27.10.18

O nosso momento brasileiro.




Por uma questão de registo, deixo aqui pequenos apontamentos que publiquei alhures a propósito da iminência da segunda volta das presidenciais no Brasil de 2018.

***

- 1 -
BREVE REFLEXÃO SOBRE O NOSSO MOMENTO BRASILEIRO


As pessoas medem-se pelas suas atitudes em momentos críticos. Os políticos também. A possibilidade de Bolsonaro se tornar presidente de Brasil é um desses momentos reveladores. Tem revelado a irresponsabilidade e a falta de sentido democrático de alguns políticos (mesmo quando se apresentam como comentadores). Aqueles que, dizendo-se de esquerda, recusavam votar em Macron para travar Le Pen, mostraram a sua falta de apego à democracia. Aqueles que, dizendo-se liberais ou conservadores, recusam o seu voto a Haddad para travar Bolsonaro, mostram o mesmo com outra conversa.

O que está em causa é a diabolização do PT, instilada, à custa de muita propaganda, por aqueles que se opõem às escolhas políticas do PT. As políticas que fizeram com que Lula tivesse mais de 70% de aprovação no fim dos seus mandatos, as políticas que tiraram dezenas de milhões de brasileiros da pobreza, essas são as políticas que certos sectores não perdoam ao PT.

É por serem contra a corrupção? Não brinquem connosco: a destituição da impoluta Dilma foi um verdadeiro golpe de Estado e não foi, certamente, por causa da corrupção. Ou, melhor, foi corrupção: corrupção da democracia, porque consistiu em roubar por vias ínvias o que o povo tinha decidida nas urnas. Pior: a destituição de Dilma fez parte de uma manobra para salvar o grande esquema da corrupção (apesar de alguns dos protagonistas do golpe já estarem presos entretanto). Aqueles que acreditam que os corruptos são contra o PT por causa da corrupção deviam explicar melhor qual a lógica do seu argumento.

Não brinquem connosco: Haddad não é suspeito de corrupção. Há corruptos no PT? Deve haver. Mas corruptos são os que corrompem ou se deixam corromper, são pessoas concretas, não são todos os militantes de um partido ou o próprio partido. A menos que o partido, como organização, organize e beneficie da corrupção. Em Espanha, a justiça acha que no Partido Popular havia um esquema de corrupção instalado na própria máquina do partido: não vejo nenhum dos excitados contra o PT a quererem banir o PP da política espanhola. Rodrigo Rato, ex-vice de Aznar e ex-director do FMI, acabou de entrar na prisão, depois de todos os recursos, por corrupção. Não vejo nenhum dos escandalizados com o PT a quererem dar o mesmo tratamento ao PP. Trata-se de pura hipocrisia. O coro dos grandes corruptos conseguiu arregimentar uma orquestra de virtudes para esconder o seu verdadeiro papel e projecto para o Brasil.

Tudo isto deve fazer-nos pensar sobre as direitas portuguesas. A direita herdeira do salazar-marcelismo tem, hoje, pouco peso na sociedade portuguesa. Os verdadeiros fascistas, que andam por aí, são um bando marginal, embora perigosos e violento. Ficamos, por isso, descansados? Não. A democracia-cristã praticamente desapareceu do CDS, agora dominado por uma liderança populista, inclinada para as receitas que vendem no mercado da facilidade. Isso é perigoso, como se viu agora com a indiferença de Cristas face à opção brasileira. E os liberais extremos, órfãos do passismo, bolsonarizaram-se instantaneamente, o que mostra a (fraca) densidade do seu compromisso com a democracia. Isto mostra que convém continuarmos atentos. Uma direita democrática faz falta à democracia - por essa razão devemos estar atentos quando o impulso democrático fraqueja em certos sectores da nossa direita.

A quantidade de argumentinhos contra o PT e contra Haddad é impressionante. Um dia destes alguém me dizia: 17 anos de PT no poder é inaceitável. Só perguntei: há quantos anos é Angela Merkel chancelerina da Alemanha? Estás preocupado com a democracia alemã?! Vale a pena pensar nisto: por que é que o espaço público foi tomado pelos radicais e pela mentira - mesmo quando na forma do pequeno argumentinho maroto? Como resistimos a isso? O que é preciso mudar na democracia para vencermos na raiz estes inimigos universais?


- 2 -
LINGUAGEM

Uma parte da trumpização (ou bolsonarização) da política passa pela banalização dos excessos de linguagem.

Os humanos são uma espécie animal onde a linguagem é parte essencial do seu ecossistema - pela linguagem concretiza-se tanto como se consegue concretizar com meios mais evidentemente materiais. Como a civilização dos humanos é uma civilização de instituições, e como a palavra é a seiva das instituições, pela palavra consegue-se construir - e, muito mais facilmente, destruir - elementos essenciais da nossa vida civilizada.

Essa é a razão pela qual nunca apoiei o uso de certas expressões na linguagem política.

Um exemplo simples: chamar "roubo" a algo que é injusto (por exemplo, um corte de pensões).

Porque é que se considera mais forte o qualificativo "roubo" do que o qualificativo "injusto"? Se fossemos suficientemente civilizados, praticar uma injustiça devia ser encarado como mais grave, mais criticável, mais chocante, do que um roubo. Porque a injustiça é mais funda, é mais estrutural, é mais definidora, do que um roubo. Um roubo até pode acontecer por necessidade. Pode perfeitamente ser um acto ocasional, sem exemplo. No limite, um roubo até pode ser justo. Mas uma injustiça é uma violência estrutural. Então, porque é que, na linguagem política, há quem use "roubou" em vez de "injustiça", pretendendo que assim está a ser mais afirmativo?

Pela linguagem morre o peixe. Os fascistas sempre souberam isto. A extrema-direita de hoje continua a saber isso. E nós devìamos saber ir por outro caminho. Um caminho onde se aprofundassem as possibilidades de todos os cidadãos falarem dentro das instituições, para que se dê à palavra a importância que ela tem. Que ela tem de ter numa vida democrática.


- 3 -
INSTITUIÇÕES

As instituições americanas são muito mais fortes do que as instituições brasileiras. Por isso, o mal que Trump pode fazer aos EUA é, comparativamente, menor do que um Trump brasileiro pode fazer ao Brasil. Essa é uma das razões para eu achar insane que exista quem, neste transe, continue a criticar Trump e, ao mesmo tempo, a defender que entre Bolsonaro e Haddad tanto faz. É mesmo a atitude de quem pratica o "deixa ver se dose dupla de veneno funciona melhor do que dose singela". Gaita, leiam uns livrinhos de história do século XX, para começar...


Porfírio Silva, 27 de Outubro de 2018
Print Friendly and PDF

10.10.18

A propósito das eleições em S. Tomé e Príncipe


No passado Domingo tiveram lugar eleições várias (entre as quais, legislativas) em S. Tomé e Príncipe.

Os resultados das Legislativas deixaram muitíssimo próximos, em votos, os principais blocos políticos. Segundo os resultados provisórios anunciados pela Comissão Eleitoral Nacional, o partido governamental (ADI) ficou em primeiro lugar em número de deputados, mas perdeu a maioria absoluta - sendo que, com o seu aliado dos Cidadãos Independentes, não terá apoio maioritário no parlamento. O maior partido da oposição, o MLSTP, com o anunciado acordo com a chamada Coligação, estaria em condições de governar em estilo "geringonça" (como lá se diz).

Entretanto, a diferença em número de votos entre os dois blocos é inferior ao número de votos reclamados e nulos. A pressão está, pois, nos mecanismos institucionais que farão o apuramento, a nível distrital e nacional. O que se reaprecia? O que se reconta? Que critérios se aplicarão para decidir todos os casos de modo uniforme, para se ser justo?

A situação está explosiva (como documenta a imagem que publico, da tarde da passada segunda-feira), as diferentes leituras da legislação confrontam-se, a tradição e a lei nem sempre apontam no mesmo caminho.

Esperamos que a democracia são tomense seja capaz de se reforçar neste processo. Mas uma coisa é certa: em cada momento destes ficamos a compreender melhor que a democracia não é só o voto. Os observadores internacionais ficaram convencidos de que se votou em liberdade e que as mesas de voto produziram resultados conformes ao que o povo lá colocou. Mas é preciso mais. A democracia requer instituições que congreguem a confiança dos cidadãos, especialmente em processos complexos cujos pormenores são difíceis de entender. Reconsiderar um voto reclamado pode ser interpretado como "roubar um voto", se não houver confiança na imparcialidade do órgão que tem de fazer esse exercício.

Olhamos para qualquer processo democrático como uma oportunidade para reflectir sobre a nossa própria democracia.

(Estive em S. Tomé a participar na Missão de Observação Eleitoral da CPLP, integrando a Missão como membro da Assembleia Parlamentar da CPLP, onde sou um dos representantes da Assembleia da República de Portugal. Nesses termos, e porque o nosso trabalho ainda não concluiu, não faço qualquer comentário "partidário" sobre o processo. Limito-me a comentários que um observador internacional pode fazer sem prejudicar a imparcialidade requerida na sua tarefa.)

Porfírio Silva, 10 de Outubro de 2018

Print Friendly and PDF

A Europa é connosco




(Para registo, fica aqui meu o artigo que o jornal "Público" publicou no passado dia 6 de Outubro, o qual pode ser encontrado no sítio original clicando aqui.)


Os europeus enfrentam hoje desafios tremendos. Na União Europeia, a organização que criámos para esta região, a promessa de prosperidade partilhada foi seriamente danificada pelas políticas dos últimos anos. A própria democracia está em causa: não temos tido forças suficientes para travar as políticas de governos protofascistas, que desrespeitam os fundamentos do Estado de direito. A intolerância tornou-se uma força política tremenda, usando o medo como arma de fechamento ao outro e de afronta aos direitos humanos. O drama dos refugiados simboliza, ética e politicamente, os pés de barro da nossa construção. E este caminho tem o potencial para ameaçar a própria paz.

Assim, as eleições do próximo ano para o Parlamento Europeu (PE) exigem que assumamos as nossas responsabilidades. E isso passa por duas opções, diferentes mas articuladas: a democracia primeiro; e construir uma resposta de esquerda ao desafio europeu.

“A democracia primeiro” aponta para um pacto democrático, que inclua todas aquelas forças, da esquerda ou da direita, que não transigem com a extrema-direita, para constituir uma garantia suficiente de que a próxima formação do PE não será, com o álibi da governabilidade, ocasião para qualquer branqueamento das forças extremistas. Quando, no PS, nos definimos pelo socialismo democrático, o que queremos dizer é que não há socialismo sem democracia e que, portanto, primeiro está a democracia, antes de qualquer outra escolha. Igualmente, para o europeísmo democrático um inimigo da democracia é um inimigo da UE – e um pacto democrático pela UE devia, contra a tibieza cúmplice, definir e proteger esse compromisso fundamental.

Se um pacto democrático protege a liberdade das escolhas políticas, essas só podem efetivar-se havendo propostas claras e diferenciadas. O secretário-geral do PS tem repetido que as soluções tipo bloco central empobrecem a democracia, porque diminuem as escolhas políticas disponíveis. Isso é válido também para as europeias: os socialistas devem apresentar uma proposta política claramente distintiva. Só assim evitaremos atolarmo-nos num “centrismo europeísta”, onde faríamos figura de complacentes com as consequências das políticas de austeridade que foram a resposta errada, da direita, à Grande Recessão.

Uma proposta socialista para a UE terá de responder a factos duros no plano social: quase um quarto da população da UE está em risco de pobreza ou exclusão social; o fosso entre os mais ricos e os mais pobres aumenta; a precarização do trabalho atingiu níveis insuportáveis, apoiada na fragmentação das relações laborais e no enfraquecimento da negociação e contratação coletiva; os rendimentos do trabalho recuam face aos rendimentos do capital; acelera a degradação da conciliação entre vida pessoal, vida familiar e vida profissional. Não se sente hoje que a legislação europeia se traduza em melhoria sustentada das condições de trabalho. E a avaliação dessa “Europa Social” ausente não melhora com as promessas e ameaças da era digital ao mundo do trabalho. Ora, não é possível alinhar numa disciplina europeia para os défices e as dívidas públicas, com metas, controlos e sanções, e aceitar a ausência de idêntico rigor para proteger metas sociais e direitos humanos.

E é preciso completar a resposta às lições da crise. O colapso do Lehman Brothers em 2008 espoletou uma crise financeira mundial e esta foi transformada numa crise das dívidas soberanas e numa crise económica e social global. A resposta austeritária da UE contribuiu para esse processo, enquanto a hierarquização entre países credores e devedores serviu de ameaça fática ao método comunitário. O que se conseguiu entretanto reparar não disfarça que permanecem largamente incólumes mecanismos básicos responsáveis pelo que se passou nos últimos dez anos, incluindo a financeirização e a desregulação económica e a fragilização dos poderes públicos. É responsabilidade dos socialistas apontar as políticas da resposta necessária no plano europeu.

Cabe-nos, ainda, abrir caminhos para uma esquerda plural pela Europa. Tornar compatíveis na ação esquerdas várias, que são e continuarão a ser diferentes. Tecer uma esquerda plural europeísta que assuma o internacionalismo necessário para enfrentar realidades insuscetíveis de gestão dentro das fronteiras de um só país: os grandes movimentos transfronteiriços de pessoas; a paz e a segurança; as alterações climáticas; a nova economia digital, cuja extraterritorialidade arrisca fragilizar os direitos sociais e a cidadania; a liberdade de circulação mais rugosa para as pessoas do que para os capitais. O nacionalismo é uma resposta económica e politicamente incapaz para estes desafios.

A UE é a possibilidade concreta que temos de agir no mundo. É já, por exemplo, uma das regiões do mundo mais determinadas a enfrentar quer o desafio climático, quer o das grandes empresas tecnológicas que tentam contornar qualquer regulação pública. Face à América de Trump, à Rússia de Putin, à China de Xi Jinping e à miríade de ameaças à paz e aos direitos humanos, uma UE forte, socialmente coesa e democrática faz falta ao mundo e à Europa. E para isso precisamos de uma esquerda pela União Europeia, certamente crítica, mas também construtora. Não avançaremos essa tarefa numa amálgama de europeísmo indiferenciado, mas podemos fazê-lo com uma proposta socialista diferenciada que reponha na agenda as políticas para uma prosperidade partilhada.


Porfírio Silva, Deputado e secretário nacional do PS



10 de Outubro de 2018
Print Friendly and PDF