25.10.13

O meu socratismo.


As palavras e as coisas /
 « Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.» (Brecht)


1. Se há coisa que me dá volta às tripas é ser sugado para uma “bolha comunicacional”. Explico-me. O mais recente “regresso de Sócrates”, que no plano da objectividade imediata não passa de uma “photo opportunity” a propósito do lançamento de um livro, transforma-se em mais uma comoção nacional, onde o próprio colabora ao lado dos que juraram metê-lo no inferno. Tento não entrar nesse filme. Mas perco: acabo atraído para a bolha e irritado por isso, mas compelido a reflectir sobre a pedra que rola encosta abaixo e que não se detém por causa da nossa irritação. Vou, então, fazer, pelo menos para mim, o meu ponto da situação acerca do meu “socratismo”: não por causa do passado, mas por causa do futuro.

2. É sabido que defendi, por vezes com unhas e dentes, os governos Sócrates em alguns dos momentos de maior contestação. Também coloquei reservas de fundo quanto ao método seguido em grandes dossiês (em geral, motivado pela minha ideia persistente de que os poderes devem levar a sério aquele trabalho de concertação que coloca carne nos ossos da democracia) e nunca me coibi de expressar discordância quando assim o entendi. Mas, globalmente, é justo classificar-me, nesse período, como um “socrático” voluntário. (Continuam disponíveis no meu blogue todas as “provas” acerca desse período.) Os poucos que conhecem um pouco mais do meu passado político (um percurso, mais do que discreto, apagado, apesar de ter começado quase há 40 anos), teriam razões para se espantarem com esse meu posicionamento. Então, por quê este socratismo? (Seria mais próprio colocar aspas, “socratismo”, porque não sigo pessoas, mas causas; mas não vou dourar a pílula.)

3. O meu socratismo tem, basicamente, duas razões.
Primeira: entendi que Sócrates tinha uma visão para o desenvolvimento do país que era um empurrão importante para deixarmos o miserabilismo nacional e visarmos mais alto. Não vou entrar nos pormenores, mas em domínios como a educação ou a saúde, a energia ou a ciência, para dar apenas exemplos, o futuro fará o seu juízo. Um país habituado ao queixume precisava de um choque desses, mesmo que o desenho concreto das políticas pudesse ter – tivesse, claro – defeitos; mesmo que o chavão do “choque tecnológico” nunca me tenha convencido (como escrevi em tempo) por deixar demasiado na sombra o importante “choque democrático” que era indispensável para tornar o projecto viável.
A segunda razão para me ter envolvido no combate cívico do lado do socratismo foi a campanha de ódio desencadeada contra Sócrates por uma “coligação” formidável que não olhou a meios para atacar a pessoa do então primeiro-ministro. Não vale a pena voltar a esmiuçar o processo, mas nunca, desde o 25 de Abril, tanta calúnia visou pessoalmente um político, de forma tão concertada, tão persistente, tão agressiva, tão sem escrúpulos, como aconteceu contra Sócrates. Esse facto tornou-se, para mim, uma razão em si mesma para o meu socratismo: a batalha cívica contra a possibilidade de uma campanha de ódio pessoal decidir um processo político. Foi essa política do ódio que, finalmente, deu cobertura à coligação negativa, tornando aceitável que a direita e a esquerda da esquerda parlamentar se unissem para mostrar a Sócrates a porta de saída.

4. No plano estritamente político, e com consequências para o que se passa hoje, o meu socratismo teve também a ver com a resposta nacional à crise. A crise, que começou por ser um terramoto criado pelas aldrabices do sistema financeiro, foi depois transformada em crise das dívidas soberanas, tendo a factura acabado por ser entregue a alguns povos, embrulhada numa teoria austeritária que serve certos interesses bem embebidos no poder real do mundo globalizado de hoje. Sem vir agora ao caso uma análise detalhada aos méritos e às cegueiras de Sócrates nesse processo, há três factores que relevo.
Primeiro, a direita, a começar pelo PSD de Manuela Ferreira Leite, começou por dizer que o cancro era uma pequena constipação. A política do ódio serviu, e ainda serve hoje, para esconder a enorme responsabilidade dessa tese absurda no inquinar do debate acerca da resposta que teríamos de dar à crise. Há por aí tantos arqueólogos do pecado original da nossa situação actual, mas quase todos fazem por esconder debaixo do tapete a irresponsabilidade que, por motivos eleitorais, destruiu no ovo a possibilidade de uma verdadeira resposta nacional a essa emergência, o que ainda pagamos com língua de palmo.
Em segundo lugar, a direita, desta vez pela voz de Passos Coelho, alcandorou-se ao poder montada na mentira de que a austeridade não era necessária e de que, desde que se corresse com Sócrates, tudo se resolveria com água de malvas e massagens suaves.
Em terceiro lugar, a ilusão de que Portugal pode, sozinho, fazer o suficiente para sair da crise, foi a tese que deu sustento quer à mentira de Ferreira Leite quer à mentira de Passos Coelho. Escondendo que o essencial não dependia de nós (para justificar o fogo de barragem sobre Sócrates), escondendo que a afinação da imagem de Portugal no plano internacional era difícil e exigia um enorme esforço de concertação interna entre todas as forças políticas e sociais (para justificar o isolamento de Sócrates e uma oportunas eleições para “ir ao pote”) e não hesitando em provocar uma crise política que nos lançou definitivamente no caminho do “resgate”, a direita, em momentos essenciais coadjuvada pela esquerda da esquerda, colocou o seu ódio a Sócrates acima dos interesses de Portugal.
As consequências desse comportamento irresponsável continuamos a sofrê-las hoje, porque é o mesmo erro que continua a poluir as relações entre a maioria e a oposição no que diz respeito à necessidade, ao conteúdo e ao formato de um compromisso nacional amplo (e não fechado a um clube, como imagina Cavaco) que precisamos para tentar encontrar uma via de saída para a crise. Se a vida não teria sido fácil com a aprovação do PEC IV, o seu chumbo marcou o momento em que as oposições, acicatadas por Cavaco Silva, borraram toda a pintura de um diálogo nacional que teria sido possível e necessário para não estarmos a sofrer o que estamos a sofrer. Por muitos erros que Sócrates tenha cometido nesse processo, como todos os líderes mundiais cometeram por não haver experiência de tal cenário, a irresponsabilidade dos que agiram politicamente por ódio a Sócrates e por mero oportunismo eleitoral é incomensuravelmente mais censurável.

5. Até aqui tentei explicar donde vem, em retrospectiva, o meu socratismo. É, digamos assim, um socratismo comparativo: com todos os seus erros e defeitos, Sócrates teria que fazer muito mais patifarias para se aproximar do nível de culpa política que têm a direita e, até certo ponto a esquerda da esquerda, no estado a que isto chegou. Quanto ao seu feitio irascível, que muitos invocam para explicar desentendimentos com este e aquele, os dados que tenho aconselham-me a acreditar nisso – mas isso para mim é irrelevante: se alguém tomou uma decisão política errada por atritos pessoais com outro agente político, isso só demonstra que devia evitar a política e dedicar-se à pesca. Tomar decisões e atitudes políticas de enormes consequências para o país por despeito pessoal é uma indignidade. Uma indignidade que, aliás, julgo ter sido praticada, em primeira instância, pelo próprio PR, o vingativo e umbiguista Cavaco Silva.
E, agora, que é feito do meu socratismo face aos últimos acontecimentos? Tentarei responder a essa questão em dois passos: primeiro, a partir da “bolha comunicacional” dos últimos dias; segundo, na perspectiva do futuro da nossa “casa comum”.

6. Quanto ao que a “bolha comunicacional” dos últimos dias releva para o meu socratismo: vejamos.
Em primeiro lugar, para enquadrar: considero abjecta a aspiração, assumida mais ou menos publicamente por muitos, de calar Sócrates. Num país onde há uma promiscuidade generalizada entre comentário político e política, um coro de virgens tentou impugnar e sonhou com a censura de um espaço de comentário político de Sócrates na TV pública. Esse incómodo, além de ser a melhor prova de que Sócrates tem sobre o país um ponto de vista que pode manter aberto um contraditório útil, mostra que o vale-tudo é a estratégia geral da política do ódio contra o “animal feroz”. A ideia era: Seguro toma conta do PS (impede o PS de defender qualquer aspecto da governação de Sócrates) e, fechando qualquer outra via comunicacional, consegue-se impedir o anterior PM de dar o seu testemunho sobre a história recente. O aspecto mais troglodita deste plano de batalha é a risota sobre o termo “narrativa” usado pelo Sócrates regressado: finos intelectuais da nossa praça repetem acefalamente que “narrativa” é uma historieta, uma mentira, uma fábula – não sabendo, ou fazendo de conta que não sabem, há quantas décadas (pelo menos desde Lyotard e as “grandes narrativas”) que “narrativa” é praticamente um termo técnico para discutir a relação entre diferentes planos de interpretação e acção no mundo. Esta exploração da ignorância, da ignorância atrevida, se se mostrar pagante neste caso poderá, de futuro, ser receita para muitas outras guerrilhas. Por isso temos de a contrariar.
Em segundo lugar, Sócrates chocou os bem-pensantes da aldeia por esse atrevimento de escrever um livro de teoria política. Ou de filosofia, não interessa muito para o caso, tirando que esse gozo com a “filosofia” engrossa por muitos desses intelectuais julgarem secretamente que ser filósofo é ou uma inutilidade que devia ser proibida (como o outro que acha irrelevante o estudo da história nas faculdades) ou um estatuto divino reservado a autores mortos há mais de duzentos anos. Seja Vasco Pulido Valente, que volta e meia publica provas da sua ignorância enciclopédica, mas não se coíbe de falar do “livro” de Sócrates (entre aspas); seja António Lobo Xavier, que costuma ser (ou estar) mais sóbrio, mas vai reconhecendo que não leu o livro de Sócrates enquanto opina que não é possível que contenha qualquer teoria sobre a tortura, porque o autor é um recém-chegado à "filosofia". O mesmo Lobo fala de Science Po como se fosse uma escolinha de bairro, quando na verdade é uma escola de renome. A arrogância sem limites já não é política nem comentário: é, apenas, a confissão do nível a que desceram estes notários do ódio mais rentável de que há memória em Portugal. Repito: esta exploração da ignorância, da ignorância atrevida, se se mostrar pagante neste caso poderá, de futuro, ser receita para muitas outras guerrilhas. Por isso temos de a contrariar.
Em terceiro lugar, a entrevista de Sócrates ao Expresso, uma entrevista com muita substância política, foi digerida, tanto pelos que a leram como pelos que a não leram, pelo lado da linguagem (ligeira, descuidada ou desbragada, conforme as leituras) usada pelo entrevistado e preservada pela entrevistadora. Neste ponto digo, à cabeça, que Sócrates usa nessa circunstância um tipo de linguagem que eu não usaria numa entrevista ou em qualquer forma de comunicação pública. Além de, pessoalmente, prezar algum cuidado na expressão, julgo que uma figura pública deve dizer tudo o que entende dever ser dito, mas evitando sobrepor a forma ao conteúdo (é possível que Sócrates tenha usado aquela linguagem de forma intencional para projectar uma certa imagem) e mantendo-se num registo que traduza uma civilidade de princípio mesmo face aos mais detestados adversários. Não é preciso ser político (ou ex-) para ter esse dever: mesmo como autor de um livro sério, julgo que lhe era exigível outro cuidado. Dito isto, não acho graça nenhuma à retórica moralista em torno da entrevista: uma pessoa chocar-se porque Sócrates chama bandalho ou pulha a um tipo que usou a acusação anónima de homossexualidade como dispositivo de campanha eleitoral, em vez de se chocar primeiro com a pulhice efectivamente praticada, é uma inversão de valores que me cheira muito mal. E que é um prolongamento no tempo da estratégia geral “contra Sócrates vale tudo, a favor nada vale”. Acusar Sócrates de tratar mal este ou aquele, em referência a uma linguagem deselegante, esquecendo o que outros fizeram para efectivamente merecer essa deselegância, é uma cegueira muito selectiva e muito desmemoriada.
Em resumo: Sócrates não reconhece facilmente como habitação a sepultura que lhe quiseram dar. Tem todo o direito de estrebuchar. E não preciso de estar sempre de acordo com a forma como ele o faz, nem com o conteúdo do que ele diz, para reconhecer que ele tem todo o direito de resistir à morte cívica a que tentaram condená-lo – e para me enojar com a dualidade de critérios dos vesgos mais militantes (que, infelizmente, levam na candura da conversa outros mais distantes da manobra, que se limitam a constatar que não gostam das palavras, às vezes descurando maior cuidado com a relação entre as palavras e as coisas, ou com a relação brechtiana entre o rio e as margens na dialéctica da violência).

De qualquer modo, tudo isto (estar a escrever tão longamente sobre isto) seria uma perda de tempo se tudo isto fosse história. Mas não. O que me importa nesta novela é o futuro. Quer dizer, como é que este passado, ainda tão importante no presente, pode influenciar o futuro. Mais claro e mais directo: podemos esperar que Sócrates venha a desempenhar, no futuro, outras funções políticas de relevo em Portugal? Terminarei deixando à análise dos leitores a minha opinião sobre esse ponto.

7. Sócrates tem direito a tentar ser tudo aquilo a que ainda ambicione na democracia portuguesa. Não tem nenhum impedimento legal, não me chocaria se ele tivesse ambições as mais altas. O povo é que vota. Se ele chegar, por exemplo, à mais alta magistratura da nação, isso nunca acontecerá sem o voto do povo. Tentar lançar uma espécie de anátema preventivo dessa possibilidade, é infantil e é uma tentativa tosca de tutelar os portugueses, como se fossemos pobres de espírito.
A minha questão é outra: não vejo que o regresso próximo de Sócrates a qualquer lugar de topo do Estado contribua para dar os passos necessários à ultrapassagem do difícil momento que vivemos. Ninguém, nem o mais santo, nem o maior herói, nem o guerreiro mais bravo, ninguém vale só por si; aquilo que cada um pode dar depende também essencialmente das circunstâncias. Sócrates fez parte de uma equação de confronto político extremo na sociedade portuguesa em tempos muitos recentes. Pelo que tenho vindo a escrever, percebe-se que não acho que seja o único ou o principal responsável por isso – mas também não o isento de toda a responsabilidade. De qualquer modo, não se trata agora de fazer um julgamento histórico: para isso, deixemos correr a água sob as pontes. O que quero dizer é que, precisando o país de um compromisso global, alargado e profundo, exigente, mas também justo e solidário, capaz de ultrapassar as fronteiras da política-habitual-tão-curta-de-vistas, é capaz de ser preferível procurar novos actores.
Um compromisso nacional, capaz de parar a destruição do laço social que está em curso, precisa de novos protagonistas: credíveis, fortes e imaginativos, sem pedras no sapato e sem complexos, sem contas a ajustar, com pontes abertas para todas as margens da equação, capazes de ultrapassar as barreiras do habitual e do já visto. Será, sempre, difícil – e, precisamente por isso, mais vale que seja tentado sem o envolvimento dos conflitos anteriores e sem os ódios, ressentimentos e esqueletos no armário que nos tolheram e nos trouxeram aqui. Ora, por muitos méritos que tenha Sócrates – e eu acho que tem –, é indiscutível que arrasta consigo o cheiro da batalha que nos trouxe até este estado de nacional desesperança. Não foi o único, claro: aplico este raciocínio aos demais actores da mesma peça. É importante saber por que é que Passos Coelho roeu a corda a Sócrates? Sim. Será interessante conhecer o que Sócrates propôs a Passos Coelho ou a Louçã? Sim. Será importante e interessante, quer para a história quer para a política. Mas vejo que mais prioritário é enterrar os machados de guerra que ficaram dessas lutas políticas e começar um ciclo novo.
Se acho que seria uma pena que Sócrates tentasse retomar as rédeas, não é porque me arrependa do apoio que lhe dei, sempre desinteressadamente. Não me arrependo. Nem é por recuar, um milímetro que seja, da batalha cívica de denunciar a política de ódio de que foi (e continua a ser) alvo. Não recuo e apoio sem tréguas a sua tentativa de retomar a voz no seu e nosso país. Ele tem direito a essa voz.
Se acho que esse cenário deve ser evitado é porque o país precisa, não de esquecer, mas de superar os seus traumas e virar a página. Podem dizer-me: mas isso seria injusto para Sócrates. Pois, talvez. Mas isso não me comove. A política não serve para compensar os políticos pelos seus méritos ou serviços. Servir o país – é isso que se supõe que fazem os políticos – é correr o risco de ser injustiçado, correr o risco de não ser compensado, o risco de dar e não receber. Se a melhor maneira de servir o país é, num dado momento, prescindir, o grande político tem de aceitar isso.
Se não houvesse mais ninguém… Mas há. Creio que há, em todos os partidos parlamentares, gente capaz de se empenhar num novo ciclo – e que não traga consigo o espectáculo de confronto que nos tem dilacerado nos últimos anos. E que não pode continuar nesta forma pestífera.