19.2.13

a espuma dos dias que nos afoga.


Francamente acho uma pena que a oposição aos ministros mais apalhaçados deste governo tenha de passar por boicotes aos seus aparecimentos em público. Nunca pensei que a receita que os relvas deste país receitaram em períodos anteriores passasse tão rapidamente a ser-lhes aplicada. Mas, apesar de tudo isto me desgostar (sempre combati a política do ódio), começo a não ter forças intelectuais para me opor a esta guerrilha.
Por quê?
Porque esta guerrilha é, de facto, a resposta a uma agressão brutal a que estamos a ser submetidos. Já só podemos sonhar em sobreviver, parece ser o que nos repetem cada dia. Concretizar projectos pessoais, profissionais? Nem pensar; tudo comido pela voragem da limpeza em curso. A verdade é que o descaramento de alguns destes governantes é tão grande, a lata com que falam de um país que não existe ao mesmo tempo que parecem ignorar o país que realmente existe, esta guerra civil em curso tem sido tão promovida pelas constantes mentiras e hipocrisias da malta que nos governa, que falha a determinação para estar contra o boicote.
(Mas, claro, deve haver por aí quem me acuse de ser mais um privilegiado a tentar contrariar o impulso reformista destes estadistas.)

Face a tudo isto, há sempre os intelectuais de serviço ao comentário. Penso, neste momento, em particular, numa técnica de comentário aos boicotes, protestos e vaias a membros do governo que consiste em sugerir mais ou menos isto: "ah, essa malta que aparece nos protestos não estão nada desesperados com a situação, é tudo faz de conta e política".
Nem me dou ao trabalho de comparar essa conversa com a técnica salazarista de dizer "quem está contra é por ser comunista".
Apenas vos pergunto: quem sabe do desespero dos outros? Tal como se fala de "pobreza escondida", também se pode falar de "desespero escondido", sabem?
Há muito projecto de vida que anda por aí atirado para o canto, substituído por qualquer coisa como "sobreviver".
Projectos profissionais irremediavelmente assassinados por adiamentos fatais.
Pais que têm de prescindir de "gozar a reforma" e investir os seus tostões a ajudar os filhos aflitos. E avós a ajudar os pais dos seus netos.
Velhices douradas em perspectiva substituídas por dias de aperto e viagens até à janela.
"Empreendimentos" travados pelos dias de chumbo, pela incerteza, pelos parceiros retraídos, pelas contas apertadas.

Claro, os que fazem as contas ao desespero dos outros, os que dizem que os desesperados não fazem boicotes (também o "povo bom" antigamente não tugia), acham com toda a certeza que é melhor deixar de viajar do que deixar de comer, é melhor deixar de comprar livros do que deixar de comprar pão, é melhor deixar de ir ao teatro do que deixar de beber leite, é melhor deixar de ir ao cinema do que deixar de comer sopa. E, se calhar, também é melhor deixar de ir à universidade do que morrer de fome.

Estou farto desses que escrutinam com arrogância o desespero dos outros. E absolvem com tanta e irresponsável leviandade os que avançam sobre toda a folha sem qualquer consideração pelo desespero real que campeia. E é que campeia mesmo.