21.2.17

"Era digital e robótica: implicações nas sociedades contemporâneas"



Hoje estive na Conferência Parlamentar "ERA DIGITAL E ROBÓTICA: IMPLICAÇÕES NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS", que teve lugar na Sala do Senado da Assembleia da República. Coube-me fazer a intervenção em nome do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. Aqui deixo o texto dessa alocução.

Para abordar o tema “Era digital e robótica: implicações nas sociedades contemporâneas”, precisamos deixar de lado as simplificações inspiradas seja pela tecnofobia seja pela tecnofilia, recusar o determinismo tecnológico e encetar o estudo dos desafios e oportunidades envolvidas na sua complexidade e incerteza, com recurso ao conhecimento disponível e à deliberação democrática.

Já todos estamos familiarizados com a pergunta: se um automóvel autónomo, a circular na via pública sem condutor, tiver um acidente, quem responsabilizamos: os ocupantes do veículo na circunstância, o construtor, os engenheiros que programaram a autonomia do veículo, ou os sistemas de informação que coadjuvam a circulação do veículo?

Se estas questões são principalmente jurídicas, outras podem tocar aspectos propriamente antropológicos.

Quando, em 2013, visitei o laboratório do professor Hiroshi Ishiguro, na Universidade de Osaka, pude observar os robôs humanóides da linha GEMINOIDS. Os robôs humanóides são, habitualmente, robôs com alguma semelhança genérica com o corpo humano: cabeça, tronco, pernas, braços, boca, olhos, orelhas. A forma humanóide de um robô facilita que saibamos como interagir com ele: entendemos facilmente onde estão as câmaras de vídeo que captam imagem, onde estão os microfones que captam som. Mas os robôs GEMINOIDS não são humanóides dessa forma genérica. Cada exemplar Geminoid é uma cópia, um duplo, um gémeo mecânico de uma pessoa particular. O primeiro Geminoid foi um gémeo do Professor Ishiguro. E já há versões mais actuais do Ishiguro robô. E já há gémeos robóticos de outros humanos.

Os Geminoids não são robôs completamente autónomos, são parcialmente teleoperados à distância. Sem tempo para explicações técnicas, interessa dizer que o Professor Ishiguro pretende construir robôs que sejam capazes de passar por pessoas. Disse mesmo uma vez: “se há falta de pessoas, porque não fazemos algumas?”. O gémeo humano poderia controlar não apenas um gémeo robô, mas dezenas de gémeos robôs. E sugeriu aplicações: num serviço, vários robôs gémeos podem tratar do atendimento ao público, com um único gémeo humano a controlá-los, intervindo este apenas em situações de disfunção. E os utentes sentir-se-iam atendidos por humanos. Estamos, aqui, julgo, a tocar questões mais fundamentalmente antropológicas do que as questões de responsabilidade civil. E a tocar questões éticas.

Seria enganoso, contudo, reconduzir a nossa problemática necessariamente para este tipo de robôs. Um conjunto de sensores, um conjunto de actuadores, e algoritmos que liguem os primeiros aos segundos, fazem um sistema robótico, mesmo que esses elementos estejam apenas ligados sem fios e distribuídos por diferentes locais, por exemplo numa praça pública, de forma que um leigo nem sequer se aperceba.

Já há certos domínios da interacção social a ser profundamente transformados pela presença massiva de agentes não-humanos, de modos tais que os humanos envolvidos não têm como distinguir a acção dos humanos da acção das máquinas.

Um exemplo vem dos mercados financeiros, com a chamada “negociação automática”, consistindo no uso de computadores para compra e venda, extremamente rápida e massiva, de produtos financeiros em mercados electrónicos globais. O uso de poderosos algoritmos permite uma especulação automatizada que resulta lucrativa basicamente por ser rápida e massiva. Em poucos anos, o tempo de execução destas operações baixou dramaticamente de segundos para microssegundos, havendo indicações de que representam cerca de metade do volume negociado nas bolsas americanas e europeias. Nestas situações, os traders envolvidos não sabem se estão a interagir com pessoas ou com máquinas. Anote-se, aqui, a recente proposta de lei do governo sobre o Regime sancionatório do direito dos valores mobiliários, que inclui algumas destas acções na categoria de operações susceptíveis de pôr em risco o regular funcionamento dos mercados.

Sim, a influência de produtos da Inteligência Artificial nas nossas vidas não está para chegar: já está entre nós.

E quando falamos em Inteligência Artificial falamos também de “machine learning” (máquinas que aprendem), falamos de programas que resultam de técnicas de evolução artificial (que não foram explicitamente escritos por um humano), falamos do cruzamento das nanotecnologias com a robótica, por exemplo para uso médico no interior dos nossos corpos. Ou falamos de guerra, de guerra à distância de milhares de quilómetros.

Um aspecto importante do que está a acontecer é a Internet das Coisas.

A Internet das Coisas será uma rede global de “coisas inteligentes”, assim ditas por serem identificadas individualmente, por disponibilizarem informação e por recolherem informação de forma massiva, entrando na nossa interacção social. E não estamos a falar apenas de computadores e telefones, estamos a falar de televisores que registam o que vê cada membro da família, frigoríficos que sabem o que cada um come, camas que sabem quem lá dorme, carros que denunciam onde fomos, medicamentos que ajudam a calcular que doenças temos, passaportes que transmitem os nossos roteiros, peçam de roupa que nos localizam e que recolhem dados sobre a nossa condição física. E tudo isto pode ser justificado benevolamente. Já há projectos, por exemplo, para colocar etiquetas de radiofrequência em notas de banco, para poder seguir cada uma individualmente e assim melhor se poder combater a corrupção. Tudo isto representa a possibilidade de uma avassaladora invasão de privacidade, tornando-nos uma fonte contínua, e talvez inconsciente, de documentação pública da nossa vida privada.

Pensando em termos de impacte no trabalho e no emprego, temos de olhar para a economia das plataformas digitais, que mobiliza uma conectividade ubíqua, omnipresente, para fazer do acesso a plataformas digitais a base de novas formas de negócio, não apenas para mobilizar consumidores (que compram livros, ou serviços de transporte, ou alugam apartamentos na net), mas também para comprar força de trabalho em formas que escapam largamente à regulação do Estado Social de Direito.

Vamos dizê-lo desta forma: há um novo actor nos mercados de trabalho: a multidão. A mecanização, na sua forma digital, dispensa as massas de trabalhadores reunidos numa empresa e recruta indivíduos isolados, que trabalham separados uns dos outros, dispersos por todo o mundo, uma multidão atomizada.

Uma forma de mencionar estes esquemas é chamar-lhes “outsourcing online”, por exemplo com o recrutamento online de trabalho barato e pouco qualificado.
Exemplo é o Amazon Mechanical Turk, onde, 24 horas sobre 24, sete dias por semana, alguém compra tarefas e alguém realiza tarefas em troco de um pagamento. Diz-se que são “Tarefas de Inteligência Humana” porque, sendo tarefas relativamente simples, os computadores são ainda ineficientes na sua execução. Exemplos: processar fotos ou vídeos para encontrar certos conteúdos, editar um ficheiro áudio e passar para texto escrito, verificar um grande catálogo para detectar erros.

Nestas plataformas, desaparece o enquadramento das leis laborais, desaparece a negociação colectiva, desaparece a organização dos trabalhadores, em muitos casos desaparece simplesmente a noção de direitos dos trabalhadores.

Uma multidão dispersa e anónima, de indivíduos isolados, face a empregadores globais sem rosto, é o inferno da desprotecção absoluta do trabalho.

Como desafio ao Estado Social, cabe notar que esta economia das plataformas, globalizada e desregulada, contém riscos para os sistemas públicos de segurança social e, mais geralmente, para o financiamento do Estado Social. É preciso aprofundar o debate, que o PS relançou recentemente, acerca da necessidade de alargar as fontes de financiamento da segurança social. Os que falam em impostos sobre o trabalho dos robôs falam, mesmo que por vezes de forma imprecisa, da necessidade de pensar as consequências de economias mais capital-intensivas.

Importa sublinhar que não são as máquinas que nos obrigam a usá-las desta ou daquela maneira. As máquinas abrem certas possibilidades, boas ou más, mas a escolha é colectivamente nossa. Para dar o exemplo da saúde: podemos usar robôs que supostamente são cuidadores de idosos e, na verdade, estarmos a condenar os idosos a ficarem sozinhos com máquinas. Mas o uso de robôs em ambiente hospitalar pode ser profundamente humanizador.

Foi assim com o robô humanóide Gasparzinho, que o Instituto de Sistemas e Robótica colocou na ala pediátrica do IPO de Lisboa, um projecto no qual ainda pude participar. Ora, o Gasparzinho, interagindo com as crianças em actividades educativas e de entretenimento, foi capaz de melhorar a qualidade de vida daquelas crianças. Num ambiente difícil, e muito regulado no plano ético, o robô contribuiu para a humanidade dos intervenientes.

O que vos digo não é uma justificação articulada do conjunto de razões que podem levar um Parlamento democrático a debruçar-se sobre estas questões. O que vos digo, no tempo disponível, é meramente impressionista e deixa por mencionar muitos aspectos cruciais. Mas espero que seja suficiente para marcar este alerta: a Assembleia da República deve dotar-se dos mecanismos necessários para estar preparada para os desafios que a Inteligência Artificial, a Robótica, a Internet das Coisas, e outras tecnologias associadas, colocam às nossas sociedades, para saber quando, e como, deve intervir como legislador responsável e atento.

O Parlamento Europeu já começou a fazê-lo, com uma resolução adoptada na semana passada, onde propõe uma Carta Europeia da Robótica, incluindo códigos de conduta para diversas categorias de profissionais, solicitando à Comissão Europeia que tome iniciativas legislativas e considere a criação de uma agência europeia para lidar com estas questões.

Teremos, na Assembleia da República, de encontrar os nossos próprios caminhos para fazer a nossa parte, como legislador prudente agindo com base no melhor conhecimento disponível.

Uma nota final. Estas questões não são questões tecnológicas, são questões de sociedade. E dou apenas um exemplo. Quando dizemos que as nossas crianças usam e abusam do tablet, podemos dizer que não há mal nenhum em usar o tablet. Temos é que ensiná-las a combinar o que está no tablet com o conhecimento do avô e da avó, que os liga a uma rede social, a uma rede de memória, a uma rede de cultura, a uma rede de tradição. Esses são os nossos desafios, civilizacionais.



21 de Fevereiro de 2017