10.7.14

os debates sobre a reestruturação da dívida como sinais da qualidade da democracia.




Em Março, o "Manifesto dos 74" reunia personalidades dos mais variados quadrantes ideológicos numa chamada de atenção para a necessidade de pensar numa eventual reestruturação da dívida pública portuguesa. Na minha leitura, o Manifesto dos 74 até era bastante cauteloso, na medida em que se colocava no perímetro do enquadramento institucional europeu e evitava abrir as portas a movimentos precipitados e/ou unilaterais da parte de Portugal.
Nessa altura, nem o governo PSD/CDS nem o PS entenderam dar grande crédito à iniciativa. As vozes mais governamentalistas usaram, em larga medida, tiros de distracção, do tipo "agora que estamos quase a sair do programa de ajustamento, devemos estar calados com estes temas que podem atrair a má atenção dos mercados". Não se notou perturbação nenhuma dos mercados (os mesmos que tinham reagido muito mal à crise irrevogável do actual vice-PM), mas o "argumento" serviu a habitual cortina de fumo dos que julgam poder evitar que se pense nos problemas. O PS, por seu lado, hesitou entre desprezar a iniciativa, como se ela não contivesse nenhum elemento interessante, ou, de forma arrogante, considerar-se dono da ideia, ao ponto de um dirigente muito próximo do SG ter mandado (publicamente) o recado ao subscritores de que podiam juntar-se ao partido.
As reacções das direcções partidárias do "arco da governação" foram, todas, demonstrativas de uma tara nacional: ninguém por aqueles lados foi capaz de perceber a importância de se ter conseguido juntar gente com opiniões políticas tão diferentes a pensar publicamente num assunto tão importante, convergindo num diagnóstico. É impossível mudar qualquer coisa a sério neste país sem eliminar esse vício de deitar fora qualquer oportunidade de pensar em conjunto.

Agora, um grupo de quatro economistas políticos, incluindo Francisco Louçã, líder emérito do Bloco, e Pedro Nuno Santos, dirigente do PS, apresentou uma proposta mais detalhada para uma possível reestruturação da dívida. Não sei que sorte terá o debate, mas algumas coisas parecem-me já certas.
Primeiro, como esta proposta é bastante concreta, vai ser fácil criticá-la. E ainda bem: defender propostas, avaliar propostas, criticar propostas, essa é a essência do debate democrático que seja capaz de alguma racionalidade.
Segundo, como esta proposta é bastante extensa e detalhada (umas dezenas de páginas densas), vai sempre aparecer quem atire pedras sem ter lido o documento, com a pressa da má política da conversa popularucha, como já aconteceu com um dirigente do PS que está sempre pronto para atirar pedradas a qualquer militante socialista que lhe pareça andar a mexer-se sem autorização do amado líder.
Terceiro, também do lado dos autores vai ceder-se à tentação de tentar atirar para debaixo do tapete alguns temas muitíssimo delicados, como a parte em que os pequenos aforradores vão também ser "reestruturados". Já li um dos autores dar sobre isso uma resposta claramente falaciosa, tendente a descansar os ditos pequenos aforradores, quando nem sequer há acordo entre os quatro autores sobre como lidar com esse assunto (aforradores com títulos até 100.000 euros). É importante que os debates não se façam escondendo as cartas - e os autores do estudo devem ser os primeiros a evitar cair nessa tentação.

Pelo meu lado, não tendo conhecimentos que me permitam produzir opinião própria sobre o assunto, este processo interessa-me como cidadão. Aplaudo aqueles que se chegam à frente com propostas, tão claras e detalhadas quanto possível, porque isto não é assunto para decisões secretas: os cidadãos precisam saber o que significa cada uma das perspectivas. Aplaudo aqueles que critiquem de forma clara e precisa essas propostas, porque saber fazer as boas perguntas é essencial. E abomino os pequenos truques retóricos que poluem estes debates, porque, em matérias que podem mexer tanto com a nossa vida, toda a demagogia é criminosa.

Este é um daqueles casos em que se esperaria mais sensatez da parte das instituições políticas formais. Provavelmente, não seria adequado que fosse o próprio governo a andar por aí a reivindicar publicamente uma reestruturação da dívida, já que isso poderia fazer com que o país pagasse um custo financeiro e político indesejável, independentemente do que viesse a acontecer a seguir. Essas coisas costumam correr melhor quando outros propõem aquilo que nós queremos, sem termos de ser nós a pagar o preço do pedido. Aqui, o contexto europeu é inescapável. Provavelmente, um partido de oposição, pelo menos se aspirar a ser governo, não deveria comprometer-se com soluções concretas, se esse compromisso limitar a sua margem de manobra negocial quando tiver de pegar no assunto em nome da República Portuguesa. Não obstante, tanto o governo como qualquer oposição responsável deveriam valorizar o surgimento de plataformas de convergência sobre o assunto, deveriam aplaudir o surgimento de propostas concretas e o seu debate aprofundado - e deveriam apelar aos cidadãos para se informarem, questionarem, debaterem. O que não podemos é ignorar o problema: com a dívida que temos, se nos limitarmos a seguir o caminho do "cumprimento" e do "castigo", Portugal vai penar décadas de empobrecimento, a menos que nos saia na rifa um desempenho económico tão maravilhoso que nunca aconteceu antes em lugar nenhum do mundo real em que vivemos.
E de pensamento mágico estamos fartos.