quando apreciado precisamente por um humano.


A "aposta" de Turing é então explicitada: por volta do ano 2000 haverá computadores que jogarão tão bem o jogo da imitação que um interrogador humano médio não terá mais do que 70% de hipóteses de fazer uma identificação correcta após 5 minutos de interrogatório, de tal modo que alguém que fale em máquinas pensantes não correrá o risco de ser contraditado. A variadas formas do desafio criado por esta aposta passou a chamar-se "o teste de Turing".


Uma área de desenvolvimento do teste de Turing é a implementação de robots de software que "conversam" com humanos. Várias competições cujo objectivo é passar versões do teste de Turing têm sido organizadas. Talvez a mais famosa seja a que começou a ser organizada em 1991 por Hugh Loebner. Na edição de 1991, além de vários programas terem sido julgados humanos, também aconteceu um humano (que tinha um conhecimento fora do comum da obra de Shakespeare) ser tomado por um programa de computador. Muitos programas deste género seguem o modelo do ELIZA, precisamente o programa que estamos a analisar nesta série de notas.


Amanhã diremos mais sobre o ELIZA.




Ilustração de Ann Witbrock in Copeland, B.J., Artificial Intelligence, Blackwell,Oxford, 1993



[Próxima nota desta série: Uma consulta de ELIZA.]

1.6.07

ELIZA, o seu psicoterapeuta automático para este fim de semana


Um dos temas deste blogue (como se lê no cabeçalho) é filosofia da ciência (o que, para nós, também passa por alguma história). Designadamente, no que toca a uma família de abordagens científicas a que chamamos "ciências do artificial". Sim, computadores e essas coisas, especialmente quando querem pô-los a imitar ou a emparceirar com os humanos.

Nesse quadro, vamos de seguida (nos próximos dias) deixar algumas notas acerca de um dos episódios mais curiosos da história da Inteligência Artificial. É uma história da década de 1960 e envolve um psicoterapeuta automático, quer dizer, um computador programado de forma a "fazer de conta" que é um psicoterapeuta.

O ELIZA, o tal programa, deve "conversar" numa língua natural (neste caso, o inglês) com um humano, sendo que o humano deve comportar-se como se estivesse numa consulta expondo os seus problemas do foro psíquico. E deve obter, do ELIZA, o comportamento correspondente ao do psicoterapeuta.

Diremos mais sobre isto para a semana, mas para já deixamos duas versões do ELIZA que estão disponíveis na rede.




Para interagir com qualquer das versões deste psicoterapeuta automático:

- escreva a sua frase (com pontuação) no espaço respectivo e faça ENTER;

- tem de escrever em inglês;

- procure escrever frases completas, ou até mais do que uma frase completa de cada vez;

- tente adoptar o estilo (nomeadamente os temas) de quem está a falar com o seu psicoterapeuta.

Se quer obter algo interessante, não vale a pena tentar enganar a máquina: isso é fácil e só dará resultados pobres. Tente colaborar com a máquina. Não estamos a tentar convencê-lo de que ela funciona bem: apenas queremos proporcionar a experiência de interacção com um exemplar histórico da saga da Inteligência Artificial.
Um exercício interessante poderia ser tentar as mesmas "falas" nas duas versões e comparar os resultados.


E, quanto ao resto, para a semana falamos.


A causa longínqua (ou "epístola aos deterministas")


De Chirico, O Grande Metafisico (1916), Neue Nationalgalerie, Berlim


Dedico este excerto de uma obra de Jorge Luis Borges a todos aqueles que acreditam que o mundo é uma grande máquina, com peças muito bem encaixadas umas nas outras, em que, causa após causa, tudo o que nós fazemos (melhor, tudo o que nos acontece) é determinado pela longa sequência de tudo o que aconteceu antes, de tal modo que a nossa liberdade é pura ilusão (e assim deverá ser, também, a nossa responsabilidade).



A causa longínqua.


Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas teve muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro das Antilhas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuaram nos laboriosos infernos das minas de ouro das Antilhas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos factos infinitos: os blues de Handy, o êxito alcançado em Paris pelo pintor doutor oriental D. Pedro Figari, a boa prosa bravia do também oriental D. Vicente Rossi, o tamanho mitológico de Abraham Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, os três mil e trezentos milhões gastos em pensões militares, a estátua do imaginário Falucho, a admissão do verbo linchar na décima terceira edição do Dicionário da Academia, o impetuoso filme Aleluya, a forte carga de baioneta conduzida por Soller à frente dos seus Pardos y Morenos no Cerrito, a graça da menina Fulana, o mulato que assassinou Martín Fierro, a deplorável rumba El Manisero, o napoleonismo corajoso e encarcerado de Toussant Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pela catana dos papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe.

Além disso: a culpável e magnífica existência do atroz redentor Lazarus Morell.


Jorge Luis Borges, História Universal da Infâmia (1935).
(Primeira secção de “O atroz redentor Lazarus Morell”. Tradução portuguesa de José Bento, in Jorge Luis Borges, Obras Completas, Volume I (1923-1949), Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, pp. 295-355)