17.11.16

Que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas?




A cumprir-se um ano de governo das esquerdas, assinalo dois pontos. Um sobre o passado, outro sobre o futuro.

Sobre o caminho percorrido, a normalização da democracia tornou-se parte das nossas vidas. Contra os que não acreditavam ser possível outra política social e económica, que viam direitos sociais e políticos como opostos a desenvolvimento do país, contra esses afirmou-se a possibilidade de “virar a página da austeridade” – que não é renunciar à frugalidade, mas é distribuir o esforço de forma socialmente mais justa e economicamente mais racional. Contra os que defendiam que só podíamos mudar de política em ruptura com a União Europeia (fosse para pugnar pela submissão, fosse para pugnar pela ruptura), este governo demonstrou que podemos mudar de política sem sair da UE e sem sair do Euro, mantendo uma relação política de defesa digna, urbana e firme dos interesses nacionais no quadro do interesse comum europeu. As vitórias sucessivas na frente europeia demonstram que o PS não é o Syriza: nem o primeiro Syriza, o do confronto proclamatório; nem o segundo Syriza, o de uma rendição dolorosa à realidade dos custos do isolamento político na cena europeia. Aos que julgavam impossível mudar de política sem romper com a União Europeia, respondemos com a normalidade democrática: o voto popular serve para escolher; das escolhas podem resultar mudanças de política, de maioria e de governantes; ninguém nos pode correr da Europa para fora por defendermos as escolhas dos portugueses, atendendo aos compromissos nacionais. Hoje, já nem se sublinha muito a importância da demonstração desta possibilidade – prova máxima de que “normalizámos” a democracia em Portugal, contra aqueles que a entendiam limitada (ou, até, tutelada).

Agora, adquirida a normalidade democrática, a Esquerda tem de ampliar horizontes. No princípio, todos se concentraram em provar que também nós somos capazes de dar uma maioria parlamentar e uma governação ao país. O PS, o PCP, o BE e o PEV responderam com determinação e realismo a esse desafio. Hoje, o debate começa a mudar e tem de mudar no sentido da ampliação estratégica. Não se trata tanto da forma (rever os acordos ou não rever os acordos à esquerda, alargar o governo aos partidos da maioria parlamentar ou continuar na fórmula de governo do PS), mas da substância política. Essa mudança de formulação estratégica coloco-a assim: que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas? Colocar a questão assim não depende da factualidade de esta maioria fazer ou não duas legislaturas. Colocar a questão assim é visar mais longe, sermos mais exigentes, tirarmos mais das nossas próprias forças ao serviço do país. Respondermos mais ao Plano Nacional de Reformas do que a cada Orçamento de Estado. Pensarmos em termos de Agenda da Década. Pensemos focados nas transformações estruturais: por exemplo, como reduzir duradouramente as desigualdades excessivas? como "virar a página" da precariedade laboral?

Este desafio para o futuro – que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas – terá de passar a ser “a questão” central dos socialistas na sua acção. E, creio eu, é de esperar que o PCP, o PEV e o BE também pensem assim. Reconquistada a normalidade democrática (em tão pouco tempo, tão profundamente que alguns já nem notam o facto), agora é preciso pensar cada vez mais estrategicamente. Pensar a partir do futuro das pessoas deste país.

17 de Novembro de 2016